LIMA, Haroldo. Filósofo da educação. A Tarde. Salvador, 8 jul. 2000. p.10.

FILÓSOFO DA EDUCAÇÃO

Haroldo Lima

Falar de Anísio Teixeira é falar do aspecto mais palpitante de sua atividade: a defesa da escola pública. Aquele que foi, segundo Florestan Fernandes, "o primeiro e último filósofo da educação", fez dessa defesa seu estandarte principal. Formulou e sustentou, em situações de grande pressão, a tese de dinheiro público para a escola pública, embora percebesse e apoiasse o papel complementar da escola privada.

Verberou contra o arcaísmo da estrutura educacional brasileira, mas mostrou que, a despeito desse arcaísmo, tinha a escola a função de formar privilegiados, e a democracia daquela escola era vista como a possibilidade do pobre ascender ao privilégio. Para manter essa escola, empenhou-se muito a classe rica e dominante, segundo Anísio, "mais dominante do que rica."

Anísio afirma-se como o "revolucionador de estruturas caducas", no dizer de Jayme de Abreu, e como o arauto da escola pública, universal e gratuita. Nesses dois sentidos desenvolveu seu pensamento e sua obra, expressos em vasta produção literária e grandes realizações, como a antiga Universidade do Distrito Federal, da qual foi reitor, a Escola Parque, de Salvador; o plano educacional público de Brasília; a Universidade de Brasília, fundada conjuntamente com Darcy Ribeiro; o Instituto de Pesquisas Educacionais; a Fundação Nacional da Ciência; o Instituto de Educação; o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, que coordenava cinco centros regionais etc. Tudo isso passando duas vezes pela direção da educação e cultura da Bahia, pela Secretaria da Educação e Cultura do Rio de Janeiro, direção do Inep (12 anos), secretaria-geral da Capes, presidência da SBPC, conselho da Unesco etc.

Iniciativas implementadas ou propostas, como os conselhos de educação, inclusive os municipais, a pesquisa educacional, a educação em tempo integral, o plano nacional de educação, o Fundo Escolar Permanente, pensado na base de determinada quantia por criança escolar recenteada ou matriculada - percursor do Fundef - rubricaram de forma indelével o capítulo de educação no Brasil. A professora Clarice Nunes, da PUC-Rio, assinala que "tudo que se faz hoje em educação no Brasil remete a Anísio Teixeira".

Anísio via a educação como atividade cara. Em seu pensamento não cabia se beneficiar um setor, como o ensino fundamental, deixando outro à míngua, como o universitário. Criticava a idéia de que se educa de qualquer forma, debaixo de árvores, em casebres ou galpões. Educação, para Anísio, precisa de prédios bons, aparelhamento escolar, verbas de custeio, vencimentos condignos do professorado e professorado preparado. Dizia: "Depois da guerra nada é mais caro que a educação".

Aos que achavam que essa visão era visionária e estapafúrdia, respondeu na inauguração da Escola Parque da Bahia: "Na realidade, estapafúrdios e visionários são os que julgam que se pode hoje formar uma nação, pelo modo por que estamos destruindo a nossa".

Quando o obscurantismo se impunha e encasulava a democracia, cuidava logo de apagar a flama do pensamento de Anísio. Em 1935, foi apeado da Secretaria de Educação do antigo Distrito Federal e da reitoria da Universidade do Distrito Federal que havia criado. Teve de se esconder, até meados de 1937, no alto sertão da Bahia. O golpe de 1964 encontra Anísio de novo na reitoria de outra universidade, a UnB. A professora Zahidê Machado Neto, testemunha da tomada da universidade, escreveu:

"Anísio estava sentado, fumando o restinho do cigarro. Estava tranqüilo, mas a gente sentia que alguma cousa lhe acontecia por dentro. A voz estava serena; num fim de frase me pareceu meio trêmula. Dizia que precisávamos ficar, que tudo podia ser fruto de desentendimento e que a ressaca podia passar (...) Trouxeram, um pouco de café, pois Anísio tomava-o o tempo todo. A mão tremia levemente. E veio a frase que não pude esquecer: Vejam o que fazem. De mim sinto que esta será a última vez. A primeira foi em 35. Se ocorrer outra, eu já poderei estar morto. Anísio não parecia vencido, mas cansado".

Exilou-se, mais uma vez. Certa feita escreveu a Abgar Renault: "Sou um homem a quem a vida dá e tira com certa grosseria". A Fernando de Azevedo diria. "Se tivesse que viver de novo, viveria como vivi... apenas pediria que a vida fosse mais curta".

Mas sua vida foi mutto curta para o Brasil, que só o teve até os 70 anos, quando, de forma até hoje não explicada, um mês depois da morte do deputado Rubens Paiva, apareceu morto no fundo do poço de um elevador, no Rio de Janeiro.

Anísio Teixeira não foi um intelectual marxista. A Hermes Lima chegou a confidenciar que o insuficiente contato com o marxismo era uma falha de seus estudos. Entretanto, tinha uma concepção revolucionária que vai sendo reexaminada por estudiosos como o professor João Augusto de Lima Rocha, da Bahia, e Florestan Fernandes.

O ambiente brasileiro da época de Anísio não achou por bem ressaltar o papel de quem se comprometia tanto com a defesa da educação pública. O Ministério da Educação e Cultura foi-lhe conceder a comenda da Ordern Nacional do Mérito Educativo, no grau de Grande Oficial, só depois de morto, como que numa reparação histórica, a partir de iniciativa do então ministro Jarbas Passarinho.

Mas é dramático que, com o alijamento de Anísio do papel de formulador principal da educação brasileira, foi-se mudando a orientação da educação do país. Acordos foram assinados, durante o regime militar, entre o regime militar, entre o MEC e a Usaid, inspirados no famoso Relatório Atcon, que, entre outros pontos, recomendava "transformar a universidade estatal em fundações privadas" e "colocar o ensino superior em bases rentáveis, cobrando matrículas crescentes".

Foi-se destruindo a obra de Anísio Teixeira, os Centros de Pesquisa, os programas do Inep, a Escola Parque da Bahia, a Fundação para o Desenvolvimento da Ciência. Muitas de suas idéias, embora desconectadas de sistema uniforme, reaparecem na prática educacional de hoje, na discussão na última lei de Diretrizes e Bases e, em Brasília, sobrevivem na universidade, nas escolas Classe e Parque.

De suas formulações, pode-se extrair esparsas lições de política, filosofia e de vida, tais como: "é fácil organizar um hospital sem doentes, uma escola sem estudantes. A presença da vida é que complica!"; "a burocracia no Brasil não é um fato, é uma ideologia"; "no Brasil, a cultura isola, diferencia, separa"; "a universidade não tem nenhuma verdade a dar a não ser a de buscá-la"; "nunca procurei fazer díscipulos; às vezes mais perturbo que educo".

Haroldo Lima é deputado federal pelo PCdoB. Excertos de pronunciamento do autor.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |