O ESTADO DE SÃO PAULO. Um mal-entendido. O Estado de São Paulo. São Paulo,18 abr. 1958.

Um mal-entendido

Em entrevista concedida á imprensa, o prof. Anísio Teixeira refuta as acusações contidas no memorial enviado pelo episcopado do Rio Grande do Sul ao Presidente da República.

O tema da controvérsia é conhecido: a escola, ou, por outra, a predominância do ensino oficial, sobre o particular.

O problema nunca assumiu entre nós, felizmente, a gravidade que o caracteriza na Europa. Depositária tradicional, durante muitos séculos, das responsabilidades do ensino, não foi sem certa amargura e desconfiança que a Igreja se viu progressivamente afastada dessa alta missão. A laicização da escola, tornada indispensável pela evolução das sociedades burguesas e pela necessidade de tornar extensivos os seus benefícios á totalidade das populações, não poderia, é evidente, processar-se á margem de uma intervenção direta do poder central, pois só este dispunha dos recursos suficientes para empreender a gigantesca tarefa de levar a cultura ás massas.

Os anos passaram, mas o mal-entendido subsiste em muitos países. Em França, a questão de "l’école libre" vem envenenando há mais de meio século as relações entre o Estado e a Igreja e dividindo os franceses entre si. O "modus vivendi" a que se chegou, a célebre lei "Barangé", é como um paiol que todos gostariam de ver removido mas em que ninguém se atreve a tocar.

Entre nós, nunca se chegou a tais extremos. Mas, de quando em quando, registram-se atritos inúteis que facilmente poderiam ser evitados.

As formas, as aparências são diversas, mas o fundo da questão é o mesmo: a Igreja permanece ceptica perante o ensino oficial.

Longe de nós pretender insinuar que, no incidente agora verificado, o pensamento geral da hierarquia do clero brasileiro seja aquele que se exprime no memorial do episcopado do Rio Grande do Sul. Na "questão escola", a unanimidade de opiniões é rara. São muitas as posições adotadas, variadíssimos os ângulos de visão.

Sua Santidade o Papa sempre que teve de se manifestar sobre o problema, fê-lo com uma prudência e uma altura mental que deviam servir de exemplo a todos os que, de ambos os lados da barricada, persistem em atitudes extremas que apenas contribuem para agravar o velho mal-entendido.

Nessa inconfundível linguagem cuja meridiana clareza o define como um dos espíritos mais brilhantes e profundos do mundo conturbado em que vivemos, o Sumo Pontífice soube situar o debate no seu terreno ideal. Não pode a Igreja ser indiferente á educação da juventude. Mas é sobretudo a formação moral desta que lhe interessa. Pio XII, ao longo do seu pontificado, tem, como raros dos seus antecessores, demonstrado que se enganam os que querem ver no Vaticano uma força temporal. Ao condenar o ensino ministrado nas nações da Cortina de Ferro, o Santo Padre fá-lo em defesa de valores de ordem exclusivamente espiritual, certo como está de que o sutil veneno do materialismo dialético afastará de Deus milhões de jovens.

Nunca, porém, a sua palavra autorizada se fez ouvir para interferir em problemas puramente internos relacionados com a organização do ensino nos países do mundo livre. Soberano no plano do espiritual, repugna-lhe imiscuir-se no campo do temporal. Já Cristo disse: "Daí a Cesar o que é de Cesar..."

Neste penoso diferendo que opõe o episcopado da Província do Sul ao prof. Anísio Teixeira estamos, pelo contrário, em presença de uma ingerência intempestiva dos eminentes antístites rio-grandenses num terreno que não é o seu. A qualquer dos signatários do documento assistia o direito de se manifestar como cidadão brasileiro sobre os problemas da organização do ensino no Brasil. Mas que se tenham reunido e que, na qualidade de altas personalidades eclesiásticas, tenham tornado público um memorial, cujas repercussões sabiam melhor do que ninguém avaliar, eis o que nos parece censurável e em franco desacordo com a orientação seguida pelo próprio Vaticano.

Sobre o problema em si, tudo o que disséssemos seria supérfluo. A figura de Anísio Teixeira, um dos homens que mais tem feito pela dignificação e pela expansão do ensino no Brasil, está acima de toda a suspeita. Ninguém com maior conhecimento de causa se pode pronunciar sobre assunto tão delicado e tão complexo. Os seus argumentos são válidos e convincentes. Estamos inteiramente de acordo com ele no que se refere ao ponto principal, ao "busilis" da questão: a escola particular não é hostilizada pelo ensino oficial. O que eqüivale a dizer que todo este ruidoso mal-entendido se poderia ter evitado.

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