BOAVENTURA, Edivaldo M. O Anísio Teixeira que eu conheci. A Tarde. Caderno 10. Salvador, 24, jul. 2000. p.6-8.

O Anísio Teixeira Que Eu Conheci

Edivaldo M. Boaventura

Que contribuição posso eu trazer para o conhecimento da vida e da obra de Anísio Spínola Teixeira? Tem crescido bastante. o movimento editorial em torno de sua obra. Artigos, dissertações e teses destacam a sua contribuição à análise e interpretação do problema educacional brasileiro. Só para referendar, em Salvador, João Augusto de Lima Rocha organizou uma coletânea intitulada Anísio em Movimento, a vida e as lutas de Anísio Teixeira pela escola pública e pela cultura no Brasil, publicação da Fundação que tem o seu nome, em 1992. Em convênio, a Universidade Federal da Bahia deu à estampa Chaves para ler Anísio Teixeira, organizado pela professora Stela Borges de Almeida, em 1990. Dentre os ensaios, Luis Viana Filho legou-nos a sua última biografia, Anísio Teixeira: a Polêmica da Educação, editada pela Nova Fronteira, também 1990.

Não faz muito, em 12 de julho de 1904, Rubem Nogueira, deputado estadual e constituinte em 1947, prestou relevante testemunho acerca dos seus encontros e discussões com o secretário de Educação, no governo Otávio Mangabeira, seguido dos depoimentos de Luís Henrique Dias Tavares e Hildérico Pinheiro de Oliveira. Ambos, pelo relacionamento pessoal, estão a dever e a escrever depoimentos mais completos. Muito do que sei sobre Anísio tributo a esses dois amigos. Tenho a certeza de que o presidente do Conselho Estadual de Educação da Bahia e da Fundação Anísio Teixeira, o eminente professor Hildérico Pinheiro de Oliveira, realizou o mais completo Mestrado em Educação, em serviço, nos anos de trabalho em que colaborou diretamente com o líder da educação brasileira.

Repito, então, a questão: que contribuição posso eu trazer para o conhecimento da vida e da obra de Anísio Spínola Teixeira?

A visita do ministro da Educação ao colégio

A primeira vez que eu vi Anísio Teixeira foi ainda no tempo do Colégio Antônio Vieira. Como aluno, formava alas para a passagem das autoridades que acompanhavam o ministro da Educação, Clemente Mariani, em visita. aos jesuítas. Logo que o secretário de Educação entrou no recinto, foi acompanhado pelo padre Manuel Rufino Negreiros, professor de História e Geografia.

Todos nós, estudantes, já sabíamos que o Dr. Anísio tinha sido distinguido aluno do Vieira. Era portanto um dos "nossos". Apesar de perdida a fé e de não ter ingressado na Companhia de Jesus, gozava da notoriedade de ex-aluno. Os jesuítas sempre cultivaram a condição do alumnus, alumni. Para tanto, instituíram a ASIA, isto é, Antiquae Societatis Iesu Alumni (Associação dos Antigos Alunos dos Jesuítas).

Anos depois, fui, cada vez mais, tomando conhecimento de sua figura singular de educador, de sua obra, especialmente da construção do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, no popular bairro da Liberdade, notoriamente conhecido como Escola Parque, da criaçào e funcionamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, a CAPES, da sua marcante direção no Instituto de Estudos e Pesquisas Pedagógicas, INEP, assim. como daquilo que escreveu. Dentre os livros e os estudos, destaco o seu ensaio sobre os valores formais e não-formais da educação brasileira, um primor de interpretação histórica.

Encontro na Secretaria de Educação na Bahia

Recordo um episódio ocorrido na Secretaria de Educação da Bahia, em maio de 1967 com a participaçãoo de Luiz Navarro de Britto, Hildérico Pinheiro de Oliveira, Maria Isabel Bittencourt de Oliveira Dias, Luis Henrique Dias Tavares e outros membros do staff. Anísio viera para a Conferência Nacional de Educação, oconida na reitoria da Universidade Federal da Bahia. O secretário Navarro de Britto aproveitou a oportunidade para levá-lo à secretaria e ouvi-lo sobre o renovador trabalho que se empreendia no governo Luís Viana Filho. Ali falou livremente sem pauta e sem agenda. Lembro-me bem de algumas de suas interessantíssimas considerações.

Como falávamos dos dados e números para o Plano de Educação, muito ao seu modo, destruindo e ao mesmo tempo reconstruindo, ponderou, muito criticamente, sobre o uso relativo que a Estatística deveria ter no ensino. Argumentava que essa disciplina tinha muito mais a ver com a Física e outras ciências do que mesmo com a Educação. Chegou mesmo a afirmar, polemicamente que a Estatística da escola nada dizia da escola. Para tanto, argumentou com a incerteza da natureza, plena como é de curvas, saliências, anfractuosidades, irregularidades, terminando por dizer que a natureza é sempre meio peluda. Assim se expressava e apontava para a extremidade da mesa, mostrando e gesticulando com os dedos, tentando materializar as irregularidades com as saliências do móvel. Contrastou o corte reto da madeira com as incertezas do ser humano. E repetia - a natureza é meio peluda, incerta, para permitir uma regularidade absoluta.

A segunda colocação de que me recordo, igualmente pertinente e irreverente, referiu-se ao professor-pesquisador. Foi notável a sua afirmação, primeiro pelo feitio atitudinal e pela dificuldade de mudança do comportamento. Corn expressiva ênfase afirmou: para que o professor que ensina regularmente passe a pesquisar, seria preciso que houvesse uma mutação na natureza. Sábia ponderação! De fato, a passagem do professor-ensinante para professor-pesquisante, com licença do galicismo, é tremendamente difícil, quando não impossível. Em realidade, uma mutação requer muitos anos. Referia-se Anísio à mudança de novos hábitos intelectuais, especialmente, à criação de novos comportamentos e atitudes no investigar.

Didática do Ensino Superior

Aquela visita, no início de dezembro de 1968, deitou raízes. No ensejo do encontro, deixei escorregar o meu trabaIho sobre "Problemas didáticos do ensino superior". Depois, integrei esse artigo publicado na Revista Porto de Todos os Santos, no meu livro Universidade em Mudança, publicado pela Empresa Gráfica da Bahia, em 1971.

Em 13 de dezembro de 1968, como prolongamento daquele encontro, recebo a sua primeira carta, excelente no posicionamento crítico sobre a Didática do Ensino Superior. Destaco o ano de 1968, tão importante para o mundo, para a Universidade e, particularmente, para mim. Pela primeira vez, dou conhecimento ao público de tão atenciosa missiva. Atente-se que eu era um jovem professor universitário, iniciante no trato dos problemas educacionais da Bahia, do ângulo do Conselho Estadual de Educação. Mestre Anísio escreveu-me uma longa carta de três laudas, respondendo e questionando as minhas colocações sobre uma possível Didática do Ensino Superior.

Tive oportunidade depois de aprofundar o tema, inteiramente diferente do que se chama, no Brasil, de Metodologia de Ensino Superior, com o doutor John Withall, discípulo de Carl Rogers, quando do meu programa de doutorado ern Penn State. Ern um parêntese, para o doutor Withall, os Fundamentos Psicológicos para o Ensino Superior (Educacional Psychology 519. Psychological Foundations for College Teaching) podern ser resumidos em variáveis psicológicas, sociológicas e organizacionais com influência no comportamento do estudante com destinação para os pós-graduados que antecipam carreiras no ensino superior, conforme anotei no rneu relatório sobre As etapas do doutorado. Vamos ler a atenciosa carta:

Rio, 13 de dezembro de 1968.

Meu caro Prof. Edivaldo,

Para que não fiquem dúvidas sobre o nosso primeiro encontro, deixe-me que lhe diga que considero de suma importância os assuntos quo feriu em seu trabalho sobre Problemas Didáticos do Ensino Superior, que teve a bondade me oferecer.

Não há professor de ensino superior que não deva estar familiarizado com todas aquelas idéias, métodos, técnicas, processos e recursos do ensino superior.

O meu ponto de vista é que tudo isso ele, se se destina a ser professor, deve procurar saber e aprender. Mas, como candidato ao magistério superior, é pessoa que já adquiriu uma cultura avançada, devendo dominar, perfeitamente, os métodos de aprender por si - selflearning. Não há necessidade de urn curso para isto. A convivêcia com o ensino (pelos cursos que fez) e, o hábito do estudo o habilitarn a adquirir por si tudo que o livro pode dar e o restante e questão de prática e de exemplo e de dotes pessoais. Como sua carreira vai de auxiliar de ensino até professor pleno - toda essa carreira é seu curso de como ensinar e como estudar.

Considerando o ensino como algo de paralelo à clínica médica, se ele dominar a sua disciplina, a arte de ensinar lhe virá pela prática, prática que lhe exigirá muita leitura, muitos estudos, muita experimentação e muito interesse pelos exemplos de born ensino que lhe dêem outros professores. Sou mais, e não menos ambicioso, do que v. quando considero o curso especial de didática. Julgo o curso dispensável e, talvez, perigoso, porque pode pretender formar o professor de ensino superior e este somente, se forma pela prática longa e interminável de toda sua vida de professor.

Hoje todos reconhecem que só se ensina o como aprender, ficando o que tem o aluno de aprender entregue aos seus cuidados e seus esforços. Se assim é, todo o ensino é um ensino de didática, da didática do conhecimento que estiver ensinando. Como posso eu cuidar de didática em si mesma? É evidente que há um sem número de conhecimentos especiais que comporiam a didática - mas estes conhecimentos, como os de filosofia e lógica, são conhecimentos gerais que o professor adquiriu pelos seus estudos.

Meu ponto de vista, pois, é simples: se alguém deseja ser professor é que resolveu devotar sua vida a estudar e como estudante é que vai ensinar. Como sua luta por aprender fez-se a sua própria vida, não há problema relativo a como aprender de que não tenha experiência. Essa experiência é que o vai guiar na tarefa de transmitir o conhecimento. Em rigor o que ele transmite é sua experiência de ter oprendido e, dentro dela, a de como aprendeu. Tudo isso, portanto, é tão amplo, envolve de tal modo toda sua atividade, que seu método de ensinar é resultado de sua vivência em aprender e, depois, em tentar ensinar.

Um "curso" poderá Ihe dar concentradamente muito de informação, mas, prefiro que a busque, por si, estudando. Há toda uma biblioteca para nutri-lo. O mais, o seu hábito de autodidata, palavra que precisamos reabilitar, Ihe virá dar.

O seu trabalho, considero-o uma contribuição a cursos de extensão sobre o assunto, que seriam, por certo, muito úteis mesmo para professores experimentados. Cursos de extensão são cursos de informação, de vulgarização, de atualizaçãao, todos hoje indispensáveis, dentro da explosão de conhecimentos em que estamos, envolvidos.

Com os agradecimentos pela sua visita e o abraça do colega e admirador

Anísio S. Teixeira

Universidade, a mudança das formas existentes

Em 22 de maio de 1969, recebi outra carta, particularmente interessante quanto à organização acadêmica. Vamos à sua leitura proveitosa com destaque para o tratamento de colega:

Rio, 22 de maio de 1969.

Meu caro colega Edivaldo Boaventura:

Estou realmente em falta com o prezado amigo. Sumamente a tarefado com traduções, preparo de livros para publicação e - o pior - revisões de traduções alheias, que me dão,às vezes, mais trabalho do que as minhas próprias, retardei-me em responder, a primeira remessa do seu índice "Universidade, Estrutura e Método", que me veio acompanhado do seu trabalho sobre "Ordenamento das Idéias na Comunicação Humana."

Agora, recebo sua carta de 19 de abril, pela qual vejo que desejava minha opinião e apreciação. Lembra-se que em sua primeira carta dizia-me que esperava "rever-me quando aí for". Confesso que me reservava para essa conversa, que imaginava utilíssima, pois, hoje também venho pensando muito em nossa universidade.

Acho o plano do seu livro extraordinariamente interessante e de alta oportunidade.

Está claro que não se pode julgar um livro peIo seu índice, mas parece tratar-se de algo compreensivo e particularizado quanto à situação brasileira. Por este lado, é que a sua obra me interessa, pois não me satisfaz apenas o plano ideal do que deve ser, mas o do que deve ser dentro das condições reais e práticas e, verdadeiramente, culturais do país. A imaginação está em desenvolver as potencialidades do possível...

Bem sei que tudo isto parte de um substrato de idéias lúcidas e básicas, as quais,. entretanto, não são ideais, mas deverão estar incorporadas, built in, no comportamento cultural brasileiro. Isto me leva a não ser tão apaixonado, quanto muitos pela simples mudança de estrutura, concebida antes como forma de organização do que como forma de distribuição do poder dentro da organização.

Como sabe, no Brasil, a própria terminologia do ensino superior é ambígua e confusa. Faculdade é aqui o mesmo que escola, quando faculdade é, creio que em todo mundo, "colégio de professores de um campo de estudos".

Não chegamos também à idéia de currículo, substituindo-o por matérias, cursos e programas, mas tudo rígido, uniforme e imposto por lei, alheio, portanto, à experiência de um processo continuado, a ser concebido e estudado em cada caso. Cada matéria hoje envolve uma infinidade de cursos, a ser definido em cada caso e o currículo é que seria a continuação articulada e detalhada desses cursos, cada um dos quais, em seu currículo, teria seu programa ou "silabus".

A idéia de departamento, como setor da faculdade, está a nos chegar, mas receio bem que nos venha com deformações decorrentes de não termos experiência desse órgão como é concebido na organização americana. A, institucionalização de nossa vida é toda feita de fora para dentro, daí a sua alienação e conseqüente deformação.

No Brasil, a real experiência do ensino superior é a escola, ou, faculdade, de medicina, que, adespeito de isolada, profissional e sujeita à desorganização local, logrou criar a cultura científica médica. Para ela, para seus defeitos e qualidade, é que devíamos olhar para saber o que poderíamos fazer com o restante da universidade. Em vez disto, misturamo-la com as outras e estamos em caminho de destruí-la, dentro de planos ideais, que não sei como atuarão na prática.

Nada disto, por certo, afeta o seu trabalho que terá outro caráter. Mas como estou dentro desse empirismo, pensando que a reforma da universidade só pode ser uma mudança nas formas existentes e não das formas existentes, não posso me entusiasmar apenas pela formulação do seu plano. A curiosidade imensa provém do que V puder achar e descobrir e da análise que fizer. Creia-me que serei o mais curioso e devotado leitor do seu livro. Se merecer lê-lo, antes de ser publicado, creio que me interessarei mesmo pela sua publicação, pois o assunto está em cheio dentro de minhas preocupações.

Meu entusiasmo contudo com planos ideais e reformas por meio de leis é espantosamente moderado. As idéias são extraordinariamente importantes, mas para serem atuantes têm de estar incorporadas nos modos de ação, nos hábitos de compreensão e sentimento para se transformarem em motivações do comportamento individual. Todas que são operantes são isto e daí as chamarmos de preconceitos, prejuízos. Os novos conceitos e juízos tem de se fazer preconceitos e pre-juízos para daí mudarem de novo. Isto representa tempo, trabalho e experiência.

Sem querer, expandi-me em minhas perplexidades, que o devem chocar, ante a sua presente experiência francesa, irrecorrivelmente lógica para não dizer cartesiana. Embora também eu, no fundo, seja um cartesiano, todo meu esforço é hoje voltar-me para o empiricismo saxônio, não o pragmatismo apenas de James, mas para o pragmaticismo de Peirce e, porfim, Dewey. A lógica não é de premissas, mas a de problemas, e pensamento é problem-solving...

Se estiver em seu propósito, deixar-me ver o livro, mande-m'o que apreciarei imenso sua atenção por esse peeplexo colega.

Com o abraço e os pedidos de desculpa do colega e admirador sincero

Anísio Teixeira

Aos setenta anos

Ao completar setenta anos, em 12 de julho de 1970, telegrafei-Ihe, cumprimentado-o em nome da Secretaria, da qual ele fora um dos grandes luzeiros. Não tardou a resposta agradecida e educada:

Ao meu caro amigo e colega Edivaldo Boaventura, o meu agradecimento afetuoso pelo seu telegrama do dia 12, a que desejou associar a Secretaria de Educação, o que muito me contentou, pois aí comecei meu trabalho, depois de longo silêncio. Receba e transmita meu muito obrigado pela lembrança. (...) o seu admirador e amigo, Anísio.

Perto de deixar a Secretaria...

Em meado de março de 1971, perto de entregar o cargo de secretário da Educação e Cultura, encontrei-me com o governador Luis Viana Filho, na Igreja da Graça, o qual me comunicou o desaparecimento de Anísio Teixeira, no Rio de Janeiro. Seguiu-se o desenlace. Faltavam apenas horas para o governador passar o cargo. Solicitou, então, que Pedro Calmon o representasse e à Bahia no sepultamento.

E, de uma morte trágica e misteriosa, ressurge cada vez mais a sua mensagem, o seu exemplo de educador, a sua ação e a sua obra. Inúmeros são os trabalhos a seu respeito. A minha contribuição consiste, pois nessas duas cartas envoltas em vivas lembranças dos encontros tão estimulantes.

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