O GLOBO. A liberdade de ensino exige igualdade de prerrogativas. O Globo. Rio de Janeiro, 28 jun. 1958.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATj61

A LIBERDADE DE ENSINO EXIGE IGUALDADE DE PRERROGATIVAS

PROCURANDO esclarecer seu pensamento sôbre a posição do Estado e da livre iniciativa em face da universalização do ensino, o Prof. Anísio Teixeira, em carta dirigida a O GLOBO e publicada em nossa edição de 12 do corrente, reiterava a afirmação de que, uma vez instituído, no curso da história, o princípio da educação gratuita, obrigatória e universal, "a educação teria de fazer-se pública", "só poderia ser ministrada pelo Estado". Acrescentava o Diretor do INEP que, não podendo obrigar-se a iniciativa privada a oferecer a educação gratuita, obrigatória e universal, seria "impossível deixá-la confiada a particulares, pois, êstes só poderiam oferecê-la aos que tivessem posses - ou a protegidos - e daí operar antes para perpetuar desigualdades sociais do que para removê-las".

NA FORMULAÇÃO dessa série de conclusões, há lamentável equívoco. Ninguém ignora que, na marcha da civilização, as aspirações do ensino para todos encontram grande ênfase na Revolução Francesa, sob a égide do ideal da "liberdade - igualdade - fraternidade". Dentro da concepção da sociedade, ditada pelo grande movimento de libertação, que representa um dos mais significativos pontos de inflexão no progresso das instituições humanas, a universalização da escola estava destinada, desde o início, a representar a forma pela qual se propiciaria a cada indivíduo a oportunidade de ocupar a posição que lhe deve competir na comunidade, por força de dotes individuais, devidamente desenvolvidos, e a despeito de privilégios de qualquer natureza.

EM NOSSOS dias não há, por certo, quem não aceite e, mais ainda, quem não propugne pela efetivação do princípio da escola universal. Os Estados modernos impõem, mesmo, a obrigatoriedade da freqüência escolar a todos os indivíduos, até determinada idade, variável de uma para outra nação, de acôrdo com as características culturais, econômicas e sociais de cada coletividade. Portanto, contemporâneamente, como nova conquista no curso da história, a escola universal passou a ser, também, obrigatória.

A IMPOSIÇÃO da obrigatoriedade escolar acarreta, òbviamente, a necessidade da instituição da gratuidade, franquia a ser concedida, se não a todos os indivíduos, pelo menos a quantos provem falta ou insuficiência de recursos. Eis porque a escola universal e obrigatória deve ser, ainda, gratuita.

EQUIVOCAM-SE os que sustentam declaradamente o monopólio estatal de ensino, quando passam a supor que, em face do princípio da escola universal, obrigatória e gratuita, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado, tendo de fazer-se, necessàriamente, pública.

ALGUMAS considerações, realmente isentas de sectarismo, elucidam o lamentável equívoco que, nos últimos tempos, tem suscitado não pequena controvérsia e provocado não poucos dissabores. Em resumo, a tese "escola pública, universal e gratuita" - que exclui a participação da livre iniciativa na obra da emancipação do povo - importa, inicialmente, em conferir-se ao princípio da generalização do ensino, pela subversão da ordem dos valores históricos, o enunciado de "escola obrigatória, universal e gratuita"; em seguida, sob o fundamento de que "não pode obrigar-se o particular", substitui-se, nessa fórmula, a denominação "obrigatória" por "pública", como se as duas expressões fôssem sinônimas ou exprimissem conceitos equivalentes.

RECOLOCADO, porém, o problema nos devidos têrmos, o certo é que, uma vez admitido o princípio da "escola universal, obrigatória e gratuita", cabe ao Estado, responsável pelo bem comum e depositário dos recursos públicos, o dever de assegurá-lo em tôda a plenitude e para todos os efeitos.

NO CUMPRIMENTO dêsse dever fundamental, de garantir a todos os indivíduos a oportunidade da educação, o Estado democrático não poderá, porém, deixar de atender ao direito anterior das famílias, prerrogativa que, em nossos dias, figura entre as liberdades garantidas pela Declaração Universal dos Direitos dos Homem (1948), outra grande conquista da Humanidade, em que se prescreve: "Os pais têm a prioridade do direito de escolher o gênero de educação a dar a seus filhos". (Art. 26, 3).

E, ALIÁS, havemos todos de convir que não poderia ser de modo diferente, pois, como assinala o Professor Silvio Marcondes, da Universidade de São Paulo, a conceituação da educação envolve a afirmativa de dois princípios fundamentais: como método de aperfeiçoamento da capacidade, deve alcançar a todos os indivíduos; como processo de formação da personalidade, há de atender à condição de cada indivíduo. Coletivista na quantidade; individualista na qualidade.

NO TOCANTE à observância dos requisitos da variação qualitativa, tôdas as responsabilidades da educação recaem primeiramente sôbre a família e, depois, sôbre as escolas, pôsto que a formação democrática da personalidade humana não pode ficar subordinada às regras inflexíveis das leis do Estado, mas deve estar condicionada à singularidade de orientação dos pais e dos mestres.

SE O MISTER de ministrar a educação, sob o regime de ensino obrigatório e gratuito, fôr exercido exclusivamente pelos podêres públicos, a educação torna-se um privilégio da escola estatal. Diante dêsse privilegio, o direito de prioridade de opção reservado aos pais não passará de uma mistificação, pois, salvo as famílias mais abastadas, tôdas as demais terão de submeter-se, na educação da prole, aos critérios, quando não às conveniências, da orientação política dominante.

DO EXPOSTO decorre que a educação, qualquer que seja o modo pelo qual é propiciada - inclusive, portanto, o ensino "universal, obrigatório e gratuito" - não pode constituir monopólio do Estado, mas deve ser, efetivamente, livre à iniciativa individual.

EQUÍVOCO não menor, que decorre de anterior, é crer que o princípio da liberdade de ensino, universalmente admitido, fica assegurado pela mera inclusão do dispositivo correspondente na carta constitucional da nação.

A FIM de tornar real e eficaz a liberdade de ensino, cumpre garantir todos os meios que se fazem necessários para o pleno exercício do ensino da iniciativa individual, isto é, instituir normas e adotar medidas complementares, que, na ordem pedagógicas e financeira, equiparem as prerrogativas da escola particular às da escola oficial e igualem os direitos dos beneficiários de uma e de outra.

NÃO PREVALECE, portanto, a suposição manifestada pelo ilustre Diretor do INEP, na carta dirigida a O GLOBO, de que a escola particular, ao pleitear, como pleitea, não apenas a concessão de recursos dos orçamentos públicos, mas, também, a efetivação de todos os demais direitos que lhe assistem, revela o desejo de "ser concessionária de um serviço público".

A RECÍPROCA é que procede. O poder público, que avoca para si o emprêgo da totalidade dos recursos do erário destinados à educação, exorbita, para instituir a seu favor, conciente ou inconscientemente, o monopólio de um serviço, a exclusividade de um encargo, cuja execução, em caráter prioritário, é assegurada aos próprios indivíduos, pelos princípios de Direito, anteriores à constituição do Estado e invocados pelo próprio Estado, ao constituir-se.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |