TEIXEIRA, Anísio. Por uma educação comum do povo brasileiro. Diário de Minas. Belo Horizonte, 27 ago.1958.

POR UMA EDUCAÇÃO COMUM DO POVO BRASILEIRO

Anísio TEIXEIRA

Anísio Teixeira forneceu êste artigo em primeira mão para o suplemento do DIÁRIO DE MINAS. É êle um resumo das idéias que vem expondo em várias oportunidades e que vem colocando em prática na direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. Com êle, declarou a nossa reportagem, pretendia resumir suas idéias tentando eliminar os equívocos da inteligência brasileira em relação a um trabalho comum no campo educacional. O que nos separa são equívocos que podem ser resolvidos e tôda inteligência nacional deve se voltar para o problema da educação.

Parece haver chegado, para o Brasil, momento semelhante ao da Alemanha de Fichte, em que devemos também escrever nossa carta à nação brasileira.

Dia a dia, toma a nação maior e mais intensa consciência de si mesma, dos seus problemas, das suas contradições, das suas desigualdades, dos seus diferentes níveis e modos de viver, de suas distâncias físicas e psicológicas, da sua pobreza e da sua riqueza, do seu progresso e do seu atraso, e, reunindo tôdas as suas fôrças, prepara-se para uma nova integração, em um grande esfôrço de reconstrução e desenvolvimento.

Nesse processo de reconstrução, nenhum problema é mais essencial do que o da escola, pois, por ela, é que se efetivará o novo senso de consciência nacional e se afirmará a possibilidade de se fazer permanente e progressiva a grande mobilização do esfôrço brasileiro.

Com efeito, em nenhum outro aspecto da vida nacional, se revela tão fortemente quanto na escola a cristalização de certo arcaísmo congênito de nossas instituições, devendo o próprio sentido da renovação nacional marcar a nossa reconstrução educacional.

Antes de tudo, caracteriza o arcaísmo de nosso sistema educacional a sua obstinação em se fazer, embora hoje muito mais amplo do que ontem, um simples sistema de preparo de uma elite de trabalho e de govêrno, mantendo a nação dividida entre uma massa de ignorantes e uma elite inflacionada de letrados. O característico dos sistemas modernos de educação é o de que realizam êles, primeiro, uma grande educação comum para todos, elevando o nível geral de educação de todo o povo, para, sôbre esta base, erguer o corpo de especialistas e sábios que não dirigem, mas, servem à massa de trabalhadores educados que governam - pelo voto - e constróem a nação.

Os sistemas escolares antigos sempre foram sistemas de educação de uma elite. Tôda importância e tôda a razão de ser do sistema estava em preparar aquele pequeno grupo de excepcionais, destinados a dirigir e servir à nação. Mesmo quando se alarga a base de escolha, aumentando as escolas de nível primário e médio, ainda não se mudou a filosofia da educação do sistema: as escolas primárias e médias são mais numerosas. mas, o seu fim é o mesmo fim propedêutico de permitir um maior número de candidatos à educação superior.

A mudança do sistema só se opera, quando a escola primária e a escola média se fazem, de certo modo, mais importantes que a própria escola superior. Com efeito, o novo princípio diretor é o de que importa elevar o nível geral de educação de todos, de todo o povo, para se criarem novas condições de trabalho e de compreensão do esforço comum. Não se aumentam as escolas primárias e as médias para se fazer uma colheita mais fina de homens para o nível superior - embora êsse resultado indireto também se venha a colher - mas para dar, como um fim e si mesmo, educação melhor, mais eficiente a todo o povo.

Quando as nações civilizadas elevam a obrigatoriedade escolar aos 16, 18 e até aos 20 anos de idade, não é pelo desejo de escolher, mais amplamente, os seus candidatos ao ensino superior, mas, sobretudo, pela necessidade em que se vêem de dar a tôda a nação um nível mais alto de educação comum.

Não pareça isto a mesma cousa que o alargamento da base de seleção, pelo maior número de educados. Este resultado também se dá, mas, é um resultado indireto. Se este fôsse o resultado principal a colher da ampliação da educação a todo o povo, logo veríamos que a importância da escola primária e da média passava a segundo plano. Podiam ser improvisadas e más, pois, de qualquer modo realizariam a sua simples função de rêde para a escolha dos melhores.

Esta é, exatamente, a fase que estamos a viver na educação nacional. Expandimos o sistema, ampliamos o número das escolas, mas não cuidamos de sua seriedade nem da sua eficiência, pois o seu fim não é educar o povo mas selecionar um número maior de candidatos à única educação que conta em um país ainda dividido, bifurcado em elite diplomada e massa ignorante. A ampliação do sistema é uma simples ampliação quantitativa, sem a reconstrução, que se impõe, da escola e dos seus objetivos.

Há que virar pelo avêsso a nossa filosofia da educação. A escola primária tem de ser a "mais importante" escola do Brasil, depois, a "escola média", e depois, a "escola superior".

Bem sabemos a finalidade da escola superior. Bem sabemos que a precisamos não sòmente boa, mas ótima. Bem sabemos que dela depende a aceleração do nosso progresso. Mas, no momento presente, a escola primária é a mais importante, do ponto de vista de prioridade, pois, dela depende não a aceleração, mas, a estabilidade, a consolidação do progresso que até hoje realizamos.

Se estivéssemos em qualquer outro período da história, com a sociedade organizada na base de camponeses ignorantes, artezãos autodidatas e uma elite governante, não precisaríamos, sem dúvida, sinão de escolas superiores, servidas por escolas preparatórias de nível primário e médio. As escolas não precisariam ter outro fim sinão o de preparar o pequeno ou grande grupo de especialistas, indispensável ao manejo dessa sociedade dual de governantes e súditos. A reforma de educação do Marquês de Pombal seria perfeitamente adequada a essa fase da nação.

Outra cousa e muito diversa é a preparação de uma nação moderna, com o trabalho agrícola avançado e técnico, com a produção mineira e fabril em fase de industrialização crescente e com os serviços de transportes, de comunicação, de assistência médica e social, de educação, de justiça, etc., elevados a nível consideráveis de especialização e de complexidade. Tal sociedade se faz tôda ela tecnológica, exigindo para o seu funcionamento um nível escolar considerável para tôda a população, sem falar no direito democrático de se governar pelo sufrágio universal.

É diante disto que se faz necessário um exame de consciência. Que estamos fazendo com as nossas escolas? Que espetáculo é êste de escolas primárias de dois, três e quatro turnos reduzido o seu dia escolar a 4, 3 e 1 hora e meia, visando tão sòmente o preparo para um sumário exame de admissão à escola média? E a escola média - que é ela senão uma passagem, em que a maioria, aliás, náufraga, para o paraíso da escola superior? E a escola superior, com alunos já cobertos de obrigações de trabalho e professores, em sua maioria de tempo parcial, que está sendo ela senão um ritual - penoso e esterilizante, é certo - mas ritual para a consagração pomposa do diploma e da graduação?

Bem sei que algumas delas - muitas destas no Rio e em São Paulo - são escolas que honrariam qualquer nação do mundo, mas, não me refiro às exceções, mas, ao grande número, às centenas e centenas de escolas superiores que se estão espalhando por tôdas as capitais do país e começam a surgir também nas demais cidades. Essa febre de escolas superiores seria, talvez, apenas mais uma manifestação da nossa fabulosa energia improvisadora, se fôssem escolas livres, sem sanção legal, tentando elevar, de qualquer modo, o nível cultural do país ... O caso, porém, é muito mais grave. Não sendo livres, mas, resultado de "concessões públicas", tôdas elas são escolas do Estado, "diplomando" doutores com os mesmos direitos dos doutores de nossas melhores escolas. São pois, em rigor, uma inflação pela qual o Estado brasileiro vem "emitindo", por decreto, cultura ...

Tudo isto não está a revelar que insistimos no velho conceito arcaico de que educação é simples processo de preparação para que alguns possam consumir a vida melhor que outros, pouco importando que os preparemos bem ou mal, contando que lhes demos os "direitos" a esse consumo mais requintado dos bens da vida brasileira?

Diante disto, que nos cumprirá fazer? Reunir, como disse ao princípio, tôdas as nossas forças pessoais e financeiras, e nos lançarmos em um grande plano de conjunto, mobilizando todos os recursos públicos e privados, pedindo a cada um sua cota de esforço e, também, de sacrifício para a construção, primeiro, das escolas básicas da nação - a primária e a média para 25 ou, talvez, 50% da população da respectiva idade. Nenhuma dessas escolas dará direitos outros que não sejam os que o aluno adquire pela sua maior capacidade para o trabalho.

Tais escolas não terão luxos de ilustração: serão escolas para o preparo do cidadão comum do Brasil. A língua materna e a literatura nacional, a matemática elementar e aplicada, a geografia e a história brasileiras e a introdução à ciência e estudos de ciência aplicada, de desenho e de artes industriais constituirão seu currículo fundamental. Línguas estrangeiras e antigas, estudos científicos propedêuticos serão enriquecimentos de currículo que as melhores escolas com alunos excepcionais tentarão, por certo, mas que também não darão nenhum direito especial nem privilégio algum. A cultura é um bem em si mesmo a ser adquirida pelas vantagens diretas que oferece e não em virtude de "direitos" que a lei venha acrescentar aos títulos que a pressuponham. Todos os títulos e diplomas perderão sua "liquidez", ficando sem valor, a depender de contraprovas perante órgãos profissionais que ficarem encarregados de conceder as "licenças" profissionais, no nível médio ou mesmo superior.

A escola média será altamente diversificada, podendo, dentro daquele currículo fundamental, dar ênfase a estudos científicos, literários, comerciais ou industriais, todos considerados equivalentes.

Terminados os onze ou doze anos de estudos das escolas primárias e médias, o brasileiro deverá achar-se habilitado ao trabalho não qualificado, ao qualificado industrial, a tôdas as múltiplas ocupações dos chamados serviços ou atividades terciárias e, também, à competição para a entrada na universidade. Normalmente, a universidade só deverá ser procurada por aqueles que se fixaram em fazer de sua vida uma vida de estudos ou os que se revelaram capazes de tentar uma profissão de nível superior. Exames especiais apurarão essas aptidões e tais propósitos.

Os estudos superiores serão extremamente severos, exigindo devotamento integral e só permitindo o trabalho na própria universidade. Todo êle deverá ser pago, pela família, quando as suas posses chegarem para tal, ou por meio de bolsas particulares e públicas para os alunos que tiverem passado as provas e aos quais faltem recursos. Os títulos e diplomas ainda assim sòmente valerão como suposição de preparo, o qual deverá ser contraprovado perante as organizações profissionais, que terão o poder de conceder as "licenças" profissionais, inclusive para o magistério.

Tôda a preparação desta magistério se faria em nível superior com cursos e estágios de um e dois anos para o magistério primário de quatro para o secundário e de seis e mais para o superior.

Nenhum cuidado seria negado a formação do magistério. De sua qualidade dependerá o êxito de todo êsse sistema, livre e diversificado, sem sanções formais e confiada a sua eficácia ao próprio magistério.

Com uma escola primária de seis anos de estudos, uma escola média com cinco ou seis anos de estudo, sem sanções específicas senão as de seriedade dos seus estudos, confiados os seus resultados às comprovações dos concursos, fôssem para ocupações privadas ou públicas, perante órgãos profissionais públicos ou privados, teríamos constituído um tipo de escola à prova da simulação ou da fraude, destinada a crescer e desenvolver-se como algo de vivo e autêntico.

Resta-me dizer que tal escolas deverão ser, mais do que tudo, centros de estudos do Brasil, da cultura brasileira, da língua, da literatura, de geografia, da história e das ciências sociais brasileiras. Só a matemática e as ciências físicas seriam universais. Em tudo mais o Brasil seria o motivo, a intenção e o objeto.

Somos já uma cultura cuja aquisição deverá bastar para educar o brasileiro. Saberemos, por certo, línguas estrangeiras, mas como as sabem as nações desenvolvidas e adultas. Como um requinte, como algo de especial a que alguns e não todos se devotaram. Poderíamos exigí-las, para todos que alcançassem uma educação média.

Essa reconstrução é, ao mesmo tempo, uma simplificação e um redobramento da seriedade. Simplificação e um redobramento da seriedade. Simplifica-se, para se fazer séria - a educação. A formação do mestre nos níveis primário e médio será a chave de tôda a reorganização. Sem professores capazes, tôdas as reformas fracassarão.

A Universidade - com as suas atividades imensamente ampliadas - será o centro e a sede de tôda essa reorganização, transformada que será na casa de formação dos mestres de todos os níveis e dos quadros técnicos, profissionais e científicos de todo o país. E a ela se confiaria o inadiável compromisso da reconstrução educacional brasileira.

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