ABRANCHES, Carlos A. Dunshee. 51% de analfabetos. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 15 mar. 1958.

51% de analfabetos

Carlos A. Dunshee de Abranches

Teve grande reprecussão a acusação feita ao Prof. Anísio Teixeira no sentido de que êle estaria promovendo o laicismo do ensino pelo fato de ser partidário da "escola pública universal e gratuita", como solução para o problema da educação no Brasil.

Ninguém pode ignorar a gravidade dêsse problema. Segundo o mais recente estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, em 1 de julho de 1957, havia no nosso País 22.276.352 analfabetos, entre a população de 10 anos e mais de idade. Apenas 21.021.553 sabiam ler e escrever.

Isso quer dizer que o índice brasileiro de analfabetismo é de 51,65%, um dos mais elevados entre as nações civilizadas. Tal percentagem nos coloca em posição humilhante, no momento em que o Brasil pretende se projetar no cenário internacional, como potência política industrial.

O debate suscitado em tôrno da acusação formulada contra o conhecido educador, que tem ocupado elevados cargos nos quadros da administração pública, extremou-se a respeito do laicismo do ensino, como orientação oposta à educação religiosa.

A questão está evidentemente mal colocada porque, nos têrmos em que a estão debatendo, resume-se a uma controvérsia acadêmica.

Realmente, o estudo de todo e qualquer problema nacional não pode deixar de tomar como ponto de partida a Constituição Federal, estatuto básico que condiciona a legislação ordinária e estabelece limites intransponíveis à ação dos Podêres Públicos e dos cidadãos.

É certo que a Lei Magna pode ser emendada, mas apesar de existirem, em curso no Congresso, algumas dezenas de proposições relacionadas com o ensino, nenhuma visa a alterar os textos constitucionais no capítulo dedicado à Educação e à Cultura.

Tôda controvérsia entre ensino laico e religioso está, portanto, superada no terreno das realizações práticas e objetivas.

Realmente, os constituintes de 1946 consagram as normas claras e justas, que hão de disciplinar essa natéria em um regime democrático.

Depois de inscrever entre os direitos do homem a liberdade de consciência e de crença e o livre exercício de qualquer profissão, a Constituição proclamou que a educação é direito de todos e deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana.

Por um lado prescreveu que o ensino dos diferentes ramos será ministrado pelos Podêres Públicos, mas por outro assegurou ser livre a iniciativa particular em tal atividade, respeitadas as leis que a regulam.

O ensino primário é obrigatório e o Poder Público tem o dever de ministrá-lo gratuitamente a todos que o desejarem. Os que provarem falta ou insuficiência de recursos terão também direito de receber ensino oficial gratuito secundário, profissional e até superior.

Finalmente, reza a Constituição vigente, o ensino de qualquer religião constitui disciplina dos horários das escolas oficiais, mas é de caráter facultativo.

Conseqüentemente, à luz dêsses princípios, não existe mais lugar para discussão, entre ensino leigo ou religioso, nem para acusação de que determinado funcionário público estaria favorecendo o primeiro em detrimento do segundo. No caso, aliás, o acusado tem as suas atribuições atuais limitadas à esfera do ensino post-universitário.

A realidade brasileira é indisfarçável nesse particular. Católico, em sua maioria, mas de formação liberal, felizmente isento dos preconceitos e intolerâncias que afligem outras nações, o povo brasileiro se benificia da educação religiosa, sem necessidade de impor às minorias um ensino oficial católico.

Os fatos mostram que a Igreja ganhou maior prestígio desde que no Brasil se separou do Estado, ao ser proclamada da República. O julgamento da História é definitivo a êsse respeito.

Os educandários religiosos são, atualmente, mais numerosos que em qualquer outra época e não podem atender a todos os pretendentes. Os mais famosos, como os Colégios Santo Inácio e Sion, para citar apenas um para meninos e outro para meninas, esgotam as suas matrículas com anos de antecedência.

A Universidade Católica do Rio de Janeiro, fundada há pouco tempo, já é uma instituição vitoriosa e que honra a cultura brasileira. Outras universidades religiosas estão procurando seguir-lhe o exemplo pelo Brasil afora.

É forçoso reconhecer que o Poder Público tem contribuído de várias formas para a criação e o desenvolvimento dos estabelecimentos de ensino religioso, que se mostram em condições técnicas satisfatórias.

Na verdade, tanto a União, como os Estados e os Municipios colaboraram materialmente, por meio de subvenções e doações, para a construção ou instalação de inúmeros colégios e universidades católicas e continuam a colaborar, anualmente, para a sua manutenção, além das facilidades administrativas que lhes concedem.

Não é justo, assim, que se acuse o Ministério da Educação e Cultura, ou mesmo um dos seus mais competentes técnicos, de tramar contra o ensino religioso.

O que não se pode, no entanto, é cruzar os braços ante a insuficiência e a má qualidade do ensino em geral. O mercantilismo do ensino privado e a burocratização do oficial estão a exigir uma ação rápida e eficaz por parte do Govêrno. Nenhum dos males que ameaçam a nacionalidade terá conseqüências tão graves e duradouras como êsse.

O Presidente da República, que tanto vem realizando no campo do desenvolvimento econômico, bem poderia inscrever o programa educacional como a sua meta número um, pois, como dizia Miguel Couto, o maior problema brasileiro continua sendo a educação do povo.

Quer a solução seja a propugnada pelo Prof. Anísio Teixeira, quer esteja em um dos vários projetos de lei que se arrastam pelas duas Casas do Legislativo, é imprescindível atacar o problema com realismo e espírito público, evitando lutas ideológicas estéreis, que só favorecem os inimigos da democracia.

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