TEIXEIRA, Anísio. O Philosopho.Diário da Bahia. Salvador, 9 ago. 1924.

O PHILOSOPHO

Elle nasceu em uma terra jovem onde reinava a liberdade.

A sua meninice apagada e rápida, elle a passou sem ruido e sem incidentes.

Depois de uma adolescência precoce lhe alvoreceu dolorosa e inquieta.

O clima ardente do seu paiz queimava-lhe o sângue.

Tinha impêtos e tinha sustos. A vida o fascinava como um deslumbramento nunca visto.

E como era fraco e emotivo, foi arrastado pela vida.

Rolou assim, muito tempo, brilhante e inútil, como um barco, que, ao sabor do vento, que sopra, vagueia estonteadamente sobre as ondas. Esse ir e vir eterno sobre a face das cousas gastou-o demoradamente.

Como um seixo rolado, perdeu arestas, e perdeu mesmo o fogo interior que o impellia doidamente, nos tempos distantes da mocidade.

Foi hai, então, que lhe nasceu aquela grande ilusão final.

No cerebro frio, como em uma paysagem boreal, cresceu um sonho impressionante.

Elle, julgou que a sua indifferença azul e tranquila por tudo que comove os homens, que aquele fastio revelado em tôda a sua existência para com os entes mais queridos da vida do commum dos mortais, não fosse outra cousa sinão a sua definitiva sagração philosophica.

Elle trazia a sina dos grandes philosophos.

Recordou Cratos, aquelle discipulo de Diógenes, que errava pelas ruas de Athenas, nú e sabio, serenamente descuidado das cousas e dos homens.

Mas, sobretudo seguia Diogenes.

Acreditou numa affinidade secreta entre as suas duas almas.

Crear-se uma philosophia é, ainda, um meio mais commum para a libertação. Se a nossa vida e os nossos actos nos perseguem e nos inquietam, alteiemos nós até essa tranquila morada abstracta das ideas, onde os seres humanos chegam todos com a mesma cor innocuos e brandos.

Contra o remorso a philosophia.

E aquella vida inquieta se poderia fechar com a flor esteril e fugidia dessa ilusão.

Ha porem, na existência do homem, qualquer cousa de irremediavel.

Aquelle sonho de philosophia, resonho e imperdoavel, revolucionou ainda mais o cerebro fatigado do "viveur". O toque de reunir às farsas espirituais usadas e cansadas de sua alma, desperto-lhe, novamente, a vertigem. A influência de Diogenes o arrebatou.

A amavel e explicavel hypertrophia dos philosophos antigos o dominou invencivel e devoradora.

As abjurgatorias brotaram innocentes e ridiculas da sua bocca.

Os grandes e os felizes lhes mereciam palavras atrozmente ironicas. Mas, tudo era disparatado, porque as proporções haviam desapparecido.

Titere innocente do seu último delirio, a philosophia se lhe tornou escola de truanice.

E quando do seu tonel bradava, contra erros, ignorancias, limitações, os homens se voltavam para deixar sobre elle cair a piedade repousadora de um sorriso de magôa. E passavas. Porque afinal em todo aquelle desvario de fim de existência, poderia haver um traço de philosophia. Elle fallava como se fosse de fora da vida. Falha ou não, a sua, já elle a vivêra. E isso comunica sempre uma dolorosa autoridade à voz dos homens. Mas, arrastará para este reduto, fingidamente, philosophico, da sua existencia, os orgulhos, as vaidades, as invejas, todos os pequeninos defeitos da espécie.

De modo que, dentro de sua caixa, elle nunca nos poude dar sinão um theatrinho de fantoche, as figurinhas de seus defeitos e de seus erros, carcomidos, estragados, mas inquietos e estribuchantes, como seres vivos.

E os homens se condoiam do pobre iludido. Seu ultimo sonho era sua ultima tortura.

E o afastaram da publicidade.

Muitos o esqueceram.

Um empresário, porem, conhecedor da perversidade humana, o trouxe de novo a público e novamente despertou-lhe a velha paixão. Deu-lhe uma tribuna e um jornal. E todos os dias os bons se codôem do espectaculo doloroso daquelle homem a braços com a sua ultima devoradora vertigem...

ANISIO TEIXEIRA

(DIÁRIO DA BAHIA. 9 de agôsto de 1924).

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