O GLOBO. Verdadeira catilinária no Clube de Engenharia contra o atual ensino brasileiro. O Globo. Rio de Janeiro, 16 dez. 1957.

VERDADEIRA CATILINÁRIA NO CLUBE DE ENGENHARIA CONTRA O ATUAL ENSINO BRASILEIRO

"A tendência se Vem Acentuando, Cada Vez Mais, no Sentido de Drenar os Recursos Públicos Para os Dois Mais Elevados Níveis do Ensino, Com Sacrifício cada Vez Mais Patente do Ensino Primário e da Formação Popular". Disse o Professor Anísio Teixeira

A CONFERÊNCIA que proferiu no Clube de Engenharia, primeira de uma série promovida por professôres e estudantes de Engenharia, o Prof. Anísio Teixeira tomou em cada um dos níveis do ensino brasileiro (primário, médio e superior) os fatos que lhe parecem mais significativos e procurou interpretá-los caracterizando-lhes as tendências e indicando as correções que julga recomendáveis.

Base Sem Consistência

"A situação educacional brasileira - disse - apresenta-se como uma pirâmide, em que a base não chega a ter consistência e solidez de tão tênue que é, logo se afilando, mais à maneira de um obelisco do que mesmo de uma pirâmide. Tal aspecto manifesta-se desde a escola primária".

"Para uma população escolar de 7 a 11 anos de idade, num total de 7.595.000 - justifica - a escola primária acolhe 4.921.986, ou sejam cêrca de 70%. Dêstes, porém, encontram-se, no 1º ano, 2.664.121, quando ali só se deviam encontrar 1.600.000 (grupo de idade de 7 anos); no 2º ano 1.075.792, quando aí se deviam achar 1.500.000; no 3º, 735.116, onde deviam estar outros 1.500.000; no 4º e 5º anos, 466.957, quando aí deviam estar 1.480.000".

Processo Puramente Seletivo

Observou o conferencista que êsses números revelam que não está sendo cumprida a função precípua da escola primária, que é "a de ministrar uma cultura básica ao povo brasileiro". Disse que, ao contrário, o "ensino primário se vem tornando um processo puramente seletivo".

"Com efeito - frisou - embora o próprio ensino primário deva contribuir para uma primeira seleção humana, não é esta a sua finalidade precípua. Se todo êle passar a ser um processo de seleção, isto é, de escôlha de alguns, destinados a prosseguir a educação em níveis pós-primários, estará prejudicada a sua função essencial".

Menosprêzo às Diferenças Individuais

O Professor Anísio Teixeira viu nisso o primeiro aspecto pelo qual se verifica como e quanto o ensino primário vem sendo desvirtuado:

"Considerando-o puramente preparatório às fases ulteriores da educação, descuidamo-nos de organizá-lo para efetivamente atender a todos os alunos, seja qual fôr a capacidade intelectual de cada um, e vimos, ao contrário, mantendo a velha organização seletiva de escola propedêutica. O característico da organização das escolas para finalidade seletiva e o menosprêzo às diferenças individuais, ou utilização das diferenças individuais apenas para eliminar os reputados incapazes. A escola fixa os seus graus ou séries de ensino, os padrões a que devem atingir os alunos capazes de seguir o curso. Os que não se revelam capazes, são reprovados, ou excluídos. Nessa organização cabe ao aluno adaptar-se ao ensino e não o ensino ao aluno. Nada mais legítimo, se a escola visa realmente a selecionar alguns para determinados estudos. E nada mais ilegítimo, se a escola se propõe a dar a todos uma habilitação mínima para a vida, a promover formação possível de todos os alunos de acôrdo com as suas aptidões".

Como exemplo da desorganização de nosso ensino primário, o conferencista citou as reprovações maciças que nêle se verificam, realçando o Distrito Federal, onde chegam a mais de 50%.

Desordem em Tudo

Disse, a seguir, o conferencista que a organização da escola primária como escola seletiva e propedêutica justifica uma porção de fatos, que seriam julgados pelo menos surpreendentes se tal não fôsse a sua organização. Entre êsses fatos enumerou: a desordem por idades na matrícula; a possibilidade de ser a escola reduzida em tempo e em objetivos; e a desordem dos horários letivos, reduzidos ao mínimo, com os turnos que, em muitos casos, já ascendem a quatro por dia.

"Numa tal escola - observa - nada mais se faz do que adestrar os meninos numa alfabetização sumária e, depois, treiná-los para os exames de mínimos conhecimentos formais, considerados necessários à promoção seletiva e, por último, ao exame de admissão ao ensino secundário. Se não tivéssemos o propósito democrático de dar às massas uma boa educação para a vida, mas, apenas, o de selecionar os melhores para lhes oferecer uma educação de elite, diria que a nossa escola primária está procurando cumprir a sua missão. E a questão seria, apenas, se o está conseguindo".

Primário em Seis Anos

Depois de uma série de considerações mostrando sempre a necessidade de se reformar o ensino primário, disse o Professor Anísio Teixeira:

"A escola primária deverá, assim, organizar-se para dar ao aluno, nos quatro anos do seu curso atual e nos seis a que se deve estender, uma educação ambiciosamente integrada e integradora. Para tanto, precisa, primeiro, de tempo: tempo para se fazer uma escola de formação de hábitos (e não de adestramento para passar em exames) e de hábitos de vida, de comportamento, de trabalho e de julgamento moral e intelectual".

"A escola - prosseguiu - se organizará como um local de atividades adequadas às idades, dentro de três setores, que se conjugarão entre si, mutuamente complementares e integrados: o do jôgo, recreação e educação social e física; o do trabalho, em formas adequadas à idade; e o do estudo, em atividades de classe pròpriamente ditas".

Um Novo Reino

Ao tratar do ensino médio, que disse não ser apenas um novo nível, mas: "um novo reino, ou então, a entrada definitiva no reino da educação seletiva", ressalta o conferencista a marca violenta da transformação, pois, para ela a transição tem algo de um salto; é o ritualismo que caracteriza a nova escola.

"Teòricamente - acentua - o secundário seria propedêutico ao ensino superior, e os demais, de caráter profissional, destinados ao preparo dos quadros, de nível médio, de técnicos para a indústria, o comércio, a agricultura e o magistério primário. Na realidade, porém, todo êsse ensino médio se vem fazendo propedêutico ao ensino superior, contendo-se com o seu preparo para se iniciar no trabalho ativo apenas aquêle grupo de alunos que não conseguindo adaptar-se à rigidez dos seus padrões, acaba por abandonar o curso ou dêle ser excluído pelas reprovações. Para confirmar essa observação, basta atentar no declínio progressivo da matrícula ao longo das séries. Dos 230.000 alunos da série inicial do primeiro ciclo, atingem o quarto ano 95.000. E dos 88.000 do primeiro ano do segundo ciclo, apenas 42.000 alcançam a terceira série. Dêstes, logram atravessar a barreira do vestibular ao ensino superior, pouco mais de 20.000".

Sistema Frustrado

Analisando o ensino brasileiro à luz da Revolução de 30, para mostrar que êle se complicou de muito, declarou o Professor Anísio Teixeira, a certa altura:

"A realidade, porém, é que a expansão do sistema educacional brasileiro frustrou os intuitos porventura concebidos. O chamado sistema de educação de elite, compreendendo o ensino secundário de caráter propedêutico ao superior e o ensino superior gratuito, expandiram-se fora de tôdas as proporções, e o sistema popular, compreendendo o ensino primário e o técnico, não sòmente não se expandiu nas mesmas proporções, com se vem também tornando propedêutico ao ensino superior, meta final a que todos aspiram, sem nenhuma consciência do que representa o custo dessa educação, logo que deixa de ser de cultura geral para se fazer, como é necessário que faça, de cultura especializada e profunda".

Quatorze Bilhões Com a Educação

Disse o Professor Anísio Teixeira que o País está despendendo, presentemente, pouco mais de 14 bilhões de cruzeiros com o seu sistema educacional:

"O sistema atual acolhe cêrca de 5 milhões de crianças no ensino primário, logrando dar o nível equivalente ao quarto grau ou ano escolar sòmente a mais de 450.000 crianças. O "deficit" dêsse ensino - aceito que bastasse o mínimo de quatro anos de estudos - é de mais de 1.200.000 crianças, que também deveriam chegar ao 4º ano e que deixam a escola sem o correspondente aproveitamento. Pois bem. Com essa má e deficiente escola primária, destinada a 5 milhões de alunos, despende a nação pouco mais de 6 milhões de cruzeiros, à razão de 1200 cruzeiros por criança. No ensino médio, acolhe o sistema apenas cêrca de 800.00 adolescentes, despendendo com os mesmos 4 bilhões e 300 milhões de cruzeiros, numa média por aluno de 5.300 cruzeiros. No ensino superior, acolhêmos cêrca de 70.000 estudantes, despendendo um total de 3 bilhões e 700 milhões de cruzeiros, com um custo médio anual por aluno de 52.000 cruzeiros. Estudos recentes realizados pela CAPES e pelo Banco do Desenvolvimento Econômico revelam que a tendência se vem afirmando, cada vez mais, no sentido de drenar os recursos públicos para os dois mais elevados níveis do ensino, com sacrifício cada vez mais patente do ensino primário e da formação popular".

Falsa Elite

A conferência do Professor Anísio Teixeira prolongou-se por cêrca de 1h30m e constituiu-se numa autêntica catilinária ao sistema educacional brasileiro. Analisou êle todos os ângulos do atual ensino brasileiro, concluindo que tudo que anda por aí é fictício, não tem consistência, nem reflete a realidade social brasileira, chegando mesmo a dizer que o nosso ensino superior, gratuito, longe de ter assegurada a sobrevivência da elite tradicional, está servindo para forjar uma falsa elite diplomada e para aumentar até o ponto de perigo a inflação burocrática do País.

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