TEIXEIRA, Anísio. Por uma escola primária séria, honesta e viva. O Estado de São Paulo. São Paulo, 16 abr. 1958.

Por uma escola primária séria, honesta e viva

Respondendo ao ataque dos bispos do Rio Grande, que endossaram uma campanha até agora anônima que lhe vem sendo feita em meios clericais, de maneira simples, incisiva, direta - diz um jornal carioca - o professor Anísio Teixeira volta a tratar de público, do problema a que tem dedicado a sua vida: ensino.

Eis a íntegra do seu pronunciamento, que visa dissipar dúvidas com respeito aos pontos de vista sustentados durante anos:

"O memorial dos senhores bispos do Rio Grande do Sul reitera afirmações já negadas ou esclarecidas em documento, que muito me honra, dos educadores brasileiros da Associação Brasileira de Educação. O seu texto deforma tendenciosamente o meu pensamento e, a meu ver, não exprime sequer a doutrina educacional da Igreja. Por exemplo, rebela-se contra o programa de educação primária obrigatória e gratuita, elaborando na reunião de Ministros da Educação, em Lima, patrocinado pela Organização dos Estados Americanos e pela UNESCO, e que teve aprovação formal e veemente de S.S. o Papa.

Assim sendo, julgo desnecessário respondê-lo, valendo-me entretanto da oportunidade para, mais uma vez, repetir de modo sumário e claro, quais as diretrizes que orientaram toda a minha vida de educador e ainda agora disciplinam a minha atividade no INEP.

A fim de evitar tão reiteradas incompreensões, enuncio as minhas declarações em simples afirmações e negações, que mostram o que propugno e o que combato.

SOU CONTRA: 1. Sou contra a educação como processo exclusivo de formação de uma elite, mantendo a grande maioria da população em estado de analfabetismo e ignorância. 2. Revolta-me saber que metade da população brasileira não sabe ler e que, neste momento, mais de 7 milhões de crianças entre 7 e 14 anos não têm escola; 3. Revolta-me saber que dos 5 milhões que estão na escola, apenas 450.000 conseguem chegar á 4ª série, todos os demais ficando frustrados mentalmente e incapacitados para se integrarem em uma civilização industrial e alcançarem um padrão de vida de simples decência humana. 4. Contrista-me verificar a falta de consciência pública para situação tão fundamente grave na formação nacional e o desembaraço com que os poderes públicos menosprezam a instituição básica de educação do povo, que é a escola primária. 5. Aceitando como um dos grandes progressos da consciência brasileira a expansão do ensino médio, que hoje acolhe perto de um milhão de adolescentes, lamento a desvinculação desse ensino das exigências da vida comum de uma nação moderna e o seu caráter confuso e enciclopédico de falsa formação acadêmica. 6. Revolta-me ver que de toda essa esplendida juventude, menos de 5% chegam aos umbrais da universidade, frustrando-se os sacrifícios de centenas de milhares de famílias para lhes dar a educação indispensável a uma habilitação real ás tarefas de nível médio que lhes estão sedo oferecidas. 7. Reduzido o ensino, numa pletora de matérias, a um adestramento mecânico para os exames, nem se vêem preparados para a universidade os que logram o diploma, nem os demais, depois de perderem em frustrações sucessivas os anos mais promissores de sua vida, e vêm habilitados para os mais elementares deveres da vida e do trabalho. 8. Choca-me ver o desbarato dos recursos públicos para educação, dispersados em subvenções de toda natureza a atividades educacionais, sem nexo nem ordem, puramente paternalistas ou francamente eleitoreiras. 9. Escandaliza-me ver que numa população de sessenta milhões em marcha para a civilização industrial, apenas um milhão de pessoas tenham ensino secundário completo e apenas 160 mil tenham educação superior, oferecendo-se á juventude brasileira apenas 20.000 vagas para a formação universitária, o que constitui séria ameaça de colapso para o nosso desenvolvimento econômico e cultural. 10. Sou contra a dispersão dos esforços no ensino superior pela multiplicação de escolas improvisadas em vez da expansão e fortalecimento das boas escolas.

SOU A FAVOR: I. Sou a favor de uma escola primária organizada e séria, com seis anos de estudo nas áreas urbanas e quatro na zona rural, destinada á formação básica e comum do povo brasileiro. II. Sou a favor de uma escola média que continue em nível mais alto, o espírito de educação comum da escola primária, mais preparatória para a vida do que simplesmente propedêutica aos estudos superiores, organizada em torno de um currículo mais simples e verdadeiramente brasileiro, em que a língua nacional, a civilização nacional e a ciência sejam os verdadeiros instrumentos de cultura do aluno. III. A meu ver, os recursos - sabiamente assegurados pela Constituição á educação - devem ser aplicados como algo de sagrado e á luz de dois critérios básicos: primeiro, o de assegurar a cada brasileiro o mínimo fundamental de educação gratuita, isto é, a escola primária; segundo, somente custear com recursos públicos a educação pós-primária de alunos escolhidos em livre competição, a fim de que o favor da educação gratuita não se faça meio de manter os privilégios, mas de premiar o esforço e a inteligência dos melhores. IV. Sou a favor de uma educação voltada para o desenvolvimento, que realmente habilite a juventude brasileira á tomada de consciência do processo de autonomia nacional e a aparelhe para as tarefas materiais e morais do fortalecimento e construção da civilização brasileira".

MOVIMENTO DE SOLIDARIEDADE

A propósito, um grupo de intelectuais de São Paulo acaba de dirigir ao ilustre professor um ofício hipotecando-lhe solidariedade e apoio moral, ao mesmo tempo que proclama o seu idealismo e patriotismo.

O documento, é do seguinte teor:

"Exmo. sr. dr. Anísio Teixeira: Temos o prazer e a honra de dirigir-nos, neste momento, ao brasileiro eminente que, a despeito de apresentar uma das mais notáveis folhas de serviço á Nação, está mais uma vez sob a ameaça de ser desalojado de suas altas funções na administração federal. As hostilidades com que agora se procura ferir v. exa. tem as mesmas origens e são fortemente marcadas pela mesma incompreensão e grave injustiça das que sofreu em outros tempos. Mas nunca suas idéias e asserções, na luta sem desfalecimentos pela causa da educação nacional, de que v. exa. é um servidor "sem medo e sem mancha", foram tão mal interpretadas e tão desvirtuadas.

A defesa que vem sustentando, da escola pública, não importou jamais em negar o direito e em subestimar o alcance das iniciativas privadas, leigas ou confessionais, nos domínios da educação. É esse um ponto em que v. exa. tem insistido por tal forma que espanta ainda possa estar sujeito a interpretações equívocas e a lamentáveis deformações. Afirmar a importância crescente da escola pública, trabalhar por ela e realçar-lhe o valor social, não é de forma alguma propor a política da "escola única", mas constatar fato de uma evidência que salta aos olhos de todos. Pois a história do ensino, nos tempos modernos, como um de nós já teve ocasião de observar, é a história de sua conversão em serviço público.

Protestando contra esse movimento sectário que visa arrancar á administração um dos maiores educadores do País - idealista impenitente e de extraordinário espírito público, pedimos a v. exa. aceitar a expressão muito cordial de nossa irrestrita solidariedade. Se todos os que têm contacto com v. exa. são unanimes em reconhecer, desejamos ser dos primeiros a proclamar publicamente a honestidade e elevação de propósitos, a pureza de ideais republicanos, a dedicação incomparável ao serviço público e a capacidade excepcional com que v. exa. tem abordado e procurado resolver ou pôr em via de solução os problemas mais urgentes da educação no Brasil.

Com os protestos de nossa profunda estima e de nosso mais alto apreço. - São Paulo, 14 de abril de 1958 - (aa.) Fernando de Azevedo, Lourival Gomes Machado, Florestan Fernandes, João Cruz Costa, Egon Schaden, Fernando Henrique Cardoso, Maria Alice Foracchi, Gilda de Mello e Souza, Antonio Candido de Mello e Souza, Otavio Ianni, Gioconda Mussolini, Milton da Silva Rodrigues, Joel Martins, Renato Jardim Moreira, Dante Moreira Leite, Livio Teixeira, Maria Isaura Pereira de Queiroz, Ruy Coelho, Tomaz Assis Bastos e Laerte Ramos de Carvalho".

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