SILVEIRA, Joel. O estadista da educação. Gazeta Mercantil. 4 ago. 2000. p.24.

O Estadista da Educação

Joel Silveira

Se vivo fosse (e, de um certo modo, ele continua mais vivo que nunca), Anísio Teixeira teria completado 100 anos no dia 12 de julho último. E certarnente estaria envolvido numa batalha (talvez provocada por ele mesmo) pelo aprimoramento da educação no Brasil, seu tema predileto. Nessas pugnas, das quais jamais saiu vencido, Anísio Teixeira se utilizou de duas armas que aos seus adversários sempre se mostraram temíveis: o conhecimento pleno da matéria e a sua espantosa lucidez.

Hermes Lima, seu colega de escola em Caetité, no interior baiano, onde os dois nascerarn, e em seguida seu amigo para a vida toda, foi quern primeiro chamou Anísio de "o estadista da educação", que é também o título da biografla que escreveu do velho amigo. E a lucidez do mestre baiano ninguém melhor definiu do que o próprio Hermes. Era essa incomum lucidez que o permitia, num só relance, num só golpe de vista, alcançar todas as dimensões e limites da questão que ia debater, e nesses combates ele sempre teve pela frente reacionários e inovadores. Quanão Anísio não estava às voltas com o obscurantismo dos primeiros tinha como adversário o ímpeto por vezes descontrolado dos inovadores. De tanto conhecê-los e corn eles privar, em gestas que se tornaram famosas, ele conseguiu defini-los corn precisão, lhes traçanão o perfil exato. "Há urn tipo de reacionário - escrevia ele no seu 'Educação não é Privilégio' - e um tipo de renovador (...) que têm urn traço comum de inteligência, traço tão essencial que os faz paradoxalmente idênticos na ação. Ambos são eminentemente românticos. O 'reacionário' deseja conservar urna 'situação' que só existe em sua cabeça, construída pela sua imaginação, pela sua falta de capacidade de observação ou pela sua ingenuidade. O 'inovador' deseja a instalação imediata e definitiva de uma outra situação, também ideal, que só poderá ser conquistada depois de mil e um reforços, muitos dos quais em ziguezague - não se escalam montanhas de outro modo -, esforços que a pressa romântica de sua imaginação não os deixa compreender e que a preguiçaa da ação não lhes permite realizar. Tais 'reacionários' e tais 'inovadores' voltam ao passado ou chegarn ao futuro por caminhos aéreos, que nunca foram construídos."

Como assinalou Hermes Lima (Iivro citado), Anísio Teixeira utiliza-se, na sua luta contra aquelas duas categorias, o método (ou os métodos) do que chamava "marcha progressiva", ou seja, o desdobramento dos fins gerais em fins parciais, até se chegue às soluções corretas. O que ele conseguia. Para Anísio, um problema ou uma questão, por mais debatidos que tenham sido, nunca serão definitivamente solucionados ou explicados. Pode ser alcançada uma solução momentânea, o que de forma alguma significa a solução definitiva, a que encerra a questão. Debater, debater e debater - era o lema de Anísio. Em toda a sua vida de educador e em todos os seus cargos públicos (sempre ligados à educação) Anísio fez sempre duas coisas: ensinar e debater, ou, se quiserem, debater enquanto ensinava.

"A inteligência de Anísio Teixeira" - escreveu Josué Montello em artigo de 12 de setembro de 1977, no "Jornal do Brasil" - "Se realizava esplendidamente no corpo-a-corpo com a folha de papel. em branco, na reclusão de um gabinete de trabalho, era ainda mais viva, mais brilhante, mais luminosa nas surpresas de urn debate. Por isso, quem conheceu o escritor pelos livros, admiti-o como urna das figuras mais altas da cultura brasileira; mas só o conheceu verdadeiramente, na força impetuosa de sua inteligência incomparável, quem teve a sorte de o ouvir nos instantâneos de suas intervenções improvisadas. Anísio, nessas ocasiões, não precisava pedir silêncio aos circunstantes. O silêncio vinha por si, abrinão espaço imediato à palavra do orador. A figura pequena, miúda mesmo, com algo de adolescente no seu todo franzino, como que atuava por explosões sucessivas."

O debate exaustivo e sereno, em que a ênfase não tinha lugar, o desenvolvimento, degrau por degrau, conforme o método socrático, da matéria debatida, era o que interessava a Anísio. Debater corn ele requeria ser conhecedor profunão e em todos os ângulos do assunto debatido, e também nunca recorrer a reticências, como se a questão tivesse se esvaido antes de chegar à conclusão ou solução exigida.

Muitas vezes, no Rio, quanão ele ocupava a Secretaria de Educação do governo do então Distrito Federal, ou estava à frente do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, ern Salvador, tive oportunidade de assistir a um desses debates, nos quais, como observou Montello, a sua inteligência se mostrava ern sua plenitude, em que seu talento revelava todas as suas facetas. Num país de boquirrotos e falastrões, como é o nosso, Anísio Teixeira destacava-se pela eloqüência sem tropos nem arrancos eloqüentes, mas fruto de um pensamento rigorosamente coordenado. A esses recursos, nada enfáticos, Anísio acrescentava a sua própria postura pessoal, a de estadista: era uma pessoa de trato ameno, de extremo respeito para com os adversários - em resumo, ele debatia, mas não brigava. Corn exceção daqueles que não seguiam a sua cartilha política (a de um liberal sempre à esquerda do liberalismo), que não gostavam dele porque não gostavam de suas idéias, Anísio Teixeira nunca teve inimigos.

O que pretendeu Anísio Teixeira em toda a sua vida, por meio de seus livros, de sua atuação, dos seus ensinamentos e debates? Apenas isso: colocar no Brasil a educaçào a serviço e ao alcance do povo, fazer com que os bancos das escolas, dos ginásios, das faculdades e universidades não continuassern a ser (e em grande parte continuam) territórios de uma elite obscurantista, que em nosso país sempre enxergou no cidadão instruído e letrado o inimigo número um dos seus privilégios. Nem sempre ele saiu ileso dessa corpo-a-corpo, acirrada e por vezes desigual. O reacionarismo, o obscurantismo, armas das elites, nunca deixaram de Ihe morder os calcanhares, perseguiram-no durante a vida toda, ameaçando-o com prisões e com o exílio - este último finalmente consumado em 1964, por exigência dos dogmas que norteavam a ditadura militar. "Anísio Teixeira" - escreveu Hermes Lima (entrevista a "O Globo" de 28 de julho de 1978) - "padeceu porque entendia que o país necessitava de uma educação que correspondesse à entrada na civilização industrial e técnica modema. Foi exatamente nessa tarefa de prepará-la para isto que Anísio Teixeira teve de enfrentar dificuldades (as mesmas pelas quais iria passar Darcy Ribeiro), preconceitos que tornaram sua trajetória no ensino quase uma verdadeira batalha."

Mas suas vitórias, no campo da educação, foram monumentais, como é o caso da instituição, por ele sempre preconizada, de um completo sistema educacional que ia do ensino primário à Universidade do Distrito Federal, esta instalada em 1934. E como seriam os centros educacionais, precursores dos Cieps de hoje. O que hoje mais nos impressiona é saber que a Igreja Católica, por meio principalmente do Centro Dom Vital, do Rio, sempre formou, quando não liderou, na primeira linha dos mais intolerantes adversários de Anísio e de suas idéias. E impressiona mais ainda o fato de a guerra do Centro Dom Vital ter sido comandada por Alceu Amoroso Lima, de indiscutível inteligência e cultura. E verdade que anos depois, após o surpreendente salto que o levou do catolicismo ortodoxo a um esquerdismo com Deus, Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) viesse a formar entre os mais destacados defensores de Anísio e de suas idéias, anos atrás por ele, Alceu, rotuladas de "comunistas". Até na morte - ainda hoje não suficientemente esclarecida - Anísio Teixeira despertou polêmica. Escreve Hermes Lima: "A 19 de março de 1970, depois de desaparecido por dois dias e meio, foi Anísio encontrado sem vida no poço de um edifício ao começo da avenida Rui Barbosa até onde fora, saindo a pé da Fundação Getúlio Vargas por volta das cinco e meia da tarde, para fazer, com candidato à Academia Brasileira de Letras, uma visita protocolar. À casa do acadêmico, onde era esperado, ele não chegou!"

Uma morte sem dúvida trágica, misteriosa até hoje, a daquele homem que aos 70 anos tinha a aparência de uma pessoa de 50, de porte longilíneo e gestos ágeis. Era certa a eIeição de Anísio Teixeira para a Academia, talvez pela unanimidade, ou quase, dos acadêmicos.

Ao sair do cemitério, após o enterro do velho amigo, Hermes Lima escutou estas palavras de Péricles Madureira de Pinho:

- Agora temos de aprender a vivyer sem Anísio.

E a mim, poucos dias após a morte de Anísio e recordando as palavras de Madureira do Pinho, Hermes Lima me dizia:

- Vai ser de fato muito difícil viver sem Anísio. Eu, pelo menos, não vou conseguir. A não ser...

- Uma interrupção, que me obrigou à pergunta:

- A não ser o que, professor?

- A não ser que eu comece a fingir que ele não morreu, que continua vivo.

Se vivo fosse, Anísio Teixeira estaria se entregando, com todo o entusiasmo e disposição de guerreiro aos dias do Brasil atual, onde a educação voltou a ter prioridade. Que cargo estaria ele ocupando no Exec,utivo ou no Legislativo - e isso levando-se ern conta que ele não nasceu ern 1900, mas, digamos, em 1920? Senador? Deputado federal? Ministro da Educação? Se lúcido ele era aos 70 anos, quando morreu, mais lúcido certamente seria aos 60 - que os leitores nos perdoern a obviedade. Aos 60 anos estava disposto a qualquer combate, não teria enjeitado nenhum desafio, fugido de nenhuma batalha. Contanto que essa batalha fosse na defesa dos seus princípios doutrinários, como homern político e de pensamento, e de suas diretrizes, longamente definidas e assentadas, referente aos problemas da educação no Brasil. Problemas, maiores ou menores, que são apenas decorrência do problema-mor, que é o da escola moderna como meio de abrir as portas do nosso país à civilização mais avançada. "A escola - pregava ele, e isso ensina em seu já clássico "Educação não é Privilégio" - não poderia ser apenas urn trampolim, mas a fonte de uma base sólida para a cidadania e o trabalho." Nessa equação resume-se todo o seu apostolado no terreno da educação, dela partern todas as variantes que o seu poder criativo foi sugerindo e aperfeiçoando numa só luta em favor de uma só causa.

Já em 1932, como um dos seus signatários (e possivelmente um dos seus redatores), ele deixa a marca de sua presença, como uma impressão digital que não pode ter uma dupla ou um clone, no manifesto dos pioneiros da educação nova. Intitulado de "A Reconstrução Educacional no Brasil", o manifesto (uma iniciativa de outro educador de peso, Fernando de Azevedo) "revelava-se (escreve Hermes Lima) (...) contra o ernpirismo dominante, propugnava no estudo e na solução dos problemas educativos por orientação tão científica como nos domínios das ciências técnicas e sociais. Transferia do puro terreno burocrático administrativo para os planos políticos e sociais o encaminhamento dos problemas escolares nurn país que, patentemente, aspirava incorporar-se à moderna civilização industrial. Expungia da área da educação o preconceito elitista, a preguiça doutrinária, as improvisações do ernpirismo. Advogava como primordial o papel do Estado em face da educação, 'função essencialmente pública'. Reivindicava a escola única, além dos princípios de laicidade, gratuidade, obrigatoriedade e co-educação."

Assinavarn o manifesto, que tanta celeuma causou e tantas discussões despertou quando de sua divulgação, em 1932, figuras exponenciais da cultura brasileira, de um modo geral, e da política educacional em particular, gente, além de Fernando de Azevedo, do calibre de um Afrânio Peixoto, e outros, como Sampaio Dória, Lourenço Filho, Roquete Pinto, J. G. Frota Pessoa, Júlio de Mesquita Filho, Raul Briquet, Mário Cassassanta, Delgado de Carvalho, Almeida Júnior, J. P. Fontenelle, Rolddo Lopes de Barros, Noemy M. da Silveira, Hermes Lima, Atílio Vivacqua, Venâncio Filho, Paulo Maranhão, Cecília Meirelles, Edgar Sussekind de Mendonça, Armando Álvaro Alberto, Garcia de Rezende, Nóbrega da Cunha, Paschoal Leme e Raul Gomes.

O manifesto.de 32 tinha suas linhas mestras. Era contra, por exemplo, e da maneira mais radical, todos aqueles que pretendem fazer do ensino um negócio lucrativo como outro qualquer. De volta dos Estados Unidos, foi Anísio o primeiro divulgador entre nós do pensamento de John Dewey, o grande educador americano, veiculando no Brasil suas idéias revolucionárias e traduzindo alguns dos seus livros capitais, entre eles "Vida e Educação", para o qual fez o prefácio da edição brasileira. Dewey foi uma constante e uma referência em toda a vida de educador de Anísio Teixeira. Ele via no mestre americano a altura máxima a que chegara a educação moderna. "Lapidado pelos Estados Unidos", como dele disse Monteiro Lobato, Anísio nunca cessou de incluir o pensamento e os métodos educacionais de John Dewey na pregação em favor da modernização educacional brasileira. E foi principalmente Dewey, de formação presbiteriana e mesmo jesuítica, o seu grande aliado em suas batalhas maiores, como aquela que trabalhou contra os inflamados e intolerantes bispos gaúchos, que o rotulavarn de "professor de comunismo".

Sem nunca se ter filiado a um partido político - e Hermes Lima fracassou em todas as suas tentativas de levá-lo para o Partido Socialista Brasileiro -, Anísio não tinha constrangimento em ir buscar nas nossas mais diferentes correntes partidárias aquele que sabia poder vir a ser urn aliado.na sua cruzada. Essa eqüidistância diante dos partidos políticos é decorrência de uma frase que certa vez ouvira do seu pai e que dela havia feito uma lição para nunca ser esquecida, a ser seguida sempre:

"Meu filho, não se obedece a homern algum, obedece-se à lei."

Mais ou menos, noutras palavras, a mesma coisa lhe ensinou Dewey. Obedeça-se às leis; e se estas não bastam, são insuficientes para a solução dos problemas, que outras sejam sugeridas, criadas e instituídas. Mas que haja sempre a lei. No dia seguinte à morte de Anísio, seu arnigo de longa data, ou o "amigo e mestre de sempre", Jorge Amado publicou em "A Tarde", de Salvador, um comovido depoimento sobre o homem que tanto admirava. E finaliza o artigo com estas palavras: "Foi o mais modesto dos grande homens, o mais simples, o que menos desejou para si próprio. O mais ambicioso, porém, em relação ao Brasil e ao homem brasileiro. Ninguém como ele era tão capaz de acreditar e confiar nos demais, de ver e revelar as qualidades de cada um e de valorizá-las, de conseguir estabelecer a confiança e descobrir valores."

Sem querer, ao escrever sobre o amigo que acabara de perder, Jorge Amado traçara o epitáfio mais exato a ser gravado no túmulo de Anísio Teixeira, "mestre e amigo", "o mais humilde dos grandes homens".

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