JARDIM, Luiz. Educação primária. Correio do Povo. Porto Alegre, 11 jan. 1958.

EDUCAÇÃO PRIMÁRIA

LUIZ JARDIM

O livro do professor Anísio Teixeira - "Educação não é privilégio" - (Livraria José Olimpio Editora) màgicamente me transportou para os meus verdes anos, que não são os do escritor José Lins do Rego.

Era em Garanhuns, terra frígida, padrão de cima segundo a classificação do Barão Homem de Mello, onde se ostenta a serra do Magano, a que cachimba em densa serração, fase preparatória admite-se, para um dos maiores vulcões do mundo. O nosso orgulho, justo, vê sempre as coisas magnificadas, mesmo ruins, se têm a marca nacional. Cresci sob o signo dêsse vulcão, que nunca eruptou. Este verbo é nosso, de lá, e necessário.

A minha escola primária era à "Raul Pompéia", do meu primo em segundo grau, Arthur Maia, escolinha particular onde êle ensinava a uns vinte meninos, de cujos pais recebia o suficiente para menos do próprio sustento. Nela fiz o meu primeiro grau escolar, que também foi o último. Formei-me em nada, portanto, aos onze ou doze anos, e nem atestado possuo dessa primariedade. (Era preciso êsse substantivo). Primário não chego a ser, porque inacabado.

Dizia o farmacêutico Joca - bom filósofo deporta de botica - que quem ajuda muito ao médico é o próprio doente. Por mais absurdo que seja, os ignorantes também ajudam aos doutos. Quando mais não sejam, valem como ponto de referência, outra teoria do bom do Joca. Por êsse ângulo me esquivo, justificando-me, pois mesmo a primária é matéria muito séria.

O professor Anísio Teixeira preconiza - e convence-nos com a sua tese - a escola municipal formada de seus próprios elementos, guardando-se a diversidade, que enriquece, dentro da unidade nacional. Perfeito, tal e qual o fenômeno literatura, que não é feito senão de pedaços de terra, desunidas pelo espaço, pelas peculiaridades, mas unidas pela mesma finalidade.

Pois bem: o admirável, o extraordinário professor que foi Arthur Maia ensinava peculiarmente. E êle daria, se fosse, vivo, o aplauso mais entusiástico ao professor Anísio Teixeira. Garanhuns e seus fenômenos gerais, pois nada melhor para entrar no entendimento rude e obstinado, como acontece com a grande maioria das crianças, do que o palpável, o que se vê e se conhece de perto, ao alcance da mão. Lembro-me que o açude do Govêrno êle mostrou a todos os alunos o que era um pomontorio.

Arthur Maia desprezava por assim dizer a palavra como índice das coisas. Monstrando-as, indicando os fenômenos, os fatos, as palavras então a êles se grudavam para sempre, associação perfeita de designação e objeto. Da gramática que era o seu drama das crianças - dizia justos horrores: acervo desnecessário de nomenclatura, tecnologia empolada onde muita cabeça se perde, causa de muita frustração. A gramática onde aprendi o meu saber de menino era copiada a mão. Dela se encluia - porque sumula de outras - a tecnologia que êle chamava paralela esclarecendo: "Para saber o nome Luiz não é necessário, por enquanto, perder tempo com Ludovico".

Para um fato, diàriamente, êle chamava a atenção do aluno: "Não decore. A escola não é gaiola de papagaio. Quem tiver consciência de um fato não conhece o fato, embora lhe saiba o nome". Em seguida passava à prática, que foi o seu estilo municipal garanhuense de ensinar:

- Que é um substantivo?

- É a palavra que designa o ser abstrato ou concreto.

- Diga isso por outras palavras, mandava Arthur Maia.

Com essa ordem, que era constante em relação a tudo susceptível de ser expresso por outros têrmos de ser expresso por outros têrmos, o menino compreendia a advertência do professor; "Quem não tiver consciência de um fato não conhece o fato". Certa vez para explicar o que era o substantivo por outras que não palavras da gramática, ao alcance da memória, mas longe da compreensão, levei seguramente uma hora. Ao cabo do meu esforço de parto, disse-me êle muito mais satisfeito do que eu, que suava, arrazado:

- Você aprendeu o que é substantivo somente agora, e sabia na ponta da língua as palavras que pareciam indicar que você havia compreendido o fenômeno.

Aliás, Arthur nunca permitiu que um seu aluno prenunciasse as palavras dos livros, ignorando-lhes o sentido. E qualquer incidente na aula era motivo para lições. Lembro-me do dia em que Gabriel, menino que embaralhava palavras, tendo de explicar com tecnologia própria o caso de supressão de letras no começo das palavras, dêste jeito respondeu:

- Esse fenômeno, professor, é o de sargentese.

Houve uma gargalhada geral, reprimida imediatamente pela fisionomia severa de Arthur Maia, que em seguida nos deu a primeira aula sôbre associação de idéias. E defendeu Gabriel, declarando que tomar sargentese por aferese era a conseqüência fatal do ambiente em que o menino vivia, a beira do açude do govêrno onde se falava, mal por capricho, onde os soldados tagarelavam a sua gíria. E a propósito dêsse fato disse então o que está no livro de um homem da categoria de Anísio Teixeira

- A criança devia passar pelo menos dez horas na escola sobretudo a criança que é vítima do meio em que vive. Aprender também é teimosia, e tanto mais se aprende quanto mais se for teimoso.

Em 1926 creio eu, quando o vi pela última vez, Arthur Maia me perguntou, cheio de esperança, pois êle via em mim ainda o menino-aluno que fui.

- E os estudos, Luis?

Confessei-lhe que à vida me impôs aquêle grau primário em sua escola. Nunca mais pude entrar noutra. E Arthur fez um verdadeiro discurso, cheio de entusiasmo, quando admiti que escola deveria ser como farmácia, como pronto socorro, aberta dia e noite às dores da ignorância. E reformada, ampla, objetiva, descomplicada, ao alcance de todos, mas instituição obrigatória e tão prestigiada que os seus devotos, os professores, não vivessem na penúria de um Arthur Maia, homem extraordinário verdadeira vocação de professor.

Foi bom ter lido o excelente livro do professor Anísio Teixeira. Ele me fez recordar bem.

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