BERTOL, Rachel. O homem que quis educar todo o Brasil. O Globo. Rio de Janeiro, 29 jul. 2000. Caderno Prosa e Verso, p.1-2.

O HOMEM QUE QUIS EDUCAR TODO O BRASIL

Rachel Bertol

Em 1968, quando Anísio Teixeira enfrentava o segundo período de ostracismo em sua vida (o primeiro fora no Estado Novo de Vargas), recebeu um dia a visita de um militante comunista que queria convidá-lo a ingressar no Partidão. Ouviu atentamente a explanação do camarada, para enfim responder: "Meu filho, eu carreguei durante anos a cangalha da Igreja Católica, a esta altura não aguento mais nenhuma cangalha".

A história é uma das muitas a respeito do mais ilustre educador brasileiro lembradas por Jader de Medeiros Britto, pesquisador na área de educação da UFRJ, que naquela época encontrava-se quase todos os dias com Anísio. Sem nunca abrir mão da defesa do ensino público, gratuito e laico, Anísio - que na adolescência sonhava em ser padre e só desistiu da batina por causa do pai, que o queria na política - teve de enfrentar muitos embates públicos para defender seus princípios. Era considerado pela Igreja e pelo Governo Vargas, nos anos 30, um comunista que devia ser varrido da vida pública; na última ditadura, foi banido de suas atividades, enquanto a esquerda o apontava como direitista.

Sua memória, no entanto, chega a 2000, ano em que completaria cem anos, como uma unanimidade: ao longo do século, Anísio não apenas foi o pensador mais influente na área de educação que o Brasil já teve, como sua atuação - criou duas universidades e consolidou inúmeros centros de pesquisa - marcou os rumos da pesquisa e do ensino no país.

- Anísio viveu uma utopia, não se tratava de uma ilusão. Ele lutou pela criação de meios que pudessem concretizar seus projetos - afirma a pesquisadora Maria de Lourdes Fávero, que trabalha ao lado de Jader Britto no Programa de Estudos e Documentação de Educação e Sociedade (Proedes), da UFRJ.

Os amigos Gilberto Freyre e Anísio

Neste ano de celebrações, muitos pesquisadores, como os historiadores Carlos Guilherme Motta, da USP, e Marta Maria Araújo, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, que trabalham em parceria e escreveram juntos um artigo ainda inédito a respeito, não se conformam com o fato de 2000 não ter sido oficialmente considerado ano de Anísio Teixeira, como foi para Gilberto Freyre.

As coincidências entre Freyre e Anísio não são apenas de datas: os dois eram nordestinos (Freyre, pernambucano; Anísio, baiano), amigos, formaram-se intelectualmente nos EUA e trabalharam juntos em inúmeros projetos. Freyre foi um dos ilustres intelectuais - ao lado de Sérgio Buarque de Holanda, Villa-Lobos e muitos outros - convidados por Anisio para formar os quadros da Universidade do Distrito Federal (UDF), que criou em 1935. Mas a Igreja viu na nova instituição o nascimento de um foco comunista e por ordem do ministro Gustavo Capanema, que tinha um projeto centralizador, acabou sendo fechada. No fim dos anos 50, Freyre, foi o diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) de Pernambuco. Anísio instituíra centros desse tipo em várias cidades brasileiras, mas o projeto acabou abortado pela ditadura de 1964.

O historiador da educação Marcos Cezar de Freitas, da Universidade de São Francisco, acredita que a antropologia no Brasil deve muito à Anísio Teixeira, embora esta contribuição não seja muito ressaltada nos estudos sobre o educador.

Assim como Gilberto Freyre, Anísio, de acordo com Freitas, também estudou as raízes da formação brasileira. No seu caso, para explicar porque a educação brasileira chegara à situação de precariedade. Mas os dois tinham idéias opostas sobre nossas raízes.

Universidade autônoma e incentivo à criação

Inspirado no sistema dos EUA, Anísio quis tomar a educação brasileira mais aberta à ciência e à tecnologia.

Anisio Teixeira não vislumbrava futuro no Brasil desprovido de educação. E para desenvolver seus projetos de ensino básico e superior mergulhou no passado. Via no tipo de colonização e no sistema de ensino implantado pelos jesuítas a raiz dos problemas da educação no Brasil. 0 historiador Marcos Cezar de Freitas diz que, sob esse ponto de vista, Gilberto Freyre e Anísio estão em margens opostas:

- Freyre (os dois estudaram na Universidade de Columbia nos anos 20) mergulha no americanismo, mas permanece um iberista, enquanto Anísio afirma, em sua obra, que é preciso americanizar a nossa educação.

Uma educação americanizada não com um sentido colonizador. Desta forma, as idéias de Anisio se afinavam com as de Monteiro Lobato, que conheceu nos EUA e que o apresentaria ao mundo acadêmico. Ambos defendiam uma educação aberta à ciência e à tecnologia.

- Americanizar é uma idéia sutil, não se trata de uma bandeira política. Anísio achava, nos anos 30, que os EUA tinham conseguido resolver a questão da qualidade e que estavam prontos para receber as novidades da educação e da ciência e tecnologia. Nos anos 50, chega a fazer uma autocrítica, quando diz que o modelo americano não é tudo - diz Freitas.

Darcy Ribeiro, o filho dileto da obra de Anísio

Se Lobato pode ser considerado o pai iniciador de Anisio, por tê-lo apresentado à intelectualidade, o filho dileto de sua obra foi Darcy Ribeiro. No fim dos anos 50, Darcy e Anísio foram os principais idealizadores da Universidade de Brasília (UNB), cujo projeto foi, desenvolvido no Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais do Rio. A inspiração eram os princípios da Universidade do Distrito Federal criada por Anísio em 35, quando estava à frente da Secretaria de Educação do Rio.

Nos dois casos, uma ditadura poria fim ao sonho. Na opinião do educador, a universidade seria inviável sem autonomia, uma questão polêmica até hoje. Em nenhum de seus textos, discute se deveria ou não ser paga, mas sempre considerou fundamental o incentivo do Estado. Para o ensino primário, nunca abriu mão do acesso gratuito.

Se conseguiu sobreviver ao Estado Novo - na repressão, tornou-se empresário, indo trabalhar com os irmãos na exploração de manganês, só voltando à vida pública como secretário da Unesco, em 46 - Anísio não conseguiria ver o fim da segunda ditadura que o afastou da sua cruzada pelo ensino público. Em 1971, perdeu a vida ao cair no poço do elevador do edificio de Aurélio Buarque de Holanda, quando fazia campanha para ingressar na Academia Brasileira de Letras (ABL).

Darcy nunca escondeu sua gratidão e admiração a Anísio e buscou inspiração na Escola Parque, criada por Anisio quando era secretário de Educação da Bahia em 1950, ao implantar os Cieps no Rio. Na Escola Parque, as crianças teriam a chance de desenvolver sua criatividade e sociabilidade.

Babi Teixeira, a segunda dos quatro filhos de Anísio, há alguns anos se aposentou para cuidar da biblioteca virtual do pai e de outros cientistas, no Projeto Prossiga, do CNPq. Este ano, teve de pedir demissão para atender às solicitações dos centros que queriam homenagear seu pai. Fiocruz, SBPC, UNB já lhe prestaram homenagem. A Editora da UFRJ está reeditando toda sua obra e, em outubro, o Rio receberá, no Centro Cultural dos Correios, uma exposição itinerante organizada pela Capes e pela Fundação Getúlio Vargas sobre o educador. Um dos muitos projetos de Babi é revitalizar a Fundação Anísio Teixeira, na antiga casa da família, em Caetité, na Bahia, cidade natal do pai.

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