TEIXEIRA, Anísio. O ensino brasileiro em crise: nosso país não está se educando, mas apenas diplomando. Visão. São Paulo, v.8, n.1, jan. 1956. p.30-32.

O ensino brasileiro em crise

Nosso país não está educando, mas apenas diplomando

Por Alberto Dines: Você, leitor, que é pai de aluno, ex-aluno ou, mesmo, ainda aluno de alguma instituição de ensino superior, já deve ter percebido: o Brasil não está educando, está diplomando.

Hoje em dia, não há nenhum técnico em educação que conteste esta verdade, tristemente confirmada em todos os relatórios oficiais, reservados ou públicos: nosso ensino está preparando gente para viver em fins do século passado.

Objetivo: Com o término do último ano letivo, comprova-se que nossa educação está altamente industrializada, mas lhe falta um objetivo.

Educar para que? Com que fins? Para resolver que problema? Para formar que tipo de brasileiro?

Estas foram as perguntas que fiz à mais autorizada equipe de técnicos (atuantes) em educação no Brasil: a do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), sob a direção do Professor Anísio Teixeira. O que me ofereceram foi a constatação de um problema e um plano sólido e vasto.

I - RETRATO DA SITUAÇÃO: O sistema educacional no Brasil compreende, de uma forma geral, os seguintes ciclos: uma escola primária de 4 ou 5 séries, uma escola médica, dividida em dois períodos de respectivamente 4 e 3 séries e, finalmente, uma escola superior de 4, 5 ou 6 anos, conforme a especialidade.

Em todo o país, a matrícula na escola primária ascende a 5 milhões e 100 mil alunos, enquanto nossa população escolar é de 8 milhões de crianças (7 a 12 anos).

Tomando-se os 2 recenseamentos brasileiros de 1940 e 1950, verifica-se que o número de pessoas com curso primário completo era, em 1940, de 1 milhão e meio e, em 1950, de 5 milhões e 400 mil.

Na escola média, cujos currículos são diversificados (acadêmico, comercial, industrial, agrícola), a matrícula total já é superior a 700 mil estudantes. E o número de pessoas existentes no país possuidoras de curso médio completo subiu de 350 mil para 1 milhão.

No ensino superior, verifica-se, também, que em 1940 o número de matrículas era de quase 22 mil. Agora é superior a 70 mil estudantes. Em 1940, havia pouco mais de 100 mil diplomados e, em 1950, aproximadamente 160 mil.

Há, hoje em dia, no país, 70 mil escolas primárias, 3.640 escolas médias e 361 escolas superiores que funcionam em 17 universidades e 197 instituições isoladas.

II - POR TRÁS DOS NÚMEROS: É por trás dos números que se esconde o problema do ensino no Brasil. No caso da escola primária, sabe-se que os alunos não se conservam na escola, em média, mais do 2 anos e pouco. E quando se verifica que, dos 5 milhões e 100 sòmente sobram 765 mil no fim do curso primário, então entramos em cheio na quase-tragédia do ensino.

Com matrícula em muito superior à sua capacidade, a escola primária se divide em turnos, oferecendo ao aluno meio dia escolar e, em muitos casos, um têrço sòmente do dia escolar.

Tais circunstâncias fazem com que a escola primária venha perdendo a função característica de ser a grande escola comum da nação - a escola de base - de onde sai a maioria dos cidadãos brasileiros, tranformando-se em simples fornecedora de um certificado que permite à criança ingressar num ciclo mais graduado.

A escola secundária, por sua vez, funcionando também por turnos, também improvisada, também de puro ensino verbalístico, é, como a escola primária, de caráter exclusivamente preparatório. E o resultado é que saem do crivo da última série do ginásio apenas 17 mil alunos.

Mas a odisséia não termina aí. Para ser alguém na vida, será preciso um novo diploma. Para vencer, em nosso país, é preciso colecionar certificados e títulos. A solução para o jovem é continuar na batalha do ensino: três anos depois, um novo diploma (científico ou clássico), que, por sua vez, de nada vale a não ser como documento para juntar aos outros diplomas que possibilitarão a inscrição num exame vestibular ao curso superior.

Teórico: A universidade é um curso altamente "seletivo" , mas inteiramente teórico. No fim das contas, passados também os anos de universidade, temos 60 mil bacharéis que, via de regra, ainda precisam de um ano ou dois para se "especializarem" ou então "praticarem".

Mas um outro problema paira, ainda, sôbre esta já tão deplorável situação - a centralização de nosso ensino. Hoje em dia, é ponto pacífico em qualquer debate sôbre educação que o Brasil precisa descentralizar seu sistema educativo.

Se alguém quiser uma receita para curar o ensino no Brasil terá que apelar para dois remédios: desformalizar e descentralizar.

III - OS 12 DEFEITOS: Coligidos por Anísio Teixeira, eis as principais falhas (técnicas) de nosso ensino:

I) A progressiva simplificação do ensino primário, com a redução de horários para alunos e professôres e a tolerância, cada vez maior, do exercício de outras ocupações pelos mestres.

II) A redução do currículo da escola primária a um corpo de noções e conhecimentos rudimentares absorvidos por memorização e à elementaríssima técnica de leitura e escrita.

III) A situação imprecisa da formação de nosso magistério primário, na qual se revela uma compreensão incerta e insegura do que venha a ser uma escola primária.

IV) A improvisação crescente de escolas primárias, sem condições adequadas de funcionamento e sem assistência administrativa ou técnica.

V) A perda crescente da importância social da escola, em virtude de não concorrer especialmente para a classificação social de seus alunos.

VI) A substituição de suas últimas séries pelo "curso de admissão" ao ginásio, buscado como processo mais apto àquela reclassificação social.

VII) A procura crescente do curso secundário, a despeito da ineficiência de seus estudos, dos horários muito reduzidos e de professôres improvisados ou sobrecarregados.

VIII) A improvisação crescente de escolas superiores, sobretudo aquelas em que a ausência de "técnicas específicas" permite a simulação do ensino ou ensino simplesmente expositivo, como as de Economia, Direito, Filosofia e Letras; a audácia dêste movimento vai ganhando terreno até mesmo no campo da Medicina, em que é maior nossa tradição acadêmica.

IX) A complacência de campanhas educativas, mais sentimentais do que eficientes, no campo da educação de adultos, da educação rural e do chamado bem-estar social.

X) A ausência de planejamento econômico e financeiro e a insinuação, implícita, de que se pode dar educação sem dinheiro, surgindo, então, as campanhas de educandários gratuitos e a idéia, mais generalizada, de que tôda educação pode ser gratuita para quem quiser, do primário à universidade, sejam quais forem os recursos fiscais e em que pese à deficiência per capita de nossa riqueza nacional.

XI) A irritação social crescente contra o "custo da educação", contra o "custo dos livros", contra as despesas no período escolar, como se tudo isto fôsse simples atividade espiritual que nada devesse custar.

XII) Perfeita tolerância quanto ao fato de estudar e trabalhar simultâneamente, com redução crescente das atividades de estudo, pois estas, ao que parece, não podem ocupar o tempo do estudante, que sempre tem coisas mais importantes que fazer.

IV - AS 10 SOLUÇÕES: 1) Descentralizar administrativamente o nosso ensino.

II) Mobilizar os recursos financeiros para a educação, de forma a obter dêles maiores resultados. Sugere-se a constituição, com as percentagens previstas na Lei Magna da República, de fundos de educação - federal, estaduais e municipais; êstes fundos, administrados por conselhos, seriam organizados com autonomia financeira, administrativa e técnica.

III) Estabelecer a continuidade do sistema, com a escola primária obrigatória, o ensino médio, variado e flexível, e o ensino especializado e superior, rico e seletivo.

IV) Prolongar o período escolar ao mínimo de seis horas diárias, tanto no primário quanto no médio, acabando com os turnos e só permitindo o ensino noturno em escolas de continuação, para suplementação da educação.

V) Alterar as condições de trabalho do professor, proporcionando-lhe novas bases de remuneração e de trabalho, visando prossibilitar uma dedicação maior ao ensino e aos alunos.

VI) Eliminar todos os modelos e imposições oficiais que estão a produzir efeitos opostos aos previstos, servindo até como justificativa para o mau ensino - como é o caso dos programas oficiais, dos livros didáticos aprovados e do currículo rígido e uniforme.

VII) Permitir que os 2 primeiros anos do curso secundário se façam complementarmente, nos bons grupos escolares, com auxílio dos melhores professôres primários, e redução do número dêsses professôres a 4 ou, no máximo, 5.

VIII) Estabelecer o exame de Estado para a admissão: ao primeiro ano ginasial, ao terceiro ano ginasial, ao primeiro colegial e ao colégio universitário, mantido o vestibular para a entrada na universidade.

IX) Dividir o curso superior regular em dois ciclos, o básico e o profissional, autorizando nas escolas novas, ou sem recursos adequados, apenas o curso básico, e exigindo o exame de Estado para a entrada no curso profissional e nos de pós-graduação.

X) Facultar no ensino superior a constituição de cursos, em diferentes níveis, de técnicos e profissionais médios, prevendo sempre a possibilidade de poderem os assim diplomados continuar, ulteriormente, os estudos e terminar os cursos regulares.

V - COMO CONSERTAR: O ensino, como se vê, chegou a um ponto no Brasil em que já não é mais possível "dar-se um jeito". A única solução, como sempre, nestes momentos, é ir para a frente, até as últimas conseqüências, com o plano de renovação. Fazer meias revoluções será pior, porque só postergaremos a crise. Deixar como está será desastroso.

A solução, pois, é consertar radicalmente e o mais rápido possível. E isto significa substituir imediatamente o conceito de "ensinar" pelo de "educar". Educar, em qualquer ciclo que seja, significa - preparar para a vida. Não para segurar um diploma.

De acôrdo com a equipe do INEP, eis aqui, em têrmos práticos, como se pode fazer essa revolução:

Criar um plano amplo e flexível de cêrca de 3 mil sistemas escolares autônomos em todo o país (equivalentes ao número de municípios), com seus conselhos de administração escolar, representativos da comunidade, paralelas aos conselhos municipais e com poderes reais e não fictícios de gestão do fundo escolar municipal e direção de escolas locais.

Êstes conselhos disporão: 1) dos recursos locais, equivalente a 10% dos recursos tributários dos municípios; 2) dos recursos estaduais e 3) dos recursos federais que forem atribuídos aos municípios na proporção de sua população escolar.

Acima desta educação fundamental e de base erguer-se-á o sistema de escolas médias, destinadas a continuar a cultura geral da escola primária e iniciar a especialização nos trabalhos práticos e industriais, ou nos trabalhos intelectuais, todos êles cultural ou socialmente equivalentes. Assim, os alunos serão distribuídos segundo os interêsses e aptidões para os quadros de trabalho de nível médio, sejam as ocupações de natureza intelectual ou prática.

O velho debate entre o ensino de letras ou de ciências desfaz-se à luz das novas circunstâncias da vida moderna, pois todos êles são necessários. Constitui problema, apenas, o de saber quais e quantos alunos devem ter formação científica ou teórica e quais e quantos alunos devem ter formação técnica ou de ciência aplicada.

Em cada um dêsses ramos, o currículo variará para a formação diversificada e variada, até mesmo no currículo clássico, em que se formarão helenistas, latinistas e especialistas em letras modernas, como já acontece nos cursos predominantemente científicos e técnicos.

Tôdas estas escolas médias, que se organizarão com alta dose de liberdade, serão classificadas por órgãos técnicos do Govêrno, segundo o grau em que atinjam os objetivos a que se propõem.

A validade dêstes resultados será apurada por exames de Estado realizados em determinados períodos do curso e que se destinariam, do ponto de vista legal, apenas à habilitação ao concurso vestibular para ingresso nas escolas superiores.

No tocante ao ensino superior, uma lei feliz, regulamentando o exercício profissional e entregando a licença definitiva para o exercício da profissão aos sindicatos e associações de classe, viria, possìvelmente, permitir a liberdade do ensino superior sem os perigos de uma inadequada inflação de diplomados.

O Govêrno manteria serviços de classificação das escolas superiores e de levantamento e estatística em relação aos profissionais de nível superior, seu mercado de trabalho, sua distribuição pelo país, faltas, excessos e necessidades novas criadas pelo desenvolvimento nacional.

O Espírito Geral do Ensino seria; a) fixação de objetivos e condições exteriores pela lei, e b) determinação dos processos, currículos e condições da educação pela consciência profissional dos professôres e especialistas em educação.

O problema da educação no Brasil não reside sòmente em mudar programas e currículos. É preciso mudar o objetivo do cidadão brasileiro: em vez de diploma, um participação maior na construção do país.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |