TEIXEIRA, Anísio. Anísio Teixeira responde a Carlos Lacerda. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 10 jun. 1959.

Anísio Teixeira responde a Carlos Lacerda

Recebemos ontem:

"Meu caro Carlos Lacerda: Li a sua nota a meu respeito na TRIBUNA de ontem. quero agradecer-lhe o feliz esclarecimento que trouxe ao público. Nada mais estúpido, realmente, do que essa história de ser alguém dono da educação. E, por certo, seria eu a última pessoa a poder sê-lo, como V. muito bem demonstrou.

Ninguém melhor do que V. sabe quanto sou um "vencido" em educação. Vencido fui em 35, depois de um esfôrço que mereceu aplausos seus, mas nem por isto deixou de ser varrido até o último vestígio por dez anos de Estado-Novo. Nesses dez anos, fui um modesto comerciante na Bahia.

Em 1946, fui convocado para trabalhar na UNESCO, merecendo tal convite um artigo seu de extrema generosidade. Não fiquei, porém, orgulhoso por isto, e deixei a UNESCO em 1947, para voltar a vida privada.

Otávio Mangabeira impediu-me de levar avante o propósito, fazendo-me retornar ao serviço público, como seu secretário da Educação. Fui, efetivamente, um mau secretário. Propus-lhe um plano radical de organização do sistema escolar do Estado e êsse plano não logrou ser aprovado na Assembléia Legislativa. Chamado novamente para a UNESCO, aceitei o convite, mas o governador recusou dar-me a necessária licença, continuando a servi-lo, com devotamento mas nem por isto com eficiência. O que se fêz, nesse tempo, na Bahia – fragmentária e incompletamente, mas com imenso custo – se deve, exclusivamente, ao espírito de compromisso, paciência e pertinácia do grande governador a quem procurei servir.

Depois dessa experiência, voltei ao velho propósito de não aceitar cargo de responsabilidade direta na administração da escola pública brasileira.

Recusei o convite do ministro Simões Filho para ser o diretor do Departamento Nacional de Educação, cargo que, ainda em 1946, também recusara aceitar das mãos do ministro Clemente Mariani.

Instado, depois aceitei a secretaria-geral da Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, procurando, assim, devotar-me a um trabalho de certo modo apenas subsidiário, a fim de não participar de uma situação educacional, oriunda do Estado Novo, que, ao meu ver agravara até ao absurdo velhos defeitos da estrutura escolar nacional.

Com a morte trágica de Murilo Braga, e diante de novo convite do ministro Simões Filho, aceitei dirigir o Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, por se tratar de uma instituição de estudos, sem responsabilidade direta sôbre a administração do sistema escolar vigente.

Neste pôsto, procurei criar uma organização de centros de pesquisa – na realidade seis: o Centro Brasileiro aqui no Rio e cinco centros regionais no Recife, Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Pôrto Alegre – para o estudo e a análise da situação educacional brasileira e o aperfeiçoamento dos professôres. Os seus diretores são um dos meus mais justos orgulhos: Gilberto Freyre, no Recife; Luis Ribeiro Sena, em Salvador; Abgar Renault, em Belo Horizonte; Fernando de Azevedo, em São Paulo; Eloah Kuntz, em Pôrto Alegre, e Péricles Madureira de Pinho, aqui no Rio. Tais centros são ambiciosos, talvez, nos seus objetivos de estudo, mas não dispõem de nenhuma parcela de poder, para serem donos de coisa alguma, salvo de sua honestidade de propósitos e do seu espírito de trabalho.

Embora o meu esfôrço se tenha, assim, afastado, voluntàriamente, de qualquer exercício de poder, uma vez que a obra do INEP se restringe à ajuda às escolas, mediante convênios com os Estados e Municípios, e a sugestões aos professôres, vi-me, no ano passado, violentamente atacado por autoridades eclesiásticas, que dentre as centenas de milhares de funcionários federais, escolheram o diretor do INEP como o único a ser destruído.

Sem nenhum poder, nem direto nem indireto, sôbre as escolas, não nomeando um só professor, por que devia eu ser destruído? – Porque o INEP empreendeu uma obra de crítica e análise da situação educacional brasileira. Logo longe de "dono da educação" sou exatamente o alvo daqueles que se propõem ser "donos da educação". E, talvez por isto mesmo é que hoje sou alvo dos seus ataques.

Você é um recém-chegado ao campo da educação nacional. Segundo sua própria declaração, em Belo Horizonte, veio acolitado pelos educadores padre Alonso, reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, professor Carlos Flexa Ribeiro e ex-vereadora Sandra Cavalcanti. Com tal auxílio, redigiu um substitutivo para a lei magna da educação nacional, advertindo que a lei iria passar e "saíssem da frente os que a ela se opusessem", pois os mesmos "seriam pisados".

Não lhe parece que tal linguagem é exatamente a de alguém que se fêz "dono da educação", ou que representa seus "donos"?

Meu caro Carlos Lacerda: os meus trinta e cinco anos de experiência pública e privada do Brasil não deixaram de me trazer algum ensinamento. Os "donos" de qualquer coisa, em nosso país, não encontram entre os que defendem os interêsses dos "muitos". Os donos são sempre os defensores dos "poucos". A arrogância com que está defendendo o seu projeto é uma indicação de que do seu lado estão os "poucos" todo-poderoso os "donos" da educação os que representam os "interêsses criados na educação nacional. Os que estão do lado do "cabo" do chicote.

Os autores do projeto oficial de Bases e Diretrizes não são funcionários todo-poderosos, mas educadores respeitabilíssimos. O primeiro projeto Clemente Mariani não contou com a minha colaboração. A comissão que o elaborou compunha-se dos seguintes nomes: M. B. Lourenço Filho, Pedro Calmon, A. F. Almeida Júnior, Cesário de Andrade, Mário de Brito, Leonel França, Levi Carneiro, A. Amoroso Lima, Arthur Filho, J. Farias Góis, Maria J. Scmidt, A. Carneiro Leão, M. A. Teixeira de Freitas, Agrícola Bethlem e Celso Kelly. Dei-lhe a minha solidariedade nos aspectos principais. As minhas reservas, entretanto, não foram pequenas e constam da exposição que fiz perante a Comissão de Educação da Câmara. No substitutivo apresentado pelo ministro Clóvis Salgado a êsse projeto, colaborei, mas fui, nos pontos principais que defendo, vencido.

Nas sugestões recentemente apresentadas pelos educadores José Augusto Carneiro Leão, J. Faria Góis, Abgar Renault, Fernando de Azevedo, Lourenço Filho, Almeida Júnior (relator), Raul Bittencourt e Anísio Teixeira, consubstancia-se um projeto mais ligado à proposta inicial do govêrno do que ao meu ponto de vista. Nem por isso lhe neguei a minha assinatura, pois não sou "dono da educação" mas um dos seus modestos colaboradores, habituado a ser vencido em minhas proposições pessoais, apenas vitoriosas quando aceitas pelos demais. Está claro que essa minha aprovação com reservas não significa que não apoie o espírito geral do projeto.

Aprovação a projeto como o seu substitutivo é que não poderia dar, pois a meu ver virá êle entregar a educação a fôrças das mais reacionárias de nosso país, aos interêsses privados dos "donos de colégios" que, êste sim, pretendem passar de "donos de colégios" a "donos da educação nacional".

Não é sem razão que a TRIBUNA DA IMPRENSA e o meu caro amigo podem sentir-se tão à vontade em sua defesa. Só se defendem com tamanha truculência interêsses poderosos e interêsses conservadores.

Seu admirador e ex-admirado,

    1. Anísio S. Teixeira

Nota da Redação: Estamos interessados na reforma da educação, não num "bate-bôca" com o velho colaborador dessa desgraça que é a ruína da educação no Brasil.

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