MARTINS, Wilson. A reforma do ensino. O Estado de São Paulo. São Paulo, 14 dez 1957.

ÚLTIMOS LIVROS

A reforma do ensino

WILSON MARTINS

No que se refere à educação em nosso País, são duas, creio eu, as idéias essenciais do sr. Anísio Teixeira: a "escola universal" e a "escola integradora", isto é, iguais e efetivas possibilidades de acesso aos diversos graus de ensino, num sistema que, em lugar de "classificar" o beneficiário sob o ponto de vista social, classifique-o sob o ponto de vista "profissional". Jogando com o título do seu último livro (1) , pode-se dizer que ele encara a educação como um privilégio democrático, o mais típico, talvez, e, em todo caso, o mais importante e característico dos privilégios democráticos: não há democracia sem opinião pública esclarecida e não há opinião pública esclarecida sem educação. Proclamado pela primeira vez na Convenção Francesa "o ideal de uma educação escolar para todos os cidadãos, não se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em uma nova concepção de sociedade, em que privilégios de classe, de dinheiro e de herança não existissem, e o indivíduo pudesse buscar, pela escola, a sua posição na vida social. Desde o começo, pois, a escola universal era algo de novo e, na realidade, uma instituição que, a despeito da família, da classe e da religião, viesse a dar a cada indivíduo a oportunidade de ser, na sociedade, aquilo que seus dotes inatos, devidamente desenvolvidos, determinassem" (págs, 10/11). A "escola universal" concilia, ou tenta conciliar, nos seus fundamentos, dois objetivos á primeira vista contraditórios, mas que se resolvem, efetivamente, numa síntese democrática: por um lado, ela se funda no princípio igualitário dos direitos; por outro lado, ela não só respeita, mas estimula, as diferenças de mérito (únicas legítimas, do ponto de vista individual e social) compreendidas, ao contrário do que vulgarmente se crê, entre os princípios essenciais da filosofia democrática.

Entretanto, o vício formalista do espírito e, em particular, do espírito brasileiro, transformou a educação, de meio que era, e deve ser, para a formação da personalidade, num fim em si mesma e fez o diploma escolar, simples "presunção de preparo", um "atestado de preparo" (pág. 112). Sobretudo no Brasil, que passou á margem da Revolução Francesa, a escola conserva pelo menos dois traços arcaicos e arcaizantes: por um lado, ela ainda é, em grande parte, um privilégio, reservado ás classes mais favorecidas e confere, em conseqüência, um "status" social que nada tem a ver com a capacidade individual; por outro lado, ela é formalista e, por isso mesmo, arcaica, no que se refere aos métodos pedagógicos, ás coisas ensinadas e ás portas que abre. Tem razão o sr. Anísio Teixeira ao condenar, ainda uma vez, as nossas "formas arcaicas do ensino pela "exposição oral" e "reprodução verbal" de conceitos e nomenclatura, mais ou menos digeridos por simples "compreensão", as quais dominam esmagadoramente a escola primária, a escola média, sobretudo a secundária, e a maior parte das escolas superiores. A atividade escolar consiste em "aulas", que os alunos "ouvem", algumas vezes tomando notas, e nos "exames", em que se verifica o que sabem, por meio de provas escritas e orais. Marcam-se alguns "trabalhos" para casa e na casa se supões que o aluno "estuda" - o que corresponde a fixar de memória quanto lhe tenha sido oralmente ensinado nas aulas. (...) Ensinam-se, por esse método expositivo, informações teóricas sôbre as línguas (latim, português, francês, inglês, espanhol), sôbre a geografia e a história, sôbre as ciências, e até sôbre a música e o trabalho manual. Como a escola é de "cultura geral", nada tem de caráter prático. Raramente se consegue ler ou escrever qualquer daquelas línguas, inclusive o português, mas sabe-se de cor uma porção, ás vêzes considerável, de noções gramaticais sôbre essas línguas e alguns trechos familiares podem ser traduzidos ou vertidos pelos alunos, desde que os trechos tenham sido "dados" nas aulas" (págs. 21/23). Na verdade, o câncer formalista está muito mais avançado do que deixaram supor essas palavras do sr. Anísio Teixeira: é que, pouco a pouco, se verificou, inclusive, a inutilidade de adquirir ou de conservar aquelas informações teóricas. Em nossos dias, elas são transmitidas cada vez com mais descaso e recebidas cada vez com maior indiferença. Isso é verdadeiro sobretudo no que se refere ao ensino secundário, chave de abobada, entretanto, de todo o sistema educacional. O que importa ás novas gerações brasileiras não é saber, mas poder usufruir dos benefícios que o saber proporciona; não é o conhecimento, mas a licença de exercer as atividades que o pressupõem. Assim "as nossas escolas, (...) arcaicas nos seus métodos e ecléticas senão enciclopédicas nos currículos, não são de preparo verdadeiramente intelectual, não são práticas, não são tecnico-profissionais, nem são de cultura geral, seja lá em que sentido tomarmos o termo. Mas são, por força da tradição, escolas que "selecionam", que "classificam" os seus alunos. Passar pela escola, entre nós, corresponde a especializar-se para a classe média ou superior. E aí está a sua grande atração. Ser educado escolarmente significa, no Brasil, não ser operário, não ser membro das classes trabalhadoras" (págs. 27/28).

Assim, como tive ocasião de observar numa das aulas do Seminário de Professores Primários, promovido em janeiro de 1957 pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, "a escola continua a ser, em grande parte, no Brasil, um fator de alienação e não uma força de integração", exercendo funções duplamente desenraizadoras: por um lado, mantém-se indiferente á realidade sociológica que a envolve e, por isso mesmo, fazendo do ensino um instrumento de ascensão social, em lugar de encará-lo como um gerador de ajustamento, cria, não cidadãos e homens para o seu País e para o seu destino individual, mas desajustados e descontentes, marginais em quem uma educação que não merece esse nome agiu a contra-senso, deseducando-os e mutilando-lhes as próprias possibilidades de viver. É que, como escreve o sr. Anísio Teixeira, em outro livro, também recentemente publicado e que alcançou a repercussão que merece (2), a educação escolar em nosso País "se ligou indissoluvelmente á idéia de que era um meio de conseguir o indivíduo uma posição social de caráter dominante, conservando-a, se já a tivesse, ou adquirindo-a, caso proviesse de camada social menos privilegiada". A educação brasileira, como escrevia Ronald de Carvalho, "prepara revoltados", é uma educação de "delfins" perfeitamente alheada do mundo e crescentemente reduzida á condição de mera formalidade administrativa; ora, educar, ensinava naquele mesmo volume o sr. Anísio Teixeira, é "educar para ser cidadão", é ensinar "algo de suficientemente diversificado nos seus objetivos para poder cobrir as necessidades do trabalho diversificado e vario da vida moderna e dar a todos os educandos reais oportunidades de trabalho". Assim voltamos ao Rousseau do Emilio - "esse livro tão lido, tão pouco compreendido e tão mal apreciado" - que se felicitava de ter ensinado o seu discípulo a "ganhar o seu pão". Mas Rousseau tinha, e não podia deixar de ter, uma concepção estática de educação, enquanto a nossa concepção é, e não pode deixar de ser, dinâmica. Com efeito, a educação deve atender hoje em dia e deve de uma certa forma prever todas as imprevisíveis necessidades de uma sociedade em mudança. Até a Revolução Industrial, ou, se se quiser, até á Revolução Francesa, a sociedade se caracterizava por sua estabilidade: ela se organizava em camadas mais ou menos imutáveis, a tal ponto que muitos as acreditavam definitivas. O "Emílio" é ainda educado para viver nessa sociedade sem surpresas, bem ordenada segundo as leis de uma misteriosa Providencia e tão imóvel que não hesitou em se qualificar a si mesma de "clássica". De então para cá, o fenômeno que os especialistas chamam de "aceleração da história" não apenas introduziu na vida grupal a realidade dinâmica da mudança, mas implantou a mudança como um estado permanente. O que era anormal e transitório tornou-se normal e definitivo. Nada indica que possamos regressar á sociedade estável dos nossos avós e, ao contrário, tudo deixa presumir que as modificações, a circulação sociológica, nos sentidos horizontal e vertical, se mostrarão cada vez mais intensas. A reforma social sob todos os seus aspectos - materiais e morais, políticos e técnicos - colocou a sociedade sob o signo do movimento.

Ora, a educação não pode ignorar essa realidade e deve, mesmo, servi-la da maneira mais eficiente possível: ao contrário do que se pensa, a democracia é um regime de elites e não um regime de massas. Simplesmente, essas elites selecionam-se pelo critério do mérito individual e não pelos acasos da fortuna, da herança ou da força. A educação brasileira, que "classifica" o aluno, lançando-o "entre os privilegiados e semiprivilegiados da Nação" (pág. 35), só está errada por partir de um conceito errôneo dos privilegiados, que são individuais, intransferíveis e intransmissíveis, e não sociais e hereditários; assim, a democracia da escola pública, permitindo ao pobre "uma educação pela qual pudesse ele participar da elite" (pág. 38), não merece, em sua verdadeira natureza, a crítica que lhe faz o sr. Anísio Teixeira. A meu ver, não se trata nem de dar ao pobre a educação conveniente ao rico, nem de dar ao rico a educação conveniente ao pobre: em verdade, o princípio mesmo da escola pública exclui, por definição, as noções de pobre e de rico. A educação "comum" das sociedades democráticas é "comum" por ser idêntica para todos os cidadãos e por ser ministrada "em comum": se o ideal democrático estipula necessariamente a "igualdade de oportunidades", não exclui, antes favorece, a "desigualdade dos resultados", esta última correspondendo á democrática "igualdade proporcional’ de que falava Aristoteles. É a própria idéia de "classe " que deve ser abolida: se o filho de operários manifestar, por qualquer inesperada conformação de espírito, o gosto e a vocação dos estudos desinteressados, nada deve impedi-lo de realizá-los e nada deve constrangê-lo aos estudos técnicos e industriais; da mesma forma, e em contrapartida, nada deveria obrigar o filho das famílias ricas a cursar humanidades. Assim chegaríamos a uma nova conceituação de elite, que seria a única verdadeira; a das elites plurais, respondendo ás categorias de profissão e decorrendo da capacidade de cada um. Tal como a existe, entretanto, o sistema educacional brasileiro, conferindo "direitos" sem fornecer "habilitações", isto é, sem impor deveres, é, no seu próprio crescimento tumultuário de reivindicações e facilidades, mais "um movimento de dissolução do que de expansão". Foi, com efeito, "essa desfiguração da natureza da reivindicação educacional", escreve o sr. Anísio Teixeira, "que elevou a matrícula da escola primária, sem lhe dar prédios nem aparelhamento, que multiplicou os ginásio, sem lhes dar professores, e que faz brotar do papel até escolas superiores e universidades, com mais facilidade do que brotam cogumelos nos recantos mais sombrios e unidos das florestas ... (...) o que vimos fazendo é, em grande parte, a expansão do corpo de participantes, com o congestionamento da matrícula, a redução de horários, a improvisação de escolas de toda ordem, se as condições mínimas necessárias de funcionamento. Tudo isto seria já gravíssimo. Mas, pior do tudo, está a confusão gerada pela aparente tumultuária, levando o povo a crer que a educação não é um processo de cultivo de cada indivíduo, mas um privilégio, que se adquire pela participação em certa rotina formalista, concretizada no ritual aligeirado de nossas escolas. Está claro que tal conceito de escola não é explícito, mas decorre do que fazemos. Se podemos desdobrar, tresdobrar e até elevar a quatro os turnos das escolas primárias, se autorizamos ginásios e escolas superiores sem professores nem aparelhamento - é que a escola é uma formalidade, que até se pode dispensar, como se dispensam, na processualística judiciária, certas condições de pura forma" (págs. 82/84). Assim chegamos a uma concepção puramente convencional de educação: "Toda a nossa educação, hoje, é uma educação por decreto, uma educação que, para valer, somente precisa de ser "legal’, isto é, "oficial" ou "oficializada". É pela lei que a escola primária de três e quatro turnos é igual á escola primária completa, que o ginásio particular ou público, sem professores nem condições para funcionar, é igual aos melhores do País, que a escola superior improvisada, sem prédios nem professores, é igual a algumas grandes e sérias escolas superiores do País" (pág. 110).

Tal situação exige uma reforma - e o sr. Anísio Teixeira tem sido, juntamente com o sr. Fernando de Azevedo e alguns mais, um dos seus grandes preconizadores. É natural que as suas proposições nesse sentido decorram dos dois princípios básicos acima referidos: a escola universal depende de uma efetiva ampliação do sistema, assim como depende da moralização do ensino: a "escola integradora’ não se realizará sem a diversificação dos currículos. Daí, por um lado, a modificação estrutural e administrativa do ensino primário; por outro lado, maior ênfase com relação aos cursos técnicos e melhor articulação entre os diversos ensinos (3). Nada melhor do que certos números denunciaria o desequilíbrio funcional do Brasil como Nação: "Todas as cifras são reveladoras da preferência manifesta pelo tipo de educação verbal, decorativa, destinada a permitir a vida que não seja a do comum do brasileiro e sobretudo em que não haja esforço manual. Os cursos industriais lá estão com menos de 3% da matrícula geral, o agrícola com 1,15% e o comercial com pouco mais de 14%. O que todos procuram é o curso secundário acadêmico, preparatório para o ensino superior" (pág. 42). Essa realidade, se, por um lado, vem confirmar a nossa falta de "vocação industrial", a que me referi recentemente, é, talvez, mais complexa do que poderíamos supor. Na verdade, seria preciso saber se as escolas técnicas e agrícolas respondem efetivamente á eventual procura e, em segundo lugar, se a sociedade oferece aos seus egressos possibilidades concretas de aproveitamento. Além disso, é de supor que os estudos secundários e superiores somente atraiam número tão elevado de candidatos justamente pela facilidade em que se desmoralizam: do momento em que adquirissem a sua verdadeira natureza, de atividades intelectuais severas e rigorosas, numerosos pretendentes menos dotados encaminhar-se-iam, com maior proveito, para outras formações profissionais. Enfim, nessa matéria como em todas as outras, não há uma "situação brasileira": há situações regionais que seria indispensável examinar em pormenores mais precisos. Assim, por exemplo, São Paulo, que é, sem dúvida, o centro industrial mais importante do País, luta com falta de operários qualificados, enquanto tal situação certamente não ocorrerá com a mesma intensidade em outros Estudos. O programa de "descentralização do ensino", preconizado pelo sr. Anísio Teixeira, visa, em grande parte, atender a essa diversidade, e, quaisquer que sejam as discordâncias que acaso despertar, é inegável que, como "atitude" de conjunto, não pode ser desprezado.

Já temos hoje, no Brasil, como observa o sr. Anísio Teixeira, "a consciência da necessidade da escola, tão difícil de criar em outras épocas", mas essa convicção nos conduziu a concepções puramente quantitativas e formalistas (ou a tendência formalista do nosso espírito nos conduziu a concebê-la em termos puramente quantitativos). É agora ao desafio implacável da qualidade que, sob pena de sucumbir, somos obrigados a responder.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |