MOTA, Carlos Guilherme. O professor Anísio. O Estado de São Paulo. São Paulo, 7 mar. 2000.

O professor Anísio

Carlos Guilherme Mota

De tempos em tempos, ocorrem vagas de grandes centenários. Chegamos no ano 2000 comemorando frouxamente o chamado Descobrimento de Brasil, com todas as ambigüidades e equívocos de um processo civilizador que ainda não permite situar nosso país no quadro das nações modernas. Para além dos cinco séculos do "descobrimento", talvez valesse mais realçar uma série de outros centenários menos ruidosos, como o da criação do venerando Instituto Butantã, há cem anos. E até de meios centenários, como 50 anos de palco de Paulo Autran, herói civilizador de nossa gente que nos ensinou Beckett, Molière, Jorge Andrade, Shakespeare, dramaturgos importantes para "descobrirmos" o Brasil...
Não vamos fazer filosofia de história barata, pois nesses inefáveis "balanços de século", de milênio, de década, de ano se magnificam personagens e processos que logo evanescem, para desaparecerem no limbo da história. O ano redondo de 2000 já traz em si um forte componente simbólico, embora nem o sistema decimal nem mesmo a Era Cristã sejam referenciais para todos os seres humanos do planeta. Há milhões e milhões de nossos contemporâneos(?), ditos fundamentalistas e esfaimados - sobretudo na Ásia e na África - que não tem a menor idéia de que parte da Humanidade marca o tempo, e muito menos dessa maneira. A quem interessa de fato que em 2000 está ocorrendo o centenário de Luís Buñuel, uma das grandes personalidades de nosso tempo? E quem comemorou o centenário de Ellington - outro "herói civilizador" - em 99?
No Brasil, neste ano de 2000 d.C., imerso num oceano de mediocridade nacional, de violência e barbárie, ocorre o centenário de nascimento de três grandes personagens, brilhantes e complexos: o sociólogo Gilberto Freyre, o crítico Mário Pedrosa e o educador Anísio Teixeira. Três intelectuais que ajudaram a dar fisionomia nova ao Brasil neste século, ativando nossa escassa imaginação histórico-sociológica. Muitas reuniões estão programadas - inclusive em São Paulo - para uma avaliação crítica da contribuição do escritor e ideólogo da cultura pernambucana; menos reuniões, et pour cause, para a do grande crítico Mário Pedrosa, figura exponencial da esquerda crítica brasileira.
Já o professor Anísio Teixeira começa a ter sua ação e obra reconhecidas lentamente ou, em muitos meios pedagógicos (o que é de pasmar), conhecidas por vez primeira. Pois os anos da ditadura retiraram suas idéias dos debates e pesquisas educacionais, históricas e culturais: no cenário da universidade, assistiu-se a mais e mais a reuniões sobre a "pedagogia", a "metodologia" e a teoria de uns 200 autores menores do que sobre a obra do professor Anísio Teixeira.
O professor Anísio foi o grande modernizador de nosso sistema educacional, um estadista da educação, como bem o definiu Hermes Lima num magnífico livro sobre esse baiano de Caitité, ex-jesuíta e amigo de Monteiro Lobato.
O que se espera é que nessas celebrações a propósito da ação educativa de Anísio - o principal redator, ao de Fernando de Azevedo, do Manifesto dos Pioneiros da Educação em 1932 e o teórico da criação da Universidade de Brasília - sejam retraçadas as linhas fortes de suas teorias sobre o ensino, a pesquisa, a divulgação do saber, da política educacional. E também da política tout court. Para nos darmos conta de como nos perdemos, no meio do caminho, no emaranhado de logislações absurdas que nos desviaram do projeto de construção de uma Nação educada e deveras democrática, bem formada. Muitas discussões e análises permitirão perceber o quanto obras como as dos educadores Paulo Freire, Florestan Fernandes e Darci Ribeiro, dentre tantas outras, devem a Anísio. E, também, discutir o quanto se afastaram - ou não, sobretudo no caso de Florestan - dos altos padrões de excelência defendidos por ele.
As celebrações do centenário de Anísio também permitirão notar o quanto a máquina do Estado, no afã de fixar critérios de avaliação e excelência, complicou a vida e a imaginação dos pesquisadores e professores, enredando-nos numa rotina burra que consome o tempo de reflexão, de leitura, atualização, de pesquisa e de criação, exaurindo a energia e a sensibilidade para o trabalho universitário. A universidade aguarda uma autêntica corregedoria, para recolocar as coisas e as idéias no lugar. Talvez ainda seja tempo.
De Anísio, Florestan dizia ser ele o nosso primeiro e último filósofo da educação, um intelectual que estimulava a "imaginação pedagógica". Seu antipopulismo era notável, ao afimar que "nenhum país do mundo até hoje julgou possível construir uma cultura de baixo para cima, dos pés para a cabeça. Para haver ensino primário, é necessário que exista antes o secundário e para que o secundário funcione é preciso que existam universidades". Não estaria aí a chave do sucesso de nossa antiga Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, menina dos olhos de Fernando de Azevedo e Julio de Mesquita Filho, da qual Anísio disse ser "a mais bela experiência da História da Educação"? Experiência que continua a inspirar movimentos de renovação, como a de tantas universidades - em São Paulo, também a Universidade Presbiteriana Mackenzie, que vem redefinindo em produndidade seu perfil institucional e criando uma nova pós-graduação - e vários centros de estudo e pesquisa e faculdades pelo Brasil afora.
O professor Anísio, com sua bela formação humanista interdisciplinar, alertava também para a necessidade de construírmos "universidades de fins culturais". Universidades que sejam grandes centros de irradiação científica, filosófica e literária do País. Como sublinhava ele, "não se trata de ela fornecer acréscimos de conhecimentos para que possivelmente a universidade tenha de contribuir; será antes a conseqüência da coordenação que a universidade fatalmente desenvolverá".
Suas observações sobre nossas práticas culturais também oferecem elementos para reavaliarmos nossos processos (des)civilizadores. Pois, como notava, "somos isolados e hostis porque é isolada e hostil a forma de nos prepararmos intelectualmente para as lutas da vida e do espírito". Não residirá aí a chave do problema da universidade brasileira atual?
Entendo que melhor maneira de comemorar esses pensadores e intérpretes do Brasil é com conhecimento de suas idéias, entendê-las, criticá-las, aplicá-las quando for o caso, a editora da UFRJ vem publicando as obras completas de Anísio Teixeira, com excelentes estudos introdutórios. Vale a pena reler Anísio, para meditarmos sobre os rumos que a educação vem tomando em nosso país. Para discutir em que momento da História nos perdemos. Dependendo do porto a que se quer chegar, navegar nem sempre é preciso; ler Anísio, sim.

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