BASTOS, Zélia. Anísio, o educador do ano 2000. A Tarde. Salvador, 12 jun. 1987.

ANÍSIO, O EDUCADOR DO ANO 2000

As obras literárias, aulas, discursos, conferências, artigos, relatórios, entrevistas e cartas de Anísio Teixeira são o maior repertório sobre educação em língua portuguesa. Adiantado no tempo com seus conceitos, filosofia e soluções práticas na educação, comprovadamente, através de obras diversas, dentre elas o Centro Educacional Carneiro Ribeiro, precursor em educação de tempo integral no Brasil, que tem servido de modelo aqui na Bahia e em todo o País. Nada será novo até o ano 2000; poderá parecer exagero, mas sua trajetória na educação no País, seus anteprojetos, projetos e bases para planos de organização dos sistemas educacionais, abordando diversos períodos da história e assuntos os mais variados, dão prova da competência e sabedoria, da brilhante inteligência acostumada a pensar eficazmente na solução de nossos problemas.

Nasceu a 12 de julho de 1900, no sertão baiano, na cidade de Caetité o educador Anísio Teixeira, que, na fatal manhã de 11 de março de 1971, saindo da sede da Fundação Getúlio Vargas, teria um fim trágico e imprevisível, abrindo uma lacuna imensa, que poucos saberão avaliar, no sistema educacional brasileiro.

Aluno dos jesuítas desde o colégio São Luiz, em sua cidade natal, completou o curso secundário no Colégio Antônio Vieira, em Salvador, o de Direito no Rio de Janeiro, tornando-se Mestre em Ciências de Educação, pela Columbia University - EUA, de onde voltou com o título de "Master of Arts", em 1929. Diretor de Instrução do Estado da Bahia em 1924, diretor do Departamento de Educação em 1932 e secretário de Educação e Cultura do Distrito Federal, Rio de Janeiro, em 1935, instituiu a Universidade do Distrito Federal, dando origem à Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil. No período de 1935 a 1945, recolheu-se à vida privada, que no dizer dele "...foi uma bela ocasião para demonstrar a mim mesmo que vencera realmente os dualismos entre pensamento e ação, trabalho manual e intelectual, corpo e espírito". Conselheiro para o Ensino Superior, na UNESCO, em Londres (1946-1947), fez múltiplas conferências na Europa, EUA, México, Argentina e Chile. Secretário de Educação e Saúde do Estado da Bahia (1947), secretário da Campanha Nacional de Aperfeiçoamento do Pessoal de Ensino Superior (Capes), diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) e do Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, exerceu também o magistério como professor de Filosofia da Educação, na Escola Normal da Bahia, na Escola de Educação do Rio de Janeiro, sendo catedrático de Administração Escolar da Faculdade de Filosofia da Universidade do Brasil, membro do Conselho Federal de Educação e autor intelectual da Universidade de Brasília, da qual foi também reitor,

DEMOCRACIA E CIÊNCIA

Algumas vezes reporto-me ao pensador, ao educador, ao filósofo, ao escritor, ao professor, ao conferencista; hoje, permito-me homenageá-lo, expondo alguns dados biográficos e utilizando citações suas as mais atuais, fazendo uma análise parcial da obra que deixou.

Para resgatar sua memória, traremos a público, sempre que oportuno, o revolucionário educador, da Bahia, do País e da América Latina.

.'Democracia e Ciência" - eis as duas coordenadas básicas dentre as quais encontramos o pensamento e ação de Anísio Teixeira.

Em abril de 1924 - nomeado inspetor geral do ensino da Bahia - época em que a educação não era tratada como fator de integração social, já o novo educador teve que enfrentar respeitáveis figuras conservadoras da cultura baiana, que se contrapunham ao seu ritmo dinâmico de intelectual prático, resultando daí o seu pedido de demissão, por não encontrar apoio ao seu "Plano de Reorganização Progressiva do Sistema Educacional Baiana", sendo nomeado então professor de Filosofia da educação da Escola Normal de Salvador, por um período

A situação educacional da Bahia, antes e durante o Estado Novo, era de total abandono, a escola simplificada e ineficiente, tanto no que tange ao ensino como na quantidade, qualidade e equipamentos dos prédios escolares. Para alterar este quadro, está deformação, esta distorção no sistema educacional, idealizou o que consta na "Carta Constitucional da Bahia - 1949". Assim é que Anísio Teixeira resolve pôr em prática o plano de construção do sistema escolar da capital e interior; parte daí a idéia dos centros educacionais, constando do relatório de 1948, capítulo significativo: "A recuperação do ensino primário".

A princípio, no interior construiria três tipos de escolas - a provisória, a semiprovisória, a permanente e mais as chamadas compreensivas, destinadas ás cidades com mais de cinco mil habitantes, esboço da primeira idéia do centro educacional; pensava em "30 escoIas-clase e sete ou oito escolas-parque" (1947).

"É chamada escola compreensiva porque incluirá, além do curso elementar integral, com pequenas oficinas de artes industriais, o ensino de extensão aos adultos, e a biblioteca e o auditório de aplicação mista, nela é que a escola primário se desdobrará em todos os seus aspectos e em que se processará o que se está aqui a chamar de recuperação da escola primária."

Com referência ainda ao relatório de 1948, acrescentava ao plano de trabalho inicial, um internato para 100 crianças, para "atender ao governador Mangabeira", preocupado com a terrível situação dos menores abandonados. Este internato deveria abrigar as crianças comprovadamente carentes, com a construcão dos centros educacionais, nos bairros de Itapagipe, Brotas, Garcia, Barra (Roça da Sabina, Calabar), Rio Vermelho e o já iniciado na Caixa D'Agua, Centro Educacional Carneiro Ribeiro, abrangendo os bairros da Liberdade, IAPI e Pau Míúdo.

Esta foi a solução proposta para os nossos problemas, baseando-se em decretos e regimentos, "redigidos por ele próprio com tal segurança de conceitos, precisão de objetivos e adequação de linguagem que jamais levaram os professores a recorrer ao judiciário para garantia de seus direitos, reais ou hipotéticos, o que hoje se tornou prática freqüente nem exigiram para a sua plena compreensão e execução outros recursos senão os de seus admiráveis comunicados que, decorridos mais de um quartel de século, ainda poderiam ser republicados como documentação oportuna e útil ao desenvolvimento da educação popular".

Tomado pela preocupação crescente entre o material e espiritual, e entre o planejar dos sistemas educacionais do estado, testemunhamos através de suas produções literárias, a idéia constante com a formação integral do homem - e a criação dos Centros Integrados de Educação - e com os seus conceitos postos em prática.

CRENÇA NA HUMANIDADE

Educação é um Direito (1968), Educação não é Privilégio (1957), Educação e a Crise Brasileira (1956), e tantos outros livros demonstram a sua crença na humanidade, a sua criação pedagógica voltada principalmente para o homem como um todo. No dizer de Afrânio Coutinho, "...Anísio homem de fé, fé no espírito, fé nas causas em que se empenha, fé nos princípios, fé na humanidade, fé no ideal. Uma fé ardente, envolvente, comunicativa, que arrasta, que conquista, que arrebanha, que comanda. Fé dos generais, dos guerreiros, dos líderes, dos santos, dos homens que costumam vencer, criar, inventar, mobilizar, conduzir, remover montanhas. Jamais poderá ser tomado como materialista, para os julgadores mal-avisados ou de breves análises à idéia, do seu materialismo. Mas quem acredita no aperfeiçoamento humano e social como solução dos problemas materiais não é necessariamente um materialista."

No próprio Cristianismo, na própria filosofia da Igreja, há exemplos da preocupação material sobrepondo-se muitas vezes aos valores espirituais, "São Tomás disse que a quem tem fome se dá de comer e não discursos".

Uma inteligência clara e pura e ao mesmo tempo corajosa. É incomum, principalmente nos tempos atuais, encontrarmos alguém que ataque de frente, e com determinação própria, os problemas nacionais, desmistificando o ufanismo e a irresponsabilidade, a complacência, o conformismo, a aceitação, o faz-de-conta, a hipocrisia e a empulhação frente a todas as farsas no trato de tantos problemas brasileiros. Merecem pois destaque os educacionais que têm sido tratados mais política que tecnicamente, num país em que a educação está a mercê da política partidária, e em que se esquecendo a realidade social que salta aos olhos até dos leigos. E ainda ressaltando Afrânio Coutinho. "... seus ensaios demonstram como a, rigorosa lógica de um insuperável dialeta e ao ferro em brasa de uma inteligência acostumada pensar com a cabeça e as mãos".

Procurando entender todo o processo porque passou a escola, analisando alguns dos mais graves problemas - a repetência e a evasão escolar - perguntava Anísio "o que se dava em 1924? Sistema escolar com 47.589 alunos, depois de um ano de trabalho, apresentava 4.312 crianças que haviam aprendido e 43.277 que deveriam ser reprovadas"...

A CRISE DO ENSINO

A atual crise do ensino brasileiro não difere muito daquela, motivada por uma sucessão de fatos de ordem técnica, política, administrativa, econômica, que todos conhecem, a começar com os profissionais de formação deficiente, tendo a seguir o aviltamento do salário, as péssimas condições de trabalho do magistério e a carência de equipamentos, dentre outros mais graves.

Forma e conteúdo dos currículos, objetivos, métodos, continuam longe de atingir as necessidades atuais; distantes da nossa realidade, não acompanharam o progresso.

Afirmava Anísio: "... a qualidade, o conteúdo e a distribuição da educação são determinados pelas condições sociais e culturais e revelam formas e modos de atingir e preservar objetivos e valores, nem sempre expressos, mais importantes e -queridos da organização social existente. E a escola através da História é o instrumento de controle social de manutenção do tipo e qualidade de sociedade dominantemente aceitos". Defendendo sempre a descentralização do ensino e denunciando a legislação do ensino brasileiro como totalitário, afirmava ainda: "são imposições federais, de planos unitários de organização, currículos e métodos, invadindo a esfera não somente de iniciativa individual, reconhecida na Constituição mas a das atribuições expressas dos estados e da consciência profissional do professor".

O que há hoje são sistemas antidemocráticos, pois a maneira de estudar, aprender, trabalhar, distrair-se, instruir-se, conviver, participar é que liga o cidadão ao pleno exercício da democracia, ou melhor, a produzir democracia, a democracia sendo acima de tudo respeito pelo homem, pelo social e pela vida. Em Educação é um Direito – declara Anísio – "... Sabemos já o que seja democracia... Conhcemos as suas promessase os seus frutos, mas sabemos também que é por excelência, um regime social e político difícil e de alto preço. Todas as suas virtudes têm um reverso - a dificuldade. O seu próprio lema, tão velho e tão sonoro, de liberdade, igualdade e fraternidade é uma forma condensada dessas dificuldades. A liberdade não é ausência de restrições, mas autodireção, disciplina compreendida e consentida; igualdade não é fácil nivelamento, mas oportunidade igual de conquistar o poder, o saber e o mérito; e a fraternidade é mais que tudo isto, mais que virtude, mais que saber: é sabedoria, é possuir senso profundo de nossa identidade de destino e de nossa identidade de origem. Democracia é assim um regime de saber e de virtude. E saber e virtude não chegam conosco ao berço, mas são aquisições lentas e penosas, por processos voluntários e organizados. Na sua competição com outros regimes, a desvantagem maior da democracia é a de ser o mais difícil dos regimes – por isto mesmo o mais humano e o mais rico... A democracia é o regime da mais difícil das educações - a educação pela qual o homem, todos os homens, e todas as mulheres aprendem a ser livres, bons e capazes.

Mas a democracia depende de se fazer do filho do homem - graças ao seu incomparável poder de aprendizagem - não um bicho ensinado, mas um homem. Assim embora todos os regimes dependam da educação, a democracia depende da mais difícil das educações e da maior quantidade de educação. Há educação que é treino, que é domesticação. E há educação que é formação do homem livre e sábio. Há educação para alguns, há educação para muitos e há educação para todos.

Nesse regime, pois, a educação faz-se o processo mesmo de sua realização. Nascemos desiguais e nascemos ignorantes, isto é, escravos. A educação faz-nos livres pelo conhecimento e pelo saber e iguais pela capacidade de desenvolver ao máximo nossos poderes inatos. A justiça social, por excelência, da democracia consiste nessa conquista da igualdade de oportunidades pela educação.

Democracia é, literalmente educação. Há entre os dois termos, uma relação de causa e efeito. Numa democracia, pois nenhuma obra supera a de educação. Com efeito todas as demais funções do estado democrático pressupõem a educação, que não é a conseqüência da democracia, mas a sua base, o seu fundamento, a condição mesma para a sua existência.

Democracia, é assim, o regime em que a educação é o supremo dever, a suprema função do estado. Seria vão querermos equipará-la às funções de polícia, ou de viação, ou mesmo de justiça, porque a educação constitui a única justiça social que me parece suficientemente ampla e profunda para apaziguar a sede de justiça social dos homens.

ANOS DE ATRASO

Todos falamos em regime de justiça social, porém haveis de me permitir sublinhar o sentido de justiça social da democracia. Nascemos diferentes e desiguais, ao contrário do que pensavam os fundadores da própria democracia. Nascemos biologicamente desiguais. É a democracia que oferece a todos e a cada um oportunidades iguais para defrontar o mundo, a sociedade e a luta pela vida, a democracia aplaina as desigualdades nativas e cria o saudável ambiente de emulação em que ricos e pobres se sentem irmanados nas mesmas possibilidades de destino e de êxito. A educação é, portanto, não somente a base da democracia, mas a própria justiça social.

Que fizemos nós no Brasil, até hoje, para que essa suprema função do estado - a educação - se exercesse? A resposta a esta pergunta exprime-se pelo fato mesmo de estarmos aqui a fundar pela terceira vez, a democracia. (1947).

Por que estamos, com 125 anos de atraso, a fundá-la hoje? Porque não tivemos educação, a educação universal e livre que cria a democracia".

" Há quatro tipos de governo, afirmava o americano Prof, Russell, da Universidade de Columbia: "Há o governo dos ignorantes pelos ignorantes, que é a tirania, há o governo dos que sabem pelos ignorantes, que significa revolução próxima; há o governo dos ignorantes pelos que sabem, que é o despotismo benevolente; e há o governo dos que sabem pelos que sabem que é a democracia. Que tivemos até hoje? Quando muito, despotismo benevolente, o governo dos ignorantes pelos que sabem ou pretendem saber. E isto por que? Porque não fizemos da educação o serviço fundamental e básico do estado.

Vejamos - a democracia da América do Norte, não começou mais cedo do que nós; de certo modo começou depois de nós, quando Horace Mann iniciou sua grande campanha pela educação pública e gratuita para todos, na presidência de um Conselho de Educação de Boston, iniciava então uma luta que só 1847 começa a dar seus primeiros frutos.

Naquela época na Bahia, já tinhamos até a nossa Escola Normal, isto é, a formação profissional de mestres primários, que a América só iria conhecer anos depois.

A escola sempre foi um dos deveres mais relegados e menos sérios do poder público; a polícia, a cadeia foram sempre mais importantes do que a escola pública. Mesmo hoje, no estado da Bahia, gasta-se mais com as suas "forças da terra" do que com todo o professorado primário, secundário e normal.

Passemos, com efeito, os olhos pela nossa história. Que fomos? Colônia, mais de três séculos. E como colônia, governados por um grupo que não me atrevo de chamar aristocrático, porque antes seria escravocrata. Fomos então qualquer coisa como escravocracia. Como poderíamos aprender democracia na Colônia?

E depois da Colônia, que tivemos? A monarquia, com rótulo superlativo de Império.

Jamais tivemos regime que fosse, na real concepção de democracia, a integração de todo o povo com e em seu governo; em que não houvesse distinção radical entre a classe dominante e o povo, em que não houvesse a classe que se beneficia do Brasil e a que trabalha, peleja e sofre para a existência dessa outra classe.

Às vezes ponho-me a indagar: por que será que o governo, entre nós, há de ser sempre um como bem privado, que se conquista como se fosse um tesouro, uma riqueza a ser distribuída com os amigos, companheiros e partidários?

Sabemos que somos um país de distâncias físicas, sabemos que temos uma geografia que nos separa em suas imensas distâncias. Mas, o Brasil não é apenas um país de distâncias materiais, o Brasil é um país de distâncias sociais e de distâncias mentais, de distâncias culturais, distâncias econômicas e de distâncias raciais. E por causa dessas distâncias que temos tantas linguagens pelo Brasil afora. Falamos uma língua em voz alta e outra em voz baixa. Temos uma língua para as festas e outra para a intimidade. Uma para o povo, outra para o estrangeiro e outra para os nossos "iguais".

Anísio, um profeta? Um visionário? Um reformador? Um erudito? Não. Um adiantado no tempo. Nele temos a medida do nosso sentido de futuro.


Zélia Bastos

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