LIMA, Neyse Cunha. Um tesouro redescoberto. Gazeta Mercantil. Salvador, 3 set. 2000. p.24.

Um Tesouro Redescoberto

Neyse Cunha Lima

O emaranhado de ruas estreitas tomadas por construções que hoje é conhecido como bairro da Caixa d'Água ainda tinha o intrigante nome de Invasão do Corta-Braço quando o educador anísio Teixeira, então secretário de Educaçào da Bahia, resolveu construir ali um modelo escolar revolucionário. Inaugurado há 50 anos, o Complexo Educacional Carneiro Ribeiro foi concebido como uma combinação de "escolas-classe", onde estudantes acompanhariam o currículo oficial do ensino básico durante um dos turnos do dia, e uma "escola-parque", que forneceria a complementação do aprendizado no turno vago, com atividades esportivas, cursos de artes e oficinas pré-profissionalizantes.

A proposta ganhou uma forma condizente com seu conteúdo, graças à colaboração da nata da vanguarda baiana dos anos 50. Os prédios da escola-parque, sem dúvida o coração do projeto de Teixeira, foram projetados por Diógenes Rebouças, o homem que apresentou Salvador à arquitetura modernista e preparou a cidade para os novos tempos com a ajuda de um plano diretor de atualidade notável. O pavilhão de trabalho, uma área de 3 mil metros quadrados e pé-direito de mais de 15 metros onde se ministravam oficinas como as de cerâmica, pintura ou madeira, era decorado por painéis de artistas como Mário Cravo, Jenner Augusto e Carybé - cuja primeira vinda para a Bahia foi patrocinada por Anísio Teixeira, que lhe conseguiu uma bolsa de estudos.

Quatro mil estudantes por ano circularam por esse espaço lúdico de cultura e lazer até o golpe militar de 1964, quando as verbas federais que mantinham escolas de ensino fundamental foram cortadas e sua manutenção foi transferida para os Estados. O Complexo Educacional Carneiro Ribeiro não morreu, em parte graças à ação dos funcionários, que juntavam a merenda escolar com os vegetais colhidos na horta escolar para improvisar os almoços diários que faziam parte do projeto original, e de voluntários que colaboravam nas oficinas laborativas - entre outras coisas, a escola mantém, ainda hoje, uma padaria-escola.

As admistradoras do complexo tentavam completar o curto orçamento do Estado vendendo os produtos fabricados pelos alunos, mas manter uma estrutura tão grande sem uma injeção de recursos foi ficando cada vez mais difícil. Nos últimos anos, apesar dos cerca de 900 alunos escolas da rede pública que continuavam acompanhando os poucos "cursos de extensão" que sobraram, a escola-parque se tornou apenas uma sombra do que costumava ser.

"Há 50 anos que não se faz uma manutenção adequada naquele lugar", diz Mário Cravo, que acaba de ser convidado pelo governo do Estado para restaurar os painéis do pavilhão de trabalho, como parte de uma reforma geral motivada pelo centenário de nascimento de Anísio Teixeira. Não vai ser um trabalho fácil. Vítimas de todo tipo de agressão - desde as intempéries naturais, cuja ação foi potencializada por goteiras e janelas quebradas, até as tentativas de restauro, bem-intencionadas porém malsucedidas, dos professores de arte da casa -, os murais estão em péssimas condições, com a pintura desbotada, partes arrancadas e respingos de tinta, resultado de reformas anteriores do prédio.

A estimativa de Mário Cravo, que ainda está negociando com o governo do Estado, é de que sejam gastos pelo menos R$ 1,2 milhão para recompor os cinco murais do pavilhão de trabalho, assinados por ele próprio, Carybé, Jenner Augusto, Maria Célia e Carlos Mangano, com temas como "o homem e a máquina", "a energia" ou "a evolução humana", encomendados pelo próprio Anísio Teixeira. Os dois principais painéis, de 20 metros de largura por 12 de altura, foram feitos por Mário Cravo e Carybé, que utilizaram a técnica de têmpera a ovo sobre compensado. "É uma técnica difícil para o restauro, porque as cores são preparadas no dia da pintura e cada um faz a sua paleta", diz Mário Cravo. Além disso, será preciso retirar a madeira do forro para observar as condições do compensado e remover a película de pintura caso a base não possa ser aproveitada. Os afrescos de Jenner Augusto e Carlos Mangano, assim como a pintura de óleo sobre madeira de Maria Célia, impõem obstáculos menores, mas nem por isso fáceis de transpor.

O pavilhão de trabalho, pelas obras que encerra, é o prédio que chama mais atenção, mas é apenas uma das peças do complexo, que conta ainda com ginásio de esportes, campo de futebol, um teatro com cerca de 700 lugares e salas de ensaio e aula no piso superior e uma biblioteca que é um primor de arquitetura modernista, em formato circular, com mezanino central e cercada de grandes janelas de vidro. A estimativa do secretário de Educação , Eraldo Tinoco, é de que as obras, iniciadas em maio e com previsão de conclusão em novembro, consumam algo em torno de R$ 3 milhões.

"A idéia é restabelecer o modelo implantado por Anísio Teixeira, com as adaptações necessárias às inovações sociais e tecnológicas", diz Tinoco. Ele vai centralizar a ação na escola-parque, já que nas escolas-classes as atividades têm prosseguido normalmente ao longo dos anos. Assim, ao lado das aulas de dança, música ou teatro, serão oferecidas oficinas de restauro, fotografia, vídeo e artes gráficas, por exemplo. Os antigos cursos de leitura vão ser enriquecidos por noções de criação literária e tradução. Além das tradicionais oficinas, como as de metal, madeira, costura, panificação, cerâmica e tecelagem, serão oferecidas as de informática, enfermagem, análises clínicas, manutenção predial e restauro.

Toda essa estrutura deve estar em funcionamento até o início do próximo ano letivo, mas, provavelmente para não correr o risco de ser de novo responsabilizado pelo abandono do projeto, o governo do Estado não pretende administrar a escola-parque. "Existem em Salvador quatro ou cinco organizações não-governamentais que já atuam nesta área de educaçào, de forma que nossa intenção é recolher propostas e eleger a que melhor se adaptar ao conceito do complexo", diz Tinoco. Entre estas organizações, estão o Projeto Axé, a Organização Auxílio Fraterno, o Liceu de Artes e Ofícios e a Escola Pracatum, coordenada pelo músico Carlinhos Brown.

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