OLIVEIRA, Hildérico Pinheiro de. Anísio Teixeira - cem anos: histórias do cotidiano. Anísio - O Centenário. Caetité, 12 jul. 2000. p.3.

Anísio Teixeira - Cem Anos: Histórias do Cotidiano

Hildérico Pinheiro de Oliveira

Anísio Spínola Teixeira nasceu a 12 de julho de 1900, em Caetité, para "honra e glória" da aprazível cidade que já foi denominada "Princesa do Sertão".

Seu pai, Dr. Deocleciano Pires Teixeira, desejava que ele se tornasse promotor para suceder-lhe na política; seu ex-mestre Padre Luiz Gonzaga Cabral, deslumbrado pela inteligência daquele jovem queria transformá-lo num jesuíta. O então Governador do Estado, Dr. Francisco Marques de Góes Calmon, como terceira alternativa o nomeou para o cargo de Inspetor Geral do Ensino do Estado da Bahia que, mesmo subordinado a Secretaria do Interior e Justiça, correspondia ao do atual Secretário da Educação do Estado. A nomeação tem data de abril de 1924, Anísio Teixeira ainda não completara 24 anos de idade. Nascia o educador.

Fez pós-graduação na Escola de Professores (Teacher's College) da Universidade de Columbia nos Estados Unidos. Foi Secretário de Educação do Distrito Federal - Rio de Janeiro - de 1931 a 1935, ano em que se afastou da vida pública até 1946, quando foi ser Conselheiro da UNESCO; foi Secretário de Educação e Saúde da Bahia de 1947 a 1951. Foi Secretário Geral da Capes de 1951 a 1962 e concomitante Diretor do INEP de 1952 a 1962; em 1962 assumiu a Reitoria da Universidade de Brasília onde a "Revolução dos Generais" o encontrou em 1964. Foi membro titular do Conselho Federal de Educação com mandato de 6 anos, 1962 a 1968, onde, curiosamente, os generais governantes o mantiveram.

Em tais cargos Anísio Teixeira deixou a sua grande e profunda marca de homem de ação. Fez sempre muito, e muito bem.

Mas Anísio também era um grande inventor de soluções para problemas educacionais, ditos menores, mas importantes, às vezes importantíssimos, para a educação brasileira. Neste campo foi, como diz a Profa. Sônia Bastos, um estrategista.

Anísio não foi apenas isto, foi, também, e continua sendo o maior pensador e, segundo Florestan Fernandes, o único filósofo da educação brasileira.

O pensamento de Anísio não era linear, não era um feixe luminoso incindindo apenas sobre a educação, era contextuado, abordava no seu campo de estudo e nas suas preleções os aspectos políticos , filosóficos, financeiros, sociais, antropológicos, culturais e quantos outros necessitassem ser considerados para a estruturação e solução do problema educacional brasileiro. Pensava educação em termos globais do Brasil, da sociedade brasileira, e por isto, fatos simples, às vezes considerados prosaicos, corriqueiros, Anísio os ligava de modo pronto, preciso e vertiginosamente à problemática nacional. Com as pequenas histórias que se seguem procura-se comprovar tais afirmações.

- A cavalo, como era natural à época, viajavam Anísio e seu irmão Jayme, retornando de Palmas de Monte Alto a Caetité.

O tempo estava seco e quente e a sede começava a se fazer sentir naquelas paragens quase desabitadas onde, de longe em longe aparecia uma rústica morada.

Aumentava a sede a cada momento e não surgia nenhuma habitação onde pudessem obter água.

Após percorrerem por longo tempo um bom trecho da viagem, com a sede já se manifestando de modo ponderável, aliviaram-se os viajantes ao avistarem uma casa fechada, tendo porém ao seu lado um possível morador, a quem, após os indispensáveis cumprimentos, intrínsecos à cultura sertaneja, nem sempre usados nas cidades, historiaram sua viagem e pediram a água que necessitavam para matar a sede.

Sem demora, dando volta pela casa aquele sertanejo logo surgiu à porta com uma vasilha e cum caneco de água que ofereceu a Anísio, o qual, dentro de sua cultura universitária e do uso vigente na classe dos bem nascidos, recusou dizendo: "você primeiro Jayme" que logo replicou: "não, primeiro você Anísio"; tais gestos de gentileza repetiram-se muitas vezes, deixando perplexo aquele sertanejo que olhava ora para um, ora para outro sem entender tal absurdo pois, pela sua forma de vida e aculturamento ele era um positivista nato, a experiência lhe ensinou, quem tem sede bebe logo sua água.

Por fim, após tantas recusas, o ofertante da água esgotou sua paciência e disse: "vocês não querem água", derramou no chão a que estava no caneco, entrou na casa e fechou a porta.

Os viajantes tiveram que prosseguir a jornada, com muita sede, vencidos pelo confronto entre duas distintas culturas.

- Era hábito, não sei se ainda é, as famílias de certa posição social casarem seus filhos na capela da Reitoria da então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, que fica no segundo andar ao lado de um saguão, onde na parte norte há uma sacada muito disputada, principalmente pelas senhoras, porque permite perfeita visão da "entrada dos noivos e padrinhos".

Num desses casamentos compareceu Anísio Teixeira, e com um grupo de amigos conversava junto àquela sacada já ocupada por várias senhoras. Quando todo o cortejo secundário adentrara-se ao edifício, no portão do jardim, o prédio era recuado, surge a noiva, era o momento apoteótico, e uma senhora, que se achava na sacada, deslumbrada exclamou: "vejam que lindo vestido, a cauda tem quatorze metros de comprimento", e Anísio num átimo comentou "vejam vocês, quatorze metros de cauda num vestido, para que? Por-que? Sabem o que significa isto? E ele mesmo respondeu: - "no Brasil o importante é supérfluo".

O pensamento de Anísio não se desliga dos problemas brasileiros.

Nesta terceira historieta, muitas outras existem, fui coadjuvante.

Anísio Teixeira, como filósofo, interessava-se por todo e qualquer saber. Conversando com pessoas de outras áreas de conhecimento, imediatamente se tomava de extrema curiosidade pelo assunto e utilizando aquele processo socrático, também chamado maiêutica, crivava o interlocutor de perguntas e logo reelaborava hipóteses que espantavam até os próprios especialistas. Gostava de discutir arquitetura, o que fazia por horas com o grande arquiteto baiano Diógenes Rebouças, discutia mecânica com José Pedreira de Freitas professor da matéria na Politécnica da Bahia, medicina com Paulo Duarte, direito com Jayme Junqueira Ayres que como ele era advogado e com quantos despertassem sua insaciável curiosidade.

Tinha também prazer imenso em visitar obras, normalmente construções de escolas, quando eu o acompanhava tanto pelo cargo que ocupava como pelo prazer da sua companhia.

- Certo dia fomos visitar uma escola já em conclusão e, por isto, com todas as salas trancadas, para evitar retoques na pintura já feita.

Veio o encarregado da vigilância com uma enorme penca de chaves, experimentando-as para abrir a primeira sala a que chegamos. Após várias tentativas uma encaixou na ranhura da fechadura. Novas e demoradas tentativas para girar a chave e abri a porta.

Anísio a tudo observava, calado, franzindo os olhos e esfregando um lábio no outro, o que ele fazia sempre que via coisas que lhe deixavam perplexo.

Depois de algum tempo o operário conseguiu abrir a porta suspirando aliviado: mandei-o então abrir as seguintes.

Antes de entrarmos na sala Anísio ficou parado e tão logo o operário afastou-se o suficiente, ele disse: "Hildérico você viu o sacrifício deste pobre homem para abrir esta porta?" e antes que eu fizesse qualquer comentário, fez nova pergunta: "sabe você a razão disto?" respondi-lhe que as causas eram muitas, ao que ele me disse, não é nada disto, é apenas porque não atingimos a idade da fechadura, estamos ainda na civilização da taramela.

Era a sua constante preocupação com o sub-desenvolvimento educacional, científico e tecnológico do Brasil.

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