MONTELLO, Josué. Mestre Anísio Teixeira. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, mar. 1971.

Mestre Anísio Teixeira

Josué Montello

Os que tiveram o privilégio de conviver com o professor Anísio Teixeira, dêle guardaram a imagem de uma extraordinária máquina de pensar. Êle era, em verdade, com a fulguração prodigiosa de sua inteligência, um cérebro em permanente ebulição.

Um amigo comum me dizia, a êsse propósito, depois de vê-lo discorrer sôbre um tema de ocasião: "O Anísio me dá impressão de ter um maçarico na cabeça. Ouvindo-o, parece que lhe estou vendo a explosão das faíscas."

De fato, era assim. Por vêzes essa fulguração raiava pela genialidade. Daí o encanto de seu convívio. Não que êle fôsse um falador torrencial, dêsses que obrigam o interlocutor, à passividade do silêncio. Pelo contrário, êle também sabia ouvir, e era ouvindo que apanhava de repente o fio de seu assunto. A figura franzina logo se transfigurava. Todo êle, nessas ocasiões, era brilho verbal, na urdidura lógica, na precisão da palavra, na unidade do discurso. Porque Anísio Teixeira era essencialmente um lógico, mas um lógico que era também um mágico, no gôsto lúdico do verbo.

Entre os mestres da educação nacional que prepararam, nos últimos quarenta anos, o advento do Brasil moderno, tinha Anísio uma posição preeminente. Não era um técnico como Lourenço Filho nem um erudito do porte de Fernando de Azevedo. Mas um e outro não teriam a sua estatura como filósofos da educação.

Nesse ponto é que êle assombrosamente se agigantava. A educação era para êle mais um fim do que um meio, mais um objetivo que um instrumento. Por isso amava discorrer sôbre os seus propósitos, na ampla formulação de arrojadas teorias.

O que Anísio Teixeira deixou escrito, nos poucos livros que publicou, só em parte reflete a numerosidade de sua inteligência. Dir-se-ia que a escrita o agrilhoava. Precisava do espaço da conversa, na surprêsa do improviso, para alçar o seu vôo de largos horizontes. É que nêle o professor tomava o passo ao escritor, pensando mais livremente diante da classe que diante da fôlha de papel em branco.

Estou a vê-lo nas duas breves horas de nosso último encontro. Êle me havia telefonado pela manhã para cumprir o seu ritual de candidato à Academia, querendo visitar-me. Deixei-o à vontade. Poderia visitar-me, se o quisesse: o meu voto já era seu. Fêz questão de vir à hora certa, com o ar risonhamente inquieto de quem presume estar atrasado.

A circunstancia de termos sido companheiros, durante cinco anos, no Conselho Federal de Educação, desfazia desde logo o formalismo da visita. Sabendo-o agnóstico, mostrei-lhe o livro que estava lendo. Anísio demorou o olhar na página aberta, tornou a levantar a cabeça. Senti que o teórico da negação ia falar, e provoquei-o: ‘Deus só criou enigmas, meu caro Anísio: tôda a nossa evolução, no plano da cultura, nada mais tem sido do que o esfôrço obstinado do homem em decifrar êsses enigmas." Êle ia rir, mas de pronto reprimiu o riso, ergueu as sobrancelhas, e daí partiu para a exposição brilhante, trazendo o problema para o angulo radical de sua contestação.

Anísio, de severa formação religiosa, terminara perdendo a fé, e não ocultava essa negação, antes a proclamava como um dever de sua probidade intelectual - ao contrário daquele São Manuel Bueno, da novela de Unamuno, que escondia a sua descrença para não perturbar com ela a fé de seus fiéis.

Ao fim de sua exposição, retruquei-lhe: "Você, com essa inteligência é uma das provas da existência de Deus. A luminosidade do espírito, como atributo da condição humana nos aproxima da essência divina."

Daí a dias a fatalidade veio interromper o caminho de Anísio Teixeira em direção à Academia. Pràticamente já êle estava eleito. A eleição somente ratificaria a nossa prévia escolha, como sucessor de Clementino Fraga. Sua morte brutal nos dá por isso mesmo a impressão de que perdemos, não o educador e o amigo - mas um de nossos confrades.

Carta do leitor

Anísio e Clementino

"Venho abordar um assunto merecedor de tratamento muito especial, de vêz que envolve uma demonstração de nossa cultura e, porque não dizer, de nosso desenvolvimento. No decurso de pouco mais de um mês o Brasil perdeu dois de seus mais ilustres filhos, nomes consagrados não só entre nós como, também pelos grandes centros da cultura universal. Quero me referir aos mestres Clementino Fraga e Anísio Teixeira.

Morre o macumbeiro Joãozinho da Goméia: páginas e páginas de jornais, as estações de rádio e televisão interrompiam a cada instante seus programas para noticiarem, detalhe por detalhe, a marcha da enfermidade e morte do macumbeiro… Êsse trabalho todo concorreu para melhoria da cultura do povo? A quem mais deve o Brasil, seu povo, sua cultura? A Clementino Fraga e a Anísio Teixeira ou ao macumbeiro?

U.Susart Av. N. S. de Copacabana, 872, aptº 1201 - Rio."

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