COUTINHO, Afrânio. Educação pública e particular. Última Hora. Rio de Janeiro, 27 abr. 1958.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATj61

Educação Pública e Particular

Afrânio Coutinho

Há muito tempo não assistimos no Brasil a um movimento que empolgasse tão vasta área da opinião nacional, como o que envolveu, nas duas últimas semanas, a figura de Anísio Teixeira, ameaçado de afastamento das funções públicas que exerce com o maior zêlo dignidade e competência. E o mais importante é que, a despeito de a ameça provir de um precipitado gesto de intolerância religiosa, a reação não se produziu em hostilidade ao catolicismo, o que seria um absurdo para responder a outro absurdo, mas comprometeu igualmente católicos e não católicos, numa unanimidade de pareceres que mostra a injustiça e a iniquidade do processo que se quis levantar contra o insigne pensador e educador brasileiro. Desiludam-se, pois, os pescadores de águas curvas, que não lograrão explorar a situação. O pensamento católico também tem dinamismo democrático e senso de justiça para defender as causas nobres.

«

Que isso fique bem claro. A defesa não se fundamenta em oposição à Igreja Católica, pois o problema assim colocado falsearia completamente a posição daquele educador. E não teria a seu lado os católicos que o compreendem sinceramente e o estimulam na sua batalha pela educação nacional.

Ao contrário, o que êle mais deseja, bem como os que o cercam - católicos ou não - é que haja a seu respeito uma atitude de compreensão, que só pode resultar de um desarmamento dos espíritos e da boa vontade em examinar as posições dos que não são aparentemente nossos. Quando não há fé o dever primordial de quem julga é conhecer e respeitar a posição do julgado, e não desfigurá-la, deformá-la para melhor combatê-la. Nem sempre o combate é o melhor, e muito menos combate pelo combate, só pela obrigação de combater, como se fosse impreterivelmente impossível o acôrdo e a harmonia de vistas.

«

E é essa harmonização que interessa e é a ela que estão convidados tods, no interêsse da educação nacional. Que o episódio sirva para um esclarecimento dos problemas educacionais do país, em tão grave situação, desanuviando os espíritos e produzindo benefícios gerais.

«

Já foi aqui afirmado: as teses de que se acusa Anísio Teixeira jamais foram por êle sustentadas. Reduzem-se pràticamente a duas: a) que prega o monopólio estatal da educação, forma de socialismo; b) que, em conseqüência, é inimigo da educação privada, e, portanto, das instituições religiosas que a praticam, o que redundaria no laicismo absoluto do ensino.

É a seguinte a frase em que êle vazaria todo êsse pensamento: "Obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la confiada a particulares, pois êstes sòmente poderiam oferecê-la aos que tivessem posse (ou a protegidos) e daí operar antes para perpetuar as desigualdades sociais do que para removê-las." É um trêcho retirado do livro A Educação não é privilégio (1957), à página 80. Se analisarmos ser idéia preconcebida a sentença, veremos a justeza do conceito. "Obrigatória, gratuita e universal" são três caracteres do tipo de escola a que se está referindo. E qual pode ser êsse tipo! A escola pública. É só a ela que visa na passagem citada, porque seria uma tolice referir-se à escola particular como passível de ser "obrigatória, gratuita e universal". Essas são qualidades da escola pública e nunca particular, que não pode ser obrigatória, gratuita e universal. Por isso que assim se caracteriza a escola pública é que ela é democrática, enquanto a particular é e será sempre uma escola de classes, discriminando ricos e pobres, e freqëntemente brancos e pretos, judeus ou protestantes. Nas escolas públicas as diferenças desaparecem, por isso pode ser obrigatória, gratuita e universal. Está certa, portanto, a doutrina de qualquer perspectiva filosófica ou religiosa em que nos coloquemos. O que êle defende aí é a escola pública, universal e gratuita, tendência do mundo moderno, Não quer dizer com isso que advogue o exclusivismo estatal, nem a proibição da escola particular, como veremos.

«

Mas o trêcho citado faz parte de um contexto, dentro do qual assume outra significação. É tática puco leal isolar frases de um todo, para facilitar a sua contestação. Na mesma página em que aparece, vem uma contestação, clara, como se o autor já esperasse pela acusação sofística, do suposto socialismo da escola pública: "A escola pública universal e gratuita não é doutrina especificamente socialista, como não é socialista a doutrina dos sindicatos e do direito de orgnização dos trabalhadores." E mostra como êsses dois organismos são antes instrumentos do capitalismo, que por meio dêles tem assegurado a sobrevivência em grande parte do mundo.

«

Mas vamos, sem prevenção, sobretudo, às páginas 113 a 116 do mesmo livro. Não poderá restar dúvida. Aí está o desmentido formal: "Não advogamos o monopólio da educação pelo Estado, mas julgamos que todos têm direito à educação pública e sòmente os que o quiserem é que poderão procurar a educação privada". A escola pública não é nenhum fantasma, é sòmente a escola mantida com recursos públicos e esta "não é invenção socialista nem comunista, mas um daqueles singelos e esquecidos postulados da sociedade capitalista e democrática do século dezenove." Nessas páginas, define os fins democráticos da escola pública - a harmonização das classes - e demonstra que respeita a educação particular - "os que o quiserem é que poderão procurar a educação privada" pois esta não é nem pode ser universal nem gratuita.

«

Se não nos satisfazem essas passagens, mais do que claras, os piores cegos são os que não querem ver, há grande estoque em outro livro: A Educação e a Crise Brasileira (1956). Nas páginas 16 a 20, é o problema da centralização e descentralização, com defesa da última e da liberdade de ensino, inclusive com autonomia dos professôres e corporações.

Na p. 48, reconhece a coexistência, no sistema educacional, do ensino público e privado.

Na p. 50, afirma, de acôrdo com a Constituição, que a educação é livre. Na p. 71, reivindica "um regime de ensino superior praticamente livre".

Na p. 72, louva "o que há de esplêndido nessa nossa expansão educacional recente e em curso. O interêsse e a comovente paixão com que municípios, Estados e particulares estão a construir prédios, improvisar professôres e fundar escolas, de todo gênero, são, sem dúvida, dignos de amparo e estímulo…"

Na p. 99, novamente a liberdade de ensino é defendida, o mesmo ocorrendo à p. 122.

Na p. 125, ao insistir na necessidade de autonomia da escola, afirma que "sòmente assim poderá o estado manter escolas com a mesma capacidade de eficiência com que os mantêm as organizações privadas". Isso afirmar é estar muito longe de ser inimigo da educação particular. Ao contrário, quer que o Estado os imite, reconhecendo-lhe a área de ação e a maior eficiência.

 

Na p. 126, alinha, como instrumento de educação, a família, a classe social, a religião e a escola (o que não é ser adversário da religião).

Na p. 201, ao apoiar o projeto de Lei de Diretrizes e Bases, afirma que a educação brasileira deve constituir "um sistema contínuo, diversificado e uno, a ser executado por particulares e pelos poderes públicos"… Adiante na p. 202, insiste em que serão mobilizados a iniciativa particular e as três ordens do govêrno para o objetivo comum.

Na p. 268, reconhece o papel das igrejas como corpos de aplicação do saber, e na p. 296, a função dos valores espirituais, ao lado dos materiais, no enriquecimento da existência humana. (Está isso bem longe do materialismo que lhe atribuem).

E a p. 299, coloca-se em posição divergente não apenas em face do capitalismo, senão também do comunismo, o primeiro, ávido de riquezas, e o segundo, de progresso material, e acredita na vitória do homem.

Quem assim pensa, e traduz tão claramente o pensamento, não advoga o estatismo socialista, nem o monopólio estatal de educação; tão pouco repudia a contribuição do poder privado, leigo ou eclesiástico. É apenas um crente na educação pública, que deseja melhorada e obrigatória, universal e gratuita , ao lado da particular. E defender a educação pública não quer dizer repudiar o ensino privado. Podem cooperar, em harmonia e em proveito do bem comum.

| Artigos de Jornais ou Revistas | Entrevistas |