QUEIROZ, Rachel de. A lei da selva. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 1971.

A LEI DA SELVA

Rachel de Queiroz

O caso terrível que resultou na morte de um grande brasileiro - Anísio Teixeira - faz pensar, mais uma vez, em como a idade da máquina nos devolveu à insegurança e como a vida na cidade grande (chamada merecidamente com um nome feio: megalópole) é regida pela velha lei da jângal, ou lei da selva.

Nas cidades de médio porte, que eram a regra no século passado, morando-se humanamente, cada casa abrigando uma família, cada rua uma sucessão equilibrada de casas, havia possibilidade para o conhecimento recíproco. Numa quadra com dez casas, morando uma média de cinco almas por casa, viviam cinqüenta pessoas. O guarda do quarteirão as conhecia tôdas, dos velhos às crianças. Sabia da viúva idosa que acendia a luz às seis e a apagava às nove, do moço estróina que chegava de madrugada, da copeira que ficava até tarde ao portão namorando o portuguesinho entregador do açougue. Era fácil o ofício de polícia, como eram fáceis os demais serviços. O guarda-noturno, o carteiro, o mata-mosquitos, o gari, o lixeiro eram figuras familiares, a quem se dava bom dia e a quem eventualmente se convidava para um cafezinho na copa. Assim podia a polícia acompanhar paternalmente a vida de cada um e, com a vida, proteger morada e haveres do cidadão.

Mas aí as cidades foram crescendo. Menos como cresce um organismo são, antes absurda e desordenadamente como cresce, Deus me perdoe, um câncer. E sem poder crescer indefinidamente na horizontal, devido aos problemas de terreno e transportes, começaram as cidades a crescer na vertical. Os americanos redescobriram um uso, que já era dos romanos e das cidades muradas da Europa medieval: os altos edifícios de morada coletiva. Apenas, com o auxílio das novas técnicas, enquanto os antigos faziam os seus prédios coletivos de cinco e seis andares no máximo, os americanos inventaram os esqueletos de aço que suportam dez, vinte e até cem andares. Nasceu o arranha-céu. O homem urbano deixou então de habitar em alvéolos, como larvas de abelha no cortiço.

Institucionalizado o apartamento, multiplicaram-se de maneira espantosa os moradores do quarteirão. Na quadra onde viviam cinqüenta - vamos fazer as contas: no terreno de cada casa, com seu quintal e jardim, construiu-se um edifício, parede-meia com outro edifício, fachada ao nível da rua, fundos tocando os de fundos correspondentes, sem um palmo de chão livre para plantar um arbusto ou deixar entrar ar e sol. Dando-se a média moderada de dez andares por prédio e quatro apartamentos por andar, temos na quadra quatrocentos apartamentos. E àquela média antiga de cinco pessoas por morada, temos duas mil pessoas residindo na mesma área de terreno onde antes moravam apenas cinqüenta. E o polícia é o mesmo, os mesmos são o carteiro, o gari e o espaço de rua para o tráfego de ônibus e automóveis transportando essa gente.

E se os ricos e remediados se acomodaram à morada coletiva nos apartamentos, os pobres, os emigrantes atraídos do campo pelo mercado de trabalho que a explosão urbana proporciona, êsses não tiveram modêlo medieval-americano para lhes resolver o problema. Apelaram para o simples expediente de ocupar os locais que ainda estavam vagos - os morros e os mangues - e eis inventada a favela. Pululante, perigosa, anti-higiênica, indevassável, impolicíavel com seus barracos erguidos literalmente uns por cima dos outros, a favela, que de início era apenas reduto provisório de trabalhadores sem teto, logo foi invadida pelos marginais e foras-da-lei que ali encontraram o coito ideal, pois que só muito dificilmente chega a mão da polícia lá em cima.

E não é só no Rio, não é só no Brasil. Na América, a lei da jângal na cidade grande é tão perigosa quanto aqui. Os assaltos com morte se multiplicam em Washington, Nova Iorque, Chicago, Los Angeles, igual ou pior que no Rio ou São Paulo. Se aqui há as favelas, lá existem os guetos, o que é mais terrível, pois que o crime então se insufla pelo ódio racial.

E a polícia? A polícia faz o que pode, mas pode pouco. Os legisladores ainda pensam, em têrmos de segurança pública, como pensavam nos tempos em que a escola era risonha e franca e bastava o apito do guarda, na calada da noite, para assustar os ladrões. Os contingentes policiais não aumentaram em progressão sequer aproximada do aumento da população. E, depois, o pior de tudo é que dentro da massa formigante de gente o indivíduo perde a identidade, some-se na multidão, é apenas uma formiga no formigueiro, igual às outras formigas. No quarteirão antigo, os vizinhos eram amigos; mas os moradores de apartamento se desconhecem, passam um junto do outro como estrangeiros. É a reação natural da defesa da intimidade: o habitante de um alvéolo precisa construir uma barreira invisível que o isole da forçada promiscuidade com o habitante do alvéolo pegado.

Assim pois, perdidos e desamparados, os habitantes da cidade grande temos que providenciar nós próprios a nossa garantia de vida. Comprar arma, tirar licença para porte da dita, armar igualmente filhos e dependentes. Eu, que não gosto de tiro e só tenho fé em aço frio, vou ver se é preciso licença para um punhalzinho do Juazeiro que me cabia na bôlsa. E seja então o que Deus quiser.

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