MATTOS, Mário. Dom Vicente e a liberdade de ensino. Imprensa Popular. Rio de Janeiro, 11 mar. 1958.

Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATj61

DOM VICENTE E A <<LIBERDADE DE ENSINO>>

MÁRIO MATTOS

O Arcebispo Metropolitano Dom Vicente Scherer proferiu, por ocasião de uma missa, em sua homenagem um discurso dito <<de protesto contra o movimento que se esboça no Ministério da Educação, em favor do monopólio estatal do ensino no país>>.

Nêsse discurso, feito perante altas autoridades e fartamente divulgado na imprensa acreditamos que de todo o país. S. Revma. acusa a existência de um <<poderoso grupo>> no Ministério da Educação o qual, chefiado pelo professor Anísio Teixeira estaria empenhado em promover <<não só o laicismo do ensino, mas também a laicização e o materialismo da vida>>. E mais adiante explica:<<Sistematicamente procura-se realizar um plano de orientação materialista no ensino nacional e se move uma campanha ardilosa contra as escolas particulares, em favor do monopólio estatal do ensino>>.

Tudo isso seria baseado, ainda segundo Dom Vicente, ‘na mesma filosofia em que se abeberou Carlos Marx para elaborar’ as teses fundamentais da sua interpretação materialista da história e a sua teoria econômica, viga-mestra do comunismo>>.

Nada sabemos das convicções políticas do professor, Anísio Teixeira. Sabemos apenas que é uma das maiores, senão a maior autoridade do país, em questões educacionais.

Entretanto, conhecemos as nossas convicções. E, como comunistas que somos adeptos da doutrina de Carlos Marx, podemos afirmar que, se o Ministério da Educação pretendesse mesmo fazer campanha contra o ensino particular - coisa de que não temos até aqui nenhum indício, a não ser as acusacões de Dom Vicente - é certo que não contaria com o mínimo apoio dos comunistas. Seria um absurdo negar o papel desempenhado pelo ensino particular, tanto laico quanto religioso, na educação de nosso povo, - tão absurdo como contrapor, um ao outro, o ensino oficial e o particular num país como o Brasil, que necessita de ambos, para em mútua cooperação, ser vitoriosa a batalha de vida ou morte contra o analfabetismo e o atraso de nosso povo. Êsses males não mereceram diga-se de passagem uma só palavra do ilustre prelado em seu longo discurso.

Que <<campanha ardilosa>>contra o ensino particular será essa a que se refere Dom Vicente em seu discurso? Para fundamentar tal acusação vale-se o orador de trechos de artigo e entrevistas do professor Anísio Teixeira, em que o mesmo apresenta <<a escola pública universal, e gratuita do Estado como remédio para os males da educação no Brasil>> e a afirma, em tese, que para ser <<obrigatória, gratuita e universal, a educação só poderia ser ministrada pelo Estado. Impossível deixá-la confiada a particulares pois êstes somente poderiam oferecê-la aos que tivessem posses (ou a <<protegidos>>) e daí operar antes para perpetuar as desigualdades sociais que para removê-las>>.

Vemos pois que o prof. Anísio - uma autoridade respeitável do ensino - afirma que a gratuidade do ensino - solução que interessa a esmagadora maioria da nação - só poderá ser atingida por iniciativa do Estado. Nada mais correto e de bom senso. Poderia com efeito tal obra - a universalização do ensino gratuito - ser confiada a particulares. Claro que não, pois as relações capitalistas é que imperariam, e, assim, sempre haveria unilateralismo. Nesta opinião do professor Anísio Teixeira quanto a uma solução DE FUTURO para os problemas do ensino do Brasil, não se caracterizaria nenhuma hostilidade para com o papel necessário ATUAL do ensino particular. É uma simples opinião que deve ser respeitada como tôdas as demais.

Mas o Arcebispo Metropolitano em seu discurso apresenta ainda o recente congelamento das taxas e anuidades escolares, estabelecido em portaria da COFAP, como a evidência da <<mentalidade hostil ao ensino particular>> dominante em certas esferas oficiais>>. Fica insinuando assim que o ato da COFAP seria já uma aplicação prática das opiniões do professor Anísio Teixeira.

Nada mais carente de ligação lógica. É público e notório que o Estado longe de hostilizar, ampara de múltiplas maneiras o ensino particular e, - diga-se de passagem - muito em especial o ensino católico. E isso encarado de um modo geral é mais do que justo, pois parte da necessidade da união de esforços que os problemas de nossa realidade exigem. Ao mesmo tempo é sabido que os donos de colégios particulares usufruem lucros fabulosos, mercê dos inúmeros privilégios destinados ao incentivo desse ramo pelo govêrno, e também do alto preço das taxas e anuidades bem como dos baixos salários pagos aos professores. Por tudo isso foi oportuna a medida da COFAP congelando para êste ano as taxas e anuidades. Essa medida não significa que o Estado diminuisse suas subvenções e auxílios aos colégios particulares, mas, simplesmente, uma benéfica proteção ao bolso do público. Os pais de alunos dos colégios particulares certamente louvam esta medida, pois que terão seu orçamento aliviado dos aumentos pretendidos.

Não vemos portanto motivo para tamanha celeuma em tôrno da <<liberdade de ensino>> ante uma pretensa <<ameaça de laicização>> do ensino e da vida. O problema da liberdade de ensino no Brasil já foi resolvido, em suas bases ideológicas, em 1889, com a separação entre a Igreja e o Estado, que foi um dos triunfos dos batalhadores pela República, e em particular, os positivistas. Desde então o ensino oficial é laico. Isto é, independente de religiões. Isso foi uma medida democrática e ao mesmo tempo uma exigência da vida. É tarde para retroceder.

Mas a verdadeira questão parece ser outra, isto é, não tanto política quanto econômica. A simpática bandeira erguida por Dom Vicente - homem conhecido por sua intransigência as vezes obstinada nos dogmas de sua crença e que agora reconhece liberalmente o direito às demais religiões ministrarem o ensino como lhes convier - essa bandeira tem o mastro cravado num solo muito firme, muito <<materialista>>. Visa formar uma <<santa aliança>> dos donos de colégio pela liberdade, não a do ensino - mas a de cavar mais fundo no bolso já sacrificado dos pais de alunos.

(PORTO ALEGRE, Fevereiro)

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