A) Origem da filosofia (segundo JOHN DEWEY). Necessita de reconciliação entre o conhecimento positivo e o conhecimento tradicional e religioso. Os primeiros "filósofos" da nossa civilização. Os sofistas. Caracteres da filosofia decorrentes da sua origem. Ausência de imparcialidade e de espírito objetivo. Ambição de universalidade. Artificialidade dos seus "raciocínios". Formalismo lógico.

 

                                B) Aspectos modernos de filosofia. A reconstrução da filosofia. O objetivo da filosofia não é a "verdade" no sentido estritamente científico do têrmo, mas os "significados", os "valôres", as "interpertações" da vida.

 

                                C) Filosofia e educação. Filosofia é a teoria geral da educação. Dependência da filosofia da vida social. Filosofia e democracia.

                                A escola e as exigências da vida democrática.

 

A) Origem da filosofia

(Segundo JOHN DEWEY)

 

SERIA UMA ILUSÃO julgar que o homem foi ou é, ainda hoje, um animal friamente especulativo. Alguns homens é que, através dos tempos, se disciplinaram bastante para a análise especulativa ou filosófica. De modo geral, o homem é uma criatura de desejos, de receios e esperanças, de ódios e afeições. O homem primitivo, mais ainda do que o semidisciplinado homem moderno, era êsse animal de emoções e fantasias. O que o distinguia, substancial e permanentemente, dos demais animais era a memória. As suas experiências ficavam registradas e podiam ser recordadas. E êsse recordar ampliava o universo. Não vivia o homem sòmente entre as coisas físicas do seu reino material, mas entre as suas memórias e os seus símbolos. A diferença real entre os homens e os brutos está nessa quarta dimensão, da vida que é a preservação das experiências passadas, que é recordar ... isto é, reviver, tornar a viver a vida.

 

            Não se torna a viver a vida, porém, em um sentido estreitamente literal. Recorda-se do passado o que é interessante, ou o que fazemos interessante. Viver é quase sempre luta, aspereza e vicissitude. Recordar é, porém, quase sempre, amável, repousado e florido. Exercício de fantasia mais do que de inteligência.

 

            Podemos figurar o homem primitivo ou selvagem. Empenhado na luta animal pela existência, rodeado de perigos e incertezas, dever-lhe-ia, entretanto, sobrar tempo para longos e lntermináveis repousos. Na semi-obscuridade de sua imaginação êle recordava as suas lutas, as suas guerras, as suas aflições. Dêsses dias passados não subia porém a lâmina de fogo de uma análise ou exercício intelectual de exatidão prática, mas o fumo envolvente e delicioso das suas emoções revividas no prazer ou na pena da lembrança, libertada das perturbações e dores da realidade.

            O fato de que o homem não recordava senão para o seu deleite, empresta a êsse recordar o feitio mítico e fantasioso de drama e de poesia, que é o seu característico histórico. O homem primitivo - fora dos momentos vigorosos da luta ou da vida prática - vivia, assim, literalmente em um reino de memórias que eram sobretudo um reconto fantasiado de sua vida, um longo sonho acordado.

 

            A tradição que encontramos entre os povos primitivos e entre os civilizados - as mitologias, religiões e superstições - não eram, assim, ensaios de análise filosófica do universo, mas o resíduo consolidado das histórias que os homens de imaginação contavam aos companheiros, nos momentos amáveis de lazer e de folguedo.

 

            O hábito escolástico de considerar o homem um animal racional é que nos faz procurar nas lendas e mitologias o segrêdo de interpretação do universo.

 

            O homem é um animal capaz de ser racional, mas que só muito raramente o é. Não peçamos, pois, aos longínquos antepassados, o de que ainda somos, de certo modo, tão pouco capazes.

 

            O conjunto de crenças que a tradição elaborou, assim, entre os povos, não era obra de filósofos prirnitivos mas de primitivos poetas. Os conhecimentos - usado êsse têrmo com a mais explícita das reservas - que daí decorriam e que governavam a vida emocional da tribo ou da raça no seu aspecto político e religioso, só podiam subsistir porque essa vida se dividia em dois reinos isolados: o da prática e o dos ritos, cerimônias e lendas; o da realidade e o do espírito. As mais das vêzes, êsses dois reinos representavam duas classes distintas de pessoas. As primeiras ganhavam a vida, trabalhavam e lutavam com os conhecimento positivos e empíricos que vinha conquistando a humanidade e que lhe deram os instrumentos de caça e guerra, o domínio do fogo, e tôdas as artes práticas que permitiram ao homem viver. A outra classe de pessoas era a dos guardas das crenças, superstições e religiões, guardas do espiritual, que distribuíam aos demais homens as consolações e ilusões necessárias para florirem as árduas vicissitudes da sua luta.

 

            Por motivo de distinção social histórica, os dois grupos de produtos mentais - chamemo-los assim - o dos conhecimentos práticos e empíricos e o dos sonhos, tradições e ritos não se misturavam, como não se misturavam os homens que os serviam e que dêles se serviam.

 

            A classe dos sacerdotes ou dos guardas dessa tradiçao mitológica era a classe de domínio, de riqueza e de prestígio social. A mitologia se transformava, assim, em política. Distribuidores de ilusões e de consolações, os sacerdotes, os magos, os feiticeiros eram também os senhores, os donos e os tiranos. Havia, assim, um secreto interêsse em valorizar os produtos dessa tradição lendária e irracional da humanidade. Deve explicar-se, por aí, a persistência das superstições primitivas, mesmo entre povos que chegaram a urna expressão elevada de civilização.

 

            Se os conhecimentos artísticos da humanidade, isto é, os conhecimentos decorrentes da prática e da experiência, os conhecimentos que lhe deram as indústrias primitivas, se misturassem, fecundando-os, com os conhecimentos da tradição, muito outra seria a marcha do desenvolvimento intelectual do mundo.

 

            Isso, porém, foi obstado, sobretudo pela separação de classes entre os que labutavam nas indústrias e os que se entregavam ao estudo e à guarda das religiões e dos ritos. Tal divórcio, porém, acabaria por ser sentido. A massa de conhecimentos positivos, de conhecimentos concretos, conquistados pelos homens no contato com as coisas e a ação, crescia sempre. A incompatibilidade, entre êles e os costumes e ideais encarnados no código religioso e político dos povos, era inevitável. Aquêles promoviam as modificações, a ação e o progresso. Êstes promoviam a conservação das crenças, dos costumes e dos modos de viver. Não eram precisos intelectuais para descobrir o conflito. O conflito existia real, palpitante, irrespondível. Mais grave, porque nas crenças e nos costumes nunca houve idéia que por absurda deixasse de ser aceita. Tão pouco racional é o homem, que nunca a observação mais elementar pôde ser bastante para afastar as extravagâncias mais arrebatadas ou mais ingênuas que a imaginação do homem chegasse a elaborar.

 

            O conflito se pronunciou, assim, de fato, real e gritante, nas modificações trazidas pelo progresso das artes e do comércio e na incompatibilidade entre os velhos costumes e religiões e as necessidades crescentes de adaptação da humanidade ao real.

 

            JOHN DEWEY percebe aí a origem da filosofia, como tem sido ela entendida no mundo ocidental.

 

            O filósofo surgiu para reconciliar os dois mundos distintos, o do conhecimento empírico e positivo e o do conhecimento tradicional e religoso - em essência poético - da humanidade.

 

            Històricamente, apontava JOHN DEWEY o que se deu com o movimento dos sofistas na Grécia. E a própria designação pejorativa com que os ferretearam os contemporâneos, é uma indicação da violência com que o conflito foi sentido, quando formulado por êsses primeiros filósofos da nossa raça intelectual.

 

            Estranhar-se-á, entretanto, porque a luta não se feriu, de uma vez, e porque não surgiram da filosofia as regras luminosas do legítimo exercício da inteligência. De um lado, estavam os conhecimentos reais e positivos, empíricos e imperfeitos, é certo, mas que iam permitindo ao homem o contrôle das condições naturais e o erguimento de sua civilização material; do outro, os costumes, as tradições, as religiões, consolidados em um sistema político, mas desapoiados de racionalidade, de exatidão ou de utilidade prática. Por que não se deu a destruição, que nos poderia parecer inevitável?

 

            O progresso intelectual dos homens não se fêz por êsses golpes. Não há mesmo processo de mais apavorante lentidão do que o que veio permitindo à humanidade emergir vagarosamente da obscuridade primitiva para a inteligência.

 

            Entre os conhecimentos práticos e positivos do homem e os seus costumes e tradições religiosos e poéticos, havia a própria essência de sua natureza, que não é, senão por conquista, racional. Històricamente, a sua natureza é tôda afeição e ódio, temor e esperança, desejo e apetite. Com as tradições religiosas, poéticas e políticas estavam os seus sonhos, as suas memórias, o seu passado, os seus amigos, a sua segurança, as suas consolações, tôda a viva palpitação da comunidade. Com os conhecimentos práticos e positivos estavam algumas utilidades - bem poucas ainda - que não chegavam a consolá-lo, mas apenas lhe permitiam viver e sofrer.

 

            Todo o pêso das suas emoções o arrastava para a tradição. Tão grande era êsse pêso, que homens como Sócrates, Platão e Aristóteles, não levaram a sua audácia ao ponto de querer destruir as tradições, mas tão sòmente reconciliá-las com a razão. Se o primeiro foi condenado à morte, foi porque a reconciliação não era ato fácil como lhe parecia a êle próprio.

 

            O que êle, porém, não conseguiu, foram-no conseguindo os demais filósofos.

 

            Esta, a tese que DEWEY defende da origem da filosofia, quando não é puramente destrutiva oti heterodoxa.

 

            Pouco importa que, històricamente, a tese de DEWEY não esteja sempre com todo o apoio. O seu ponto de vista não é, por isso, menos interessante para nos esclarecer certos caracteres reais encontrados na filosofia ocidental.

 

            Em primeiro lugar, dada essa origem da filosofia, verifica-se que lhe faltou, de princípio, uma orientação desinteressada, sem preconceitos e sem parti pris. A filosofia não se iniciou para a busca pura e simples da verdade, fôsse ela qual fôsse. A filosofia se iniciou para reconciliar produtos mentais já existentes. A sua tarefa, a sua missão era a de revelar os valôres existentes nos dois mundos - o dos conhecimentos positivos e o das tradições, morais e religiosas. Nessa pesquisa dos valôres mentais e reais da humanidade, a filosofia precisaria ser heróica para erguer-se contra as instituições sociais do tempo. A filosofia preferiu justificar, a mudar. Nem mudar era possível. Assim a filosofia podia ser definida, històricamente, como a "justificação em fundamentos racionais, do espírito, embora não da forma, das crenças e costumes tradicionais". (JOHN DEWEY).

 

            Explica-se, daí, o feitio ambicioso da Filosofia, senhora da verdade última e final, da verdade universal, trazendo para objeto dos seus estudos uma verdade tão ampla e tão imutável, que nela viessem a reconciliar-se o conjunto de verdades fragmentárias dos homens.

 

            E, por outro lado, o feitio pedante, obscuro e aparatoso dos seus raciocínios e sistemas. "Porque lhe faltasse, diz DEWEY, racionalidade intrínseca ao objeto do seu estudo, a filosofia procurou recursos numa parada de formas lógicas".

 

            Para provar um fato real e prático, basta produzi-lo e apontá-lo aos outros - e êsse é o método fundamental de demonstração.

 

            Para provar, porém, "verdades de doutrinas que não podem ser aceitas senão pela autoridade do costume ou pela autoridades social e que não são suscetíveis de verificação empírica, não há outro meio que o de ampliar e encarecer os símbolos de rigorosa especulação e rígida demonstração".

 

            Decorre daí o caráter sibilino e sutil das filosofias, com especialidade das que, ainda depois dos gregos, foram arquitetadas na ldade Média, com a mesma orientação de justificar e racionalizar crenças e preceitos intrìnsecamente desprovidos de fundamentos racionais.

 

            A escolástica é, sem dúvida, pelo próprio abuso a que chegou, a ilustração mais rica e desenvolvida da atitude que estamos a comentar, aqui, a respeito da origem das filosofias.

 

            Resumindo, temos que a filosofia, dada a sua origem, não representou històricamente uma atividade desinteressada do espírito humano para a pesquisa da verdade; mas um esfôrço da inteligência, para justificar, com fundamentos racionais, costumes, crenças e instituições tradicionais da espécie humana.

 

            Daí os seus caracteres históricos:

 

            1) Ambição de explicar as coisas pelas suas razões finais e últimas.

 

2) Conseqüente caráter de universalidade do seu objeto, que incluía uma síntese completa do mundo e do homem.

 

3) Formalismo lógico a que teve de chegar dada a inverificabilidade dos objetos do seu estudo.

 

 

B) Aspectos modernos da filosofia

 

            Que evolução sofreu a filosofia nos tempos modernos, que tenha podido transformá-la de instrumento especializado de pesquisa de concepções engenhosas para a justificação e racionalização de verdades tradicionais, em um instrumento intelectual de trabalho para cada um de nós?

 

            Verifiquemos, em primeiro lugar, que as filosofias só ilusòriamente tinham objeto próprio. Se a origem que lhes indicamos é verdadeira, as filosofias eram mais um método que uma matéria. O seu objeto era, em realidade, o conflito entre as verdades diferentes da             humanidade. A sua finalidade, resolver, reconciliar êsses conflitos.

 

            Daí, porém, a passar à pesquisa de uma chamada verdade superior e final era tão simples que os "filósofos" não resistiram à tentação.    E, então, o chamado objeto da filosofia - o conhecimento das causas últimas e finais.

 

            Buscar as causas últimas e finais e, ainda, o seu conhecimento, é tarefa que a contingência dos homens e a contingência de um universo essencialmente precário e mutável nunca permitirão. O problema é, de si, sem sentido, desde que o homem adotou o método experimental.

 

            Porque já agora urge uma digressão.

 

            Vimos como desde os tempos mais remotos havia um conhecimento que provinha da ação e da prática, que era empírico e experimental, e que funcionava. O selvagem sabia que o atrito entre dois pedaços de pau produzia o fogo. E êsse saber era um saber real, prático e positivo, um saber que resultava. Entre os gregos já êsses conhecimentos empíricos eram imensamente mais avultados. Tôda a civilização artística e material da Grécia é um documento espantoso dêsse progresso.

 

            Por que, entretanto, os gregos, cuja agudeza de inteligência era tão proverbial, não puderam formular o método experimental e fazer dêle o instrumento de pesquisa da verdade em que se transformou mais tarde?

 

            Pela fôrça da tradição, pela constituição real da sociedade e por uma inexplicável e obstinada atitude de inteligência, os gregos não puderam descobrir êsse ôvo de Colombo que é o método experimental. Está, em parte em nossa exposição anterior, a tentativa de explicação histórica dêsse fato.

 

            Para escapar à incerteza e precariedade inquietadoras de um universo em permanente mudança, os homens buscaram, fora dêsse universo, ou nêle mesmo, na sua essência profunda, qualquer coisa de fixo ou de estável.

 

            A êsse fixo e estável, a êsse imutável, lhes pareceu caberem tôdas as qualidades que faltavam ao universo visível e experimentável. Tudo que se move, que passa e se transforma, é por essência imperfeito. Perfeito é só o que não muda mais, o que chegou à plenitude do ser, o que é, e nada mais. Decorria daí uma hierarquia de valôres. As coisas valiam mais, à medida que se aproximavam do completo ser. Tudo que mudava ou que sofria as contingências do que muda, estava impregnado de insuficiência, de imperfeição, de não ser. Entre a atividade prática do artesão e a atividade puramente intelectual do pensador, não podia, nessa escala, haver dúvidas quanto a graus de superioridade. Lidar com as coisas, fazer e construir, eram atividades inferiores. Só a atividade intelectual podia oferecer as condições de firmeza e imutabilidade que aproximavam o homem da suma perfeição. A atividade da razão era, portanto, superior à atividade física.

 

            Não era, pois, senão uma corrupção intelectual querer levar o raciocínio para a oficina ou laboratório.

 

            O dualismo grego entre o mutável e o imutável gerou todos os demais dualismos entre corpo e espírito, homem e natureza, fazer e pensar, conhecer e fazer, cultura e profissão, trabalho e lazer, etc., ctc.

 

            Todos se originam de uma concepção dualista do universo, em que a experiência humana não é percebida em sua continuidade, mas rompida em dois tipos diversos, uma contingente, inferior e incerta e outra fixa, estável e permanente.

 

            Semelhante dualismo impediu os gregos de se dedicarem ao método experimental e pertubou também   por vários séculos a marcha da inteligência humana, que se conservou até o século XVII nessa atitude estática e não progressiva.

 

            O reino dêsse dualismo sempre foi da filosofia. Graças a êle, a filosofia marcou passo indefinidamente, sendo objeto do humorismo humano que costumava comparar "o "filósofo" a um homem cego que procura num quarto escuro um chapéu prêto que lá não se acha".

 

            As causas últimas e finais, a compreensão total do cosmos e o caráter metacientífico de seus métodos - bastaram para fazer o descrédito da filosofia e dos fundadores de sistemas filosóficos.

 

            Que resta, então, hoje da filosofia?

 

            A reconstrução da filosofia, nos tempos modernos, acompanhou a mesma história da reconstrução do pensamento científico ou artístico.

 

            A velha atitude do filósofo, fundador do último sistema, e êsse, afinal certo e permanente, deu lugar à atitude muito mais razoável e modesta do filósofo moderno que busca auxiliar a estabelecer o mais compreensivo método de julgar, com integridade e coerência, os valôres reais da vida atual, para o efeito de dirigi-Ia para uma vida cada vez melhor e mais rica.

 

            A história das filosofias, como a história das diversas verdades permanentes e eternas descobertas pelo homem, pode merecer os nossos motejos. Mas se a compreendermos como a história "das aspirações, dos protestos e dos predicamentos da humanidade", é a mais maravilhosa das histórias.

 

            À luz dêsse critério, a filosofia é um processo em marcha transformando-se, modificando-se, reconstruindo-se na medida que o homem opera, nas outras províncias de suas pesquisas, transformações, modificações e reconstruções.

 

            Os velhos caracteres de totalidade, universalidade e última-causalidade são conservados, mas reinterpretados à vista das condições modernas.

 

            Hoje, como nas suas origens, é a filosofia uma tentativa de "compreender" os aspectos da vida e do mundo em um todo único, para dar sôbre a experiência humana, em sua totalidade, uma visão tão completa e coerente quanto possível. Nesse sentido a filosofia se distingue da ciência, que é a série de conhecimentos verificados e sistematizados, não importando em nenhuma atitude geral sôbre as coisas. Quando começa a desprender-se da ciência essa atitude geral para com o homem e para com o universo, a ciência imerge na filosofia.

 

            Por conseguinte, o caráter de generalidade e universalidade da filosofia não o é com relação ao objeto do seu conhecimento, mas em relação à direção e atitude em que se busca êsse conhecimento. Procura-se, aí, com efeito mais um ponto de vista coerente e harmônico em relação à pluralidade de acontecimentos que ocorrem e os conhecimentos que possuímos, do que um nôvo conhecimento geral e universal.

 

            Em relação às últimas causas, também se faz sentir o ponto de vista moderno. Não é que se busquem realmente hoje causas últimas. É que, se em relação à ciência o que se busca é a verdade, no sentido da sua objetividade verificável, em relação à filosofia o que se busca é penetrar no sentido íntimo e profundo das coisas. O sentido das coisas não se confunde com a verdade, como nos habituamos a considerá-la em ciência.

            É essa uma distinção que me parece de grande alcance. Há verdades e há "coisas significativas", digamos assim, para traduzir o meaning inglês.

 

            A verdade diz respeito a fatos e existências. No mais, não há verdades, mas interpretações, sentidos, valôres. Ao ouvirmos uma sinfonia de Beethoven, não há uma verdade a verificar, há um sentido a perceber que pode ser menos ou mais profundo.

 

            Em relação à filosofia, a atitude é muito semelhante. A filosofia não busca verdades no sentido estritamente científico do têrmo, mas valôres, sentido, interpretações mais ou menos ricas da vida.

 

            Vai às "causas últimas" para usar a velha expressão, porquanto nos deve levar à compreensão mais larga, mais profunda e mais cheia de sentido que fôr possível obter, do universo, à vista de tudo que o homem fêz e conhece na terra.

 

            Filosofia tem assim tanto de literário quanto de científico. Científicas devem ser as suas bases, os seus postulados, as suas premissas, literárias ou artísticas as suas conclusões, a sua projeção, as suas profecias, a sua visão. E nesse sentido filosofia se confunde com a atividade de pensar, no que ela encerra de perplexidade, de dúvida, de imaginação e de hipotético. Quando o conhecimento é suscetível de verificação, transforma-se em ciência, e enquanto permanece como visão, como simples hipótese de valor, sujeito aos vaivéns da apreciaçao atual dos homens e do estado presente das suas instituições, diremos, é filosofia.

 

            Filosofia é, assim, na frase de DEWEY, "a investigação e a inquirição sôbre o que exige de nós o conjunto de conhecimentos atualmente existente ou o conjunto dos conhecimentos que temos".

 

            Essa noção nos leva ao conceito de WILLIAM JAMES, quando afirma que todos possuímos uma filosofia, que é o sentido mais ou menos obscuro ou lúcido que temos do que a vida, honesta e profundamente, significa para cada um de nós. E é com êsse conceito, que podemos desdobrar indefinidamente, que desejamos mostrar a relação íntima e profunda entre a filosofia e a educação.

 

            Se a filosofia é a indagação da atitude que devemos tomar diante das incertezas e conflitos da vida, filosofia é, realmente, como o queriam os antigos, a mestra da vida. É exatamente porque há dúvidas e incertezas e perplexidades que temos necessidade de uma filosofia. É porque o que sabemos em ciência briga com o que sabemos em religião e com o que sabemos em arte e estética e o que sabemos em economia, que precisamos de filosofia.

 

 

 

C) Filosofia e educação

 

            Nos dias de hoje, quando a ciência vai refazendo o mundo e a onda de transformação alcança as peças mais delicadas da existência humana, só quem vive à margem da vida, sem interêsses e sem paixões, sem amôres e sem ódios, pode julgar que dispensa uma filosofia.

 

            Só com uma vida profundamente superficial podemos não sentir as solicitações diversas e antagônicas das diferentes fases do conhecimento humano, e os conflitos e perplexidades atordoantes da hora presente.

 

            Na medida de nossas fôrças, construímos, então, uma filosofia e a ela nos acomodamos, tão bem como tão mal, em nossa ânsia e inquietação de compreender e de pacificar o espírito. Tais filosofias Individuais não se articulam, porém, em sistemas filosóficos. Êsses, quando não são criações pedantes de gabinete, mas expressões reais de filosofia, representam e caracterizam uma época, um povo ou uma classe de pessoas. Porque, no sentido realístico de que falamos de filosofia, tal seja a vida, tal seja a civilização, tal será a filosofia. A filosofia de um grupo que luta corajosamente para viver, não é a mesma de outro cujas facilidades transcorrem em uma tranqüila e rica abundância.

 

            Conforme o tipo de experiência de cada um, será a filosofia de cada um.

 

            A vida vai, porém, assumindo aspectos mais gerais, dia a dia, e os predicamentos da filosofia irão também, assim, dia a dia, se aproximando.

 

            À medida que se alargam os problemas comuns, mais vivamente sentida será a falta de uma filosofia que nos dê um programa de ação e de conduta, isto é, uma interpretação harmoniosa da vida e das suas perplexidades.

 

            Está aí a grande intimidade entre a filosofia e a educação. "Se educação é o processo pelo qual se formam as disposições essenciais do homem - emocionais e intelectuais - para com a natureza e para com os demais homens, filosofia pode ser definida como a teoria geral da educação", diz DEWEY.

 

            "Com efeito", acrescenta êsse autor, "a não ser que uma filosofia seja puramente simbólica ou verbal, ou predileção sentimental de alguns, ou simples dogma arbitrário, o seu julgamento da experiência e o seu programa de valôres deve concretizar-se na conduta e, portanto, em educação. E, por outro lado, se a educação não quer se transformar em rotina e empirismo, deve permitir que os seus fins e os seus métodos se deixem animar pelo inquérito largo e construtivo da sua função e lugar na vida contemporânea, que à filosofia compete prover".

 

            Filosofia se traduz, assim, "em educação, e educação só é digna dêsse nome quando está percorrida de uma larga visão filosófica. Filosofia da educação não é, pois, senão o estudo dos problemas que se referem à formação dos melhores hábitos mentais e morais em relação às dificuldades da vida social contemporânea".

 

            Considerada assim, a filosofia, como a investigadora dos valôres mentais e morais mais compreensivos, mais harmoniosos e mais ricos que possam existir na vida social contemporânea, está claro que a filosofia dependerá, como a educação, do tipo de sociedade que se tiver em vista.

 

            A filosofia de uma sociedade democrática é diversa da filosofia de uma sociedade despótica ou aristocrática.

 

            Admitindo que nos achamos em uma sociedade democrática servida pelos conhecimentos da ciência moderna e agitada, em princípio, pela revolução industrial iniciada no século XVIII, a filosofia deve procurar definir os problemas mais palpitantes dessa nova ordem de coisas e armá-los para as soluções mais prováveis.

 

            Nenhuma das soluções pode ser definitiva ou dogmática. A filosofia de uma sociedade em permanente transformação, que aceita essa transformacão e deseja torná-la um instrumento do própria progresso, - é uma filosofia de hipóteses e soluções provisórias.

 

            O método filosófico será, assim, experimental, no sentido de que as soluções propostas serão hipóteses sujeitas à confirmação das conseqüências.

 

            Os ideais e aspirações, contidos no sistema social democrático, envolvem a igualdade rigorosa de oportunidades entre todos os indivíduos, o virtual desaparecimento das desigualdades econômicas e uma sociedade em que a felicidade dos homens seja amparada e facilitada pelas formas mais lúcidas e mais ordenadas. Essas aspirações e êsses ideais serão, porém, uma farsa, se não os fizermos dominar profundamente o sistema público de educação.

 

            WELLS disse, em alguma parte, que estamos hoje a assistir, no mundo, a um páreo entre a educação e a catástrofe iminente da civilização.

 

            Sem chegarmos à hipóese vigorosa de WELLS, reconheçamos que nunca se pediu tanto à educação e nunca foram ão pesadas as responsabilidades qe estão sôbre os nossos ombros.

 

            De todos os lados lhe batem à porta. De todos os lados as instituições humanas se abalam e se transformam. Transforma-se a família, transforma-se a vida econômica, transforma-se a vida industrial, transforma-se a igreja, transforma-se o estado, transformam-se tôdas as instituições, as mais rígidas e as mais sólidas - e de tôdas essas transformações chegam à escola um eco e uma exigência ...

 

            A escola tem que dar ouvidos a todos e a todos servir. Será o teste de sua flexibilidade, da inteligência de sua organização e da inteligência dos seus servidores.

 

            Êsses têm de honrar as responsabilidades que as circunstâncias lhes confiam, e só o poderão fazer, transformando-se a si mesmos e transformando a escola.

 

            O professor de hoje tem que usar a legenda do filósofo: "Nada que é humano me é estranho".

 

            Tem de ser um estudioso dos mais embaraçosos problemas moderno, tem que ser estudioso da civilização, tem que ser estudioso da sociedade e tem que ser estudioso do homem; tem que ser, enfim, filósofo ...

 

            A simples indicação dêsses problemas demonstra que o educador não pode ser equiparado a nenhum técnico, no sentido usual e restrito da palavra. Ao lado da informação e da técnica, deve possuir uma clara filosofia da vida humana, e uma visão delicada e aguda da natureza do homem.