MONTELLO, Josué. Lembranças de Anísio Teixeira. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 set. 1978.

Lembrança de

Anísio Teixeira

Josué Montello

Meu convívio com Anísio Teixeira, durante os anos em que fomos companheiros no Conselho Federal de Educação, eu o coloco entre os privilégios que a vida me proporcionou. Porque foi esse convívio que me permitiu assistir às repentinas explosões de sua inteligência.

Há inteligências que só se realizam em plenitude nos gabinetes de trabalho, com a pena em punho, debruçadas sobre a folha de papel. Cá fora, no comércio dos contatos humanos, como que se retraem, sem dar de si na simplicidade de uma conversa. Dir-se-ia que não saem à rua com o dono. Gostam de silêncio, escondendo-se ao menor ruído.

Outras, entretanto, gostam da rua, sentem-se bem com gente à sua volta. Foram feitas para a sala de aula e a tribuna das Academias, o plenário das assembléias e a mesa-redonda dos debates especializados. Aí, sim, estão no elemento que lhes é próprio, vivendo a harmonia natural das asas em pleno vôo.

A inteligência de Anísio Teixeira, se se realizava esplendidamente no corpo-a-corpo com a folha de papel em branco, na reclusão de um gabinete de trabalho, era ainda mais viva, mais brilhante, mais luminosa, nas surpresas de um debate. Por isso, quem conheceu o escritor pelos livros, admirou-o como uma das figuras mais altas da cultura brasileira; mas só o conheceu verdadeiramente, na força impetuosa de sua inteligência incomparável, quem teve a sorte de o ouvir nos instantaneos de suas Intervenções improvisadas.

Anísio, nessas ocasiões, não precisava pedir silêncio aos circunstantes. O silêncio vinha por si, abrindo espaço imediato à palavra do orador. A figura pequena, miúda mesma, com algo de adolescente no seu todo franzino, como que atuava por explosões sucessivas.

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No plenário do Conselho Federal de Educação, se bem me recordo, ele sentava ao lado de Abgar Renault, nas vizinhas de Alceu Amoroso Lima. A seguir, vinham Celso Cunha e Barreto Filho; depois, eu. A minha esquerda, Péricles Madureira de Pinho, companheiro fraterno de Anísio no Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos.

De repente, a propósito de um artigo de lei ou da conclusão de um parecer, Anísio levantava uma objeção. Do outro lado do plenário, o velho Almeida Júnior, sempre com o reparo ferino na ponta da língua, observava-o por cima dos óculos. Os demais companheiros redobravam de atenção, inclusive Dom Helder Camara, que forçava a posição na cadeira, adiante do Newton Sucupira e do Valnir Chagas, para olhar Anísio.

Estou vendo Dom Candido Padim, o Reverendo Borges, Wandick Londres da Nóbrega, o prof Faria Gois, o Padre Vasconcelos, Roberto Santos, com o mesmo interesse pela palavra do companheiro. À mesa da presidência, Deolindo Couto conseguia permanecer imóvel na cadeira, com a mão buliçosa torturando as dobras de uma folha de papel.

E Anísio a discorrer, possuído pelo seu assunto. Ele não meditava para falar: a própria fluência verbal era em si o ato de pensar, com a palavra gerando a frase ajustada à lógica de uma estupenda ordenação expositiva. Era como se estivéssemos diante da forja incandescente a abrir-se em faíscas. E tudo aquilo era novo, com a força da criação definitiva.

Hermes Lima, no primoroso livro que recentemente lhe consagrou (Civilização Brasileira, Rio, 1978), viu em Anísio Teixeira o estadista da educação. E concluiu que toda a existência de Anísio teve a aquecê-la o sentimento religioso. No entanto - acrescenta ainda Hermes Lima - "ele chega católico aos Estados Unidos e de lá regressa liberto de qualquer crença revelada. A crise religiosa conheceu ali o seu epílogo."

É possível que a crise tenha voltado, nos diálogos de Anísio consigo mesmo, ao longo da aventura da vida. Ele vinha dos jesuítas, que deixam nos seus discípulos a marca permanente do debate interior. Tenho para mim que, embora distanciado da Igreja, quanto aos ritos e à liturgia, Anísio permaneceu fiel ao seu espírito de missão.

Daí o lado apostólico do seu espírito, explicativo das campanhas em que se empenhou. No filósofo da educação persistia o missionário. Quando agia, era o apóstolo em ação, convicto de sua causa, com o mesmo ardor com que Vieira pregara e Nóbrega evangelizara. E com esta circunstancia, que cumpre realçar: Anísio procurava interpretar no seu apostolado aquilo que lhe parecia constituir a genuína espiração popular.

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Lembro aqui um fato, que me parece ilustrativo, o que ouvi do próprio Anísio. Uma tarde, em Lima, no Peru, foi ele assistir a uma tourada. Misturou-se à multidão, como toda gente. Nunca tinha visto um toureiro a medir-se com um touro. Calouro, pôs-se a fazer o que os outros faziam, quer nos aplausos, quer nas vaias. A certa altura, viu que algumas pessoas atiravam os chapéus para a arena, e atirou também o seu. Só então percebeu que tinha comprado uma briga. Aquele gesto correspondia a um agravo, que logo um vizinho repeliu, exaltando-se. E não foi fácil a Anísio com toda a fluência de que era capaz, estas duas coisas simples: acalmar o exaltado, explicando-se, e reaver o seu chapéu.

Bem pensando, o episódio se explicava pela permanente curiosidade do saber, que estava na essência da personalidade de Anísio. Ele quisera incorporar às suas vivências aquele impulso de reação popular. Correspondia a uma especulação lúcida, em termos de comunhão coletiva. Naquele momento, deixara de ser o homem de gabinete, para ser um homem no meio do povo, sentindo com o povo, reagindo com o povo.

Recorda Hermes Lima, no fecho de seu livro, que, ao sair do cemitério, depois do enterro do grande educador, ouviu de Péricles Madureira de Pinho estas palavras, desoladas:

- Agora temos de aprender a viver sem Anísio.

Hoje, depois de considerar o tempo transcorrido, chegamos à conclusão de que não conseguimos aprender a viver sem ele. O próprio livro de Hermes - tão evocativo e tão comovedor - é um testemunho a mais de que continuamos a ir ao encontro de Anísio pelo caminho das recordações. E ainda bem que, para nós, que o conhecemos, ele ali está à nossa espera.

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