LAGÔA, Ana. O poeta da educação. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 22 jul. 2000. Caderno Idéias, p.6.

O POETA DA EDUCAÇÃO

Ana Lagôa

Anísio Teixeira, cujo centenário se comemora este mês, foi pioneiro na construção do ensino público democrático.

Não há como não se apaixonar. O afeto acaba, impregnando o processo de construção do conhecimento - aliás, como sempre deveria ser - e faz do pesquisador o bailarino da corda bamba entre o coração e a razão, entre a fria aproximação do objeto e o mergulho incandescente em que sujeito e objeto acabam por se fundir e dar vida a algo único: o saber.

É impossível não viver esse amor, que também alimenta a indignação: por que a escola idealizada por Anísio Teixeira custa tanto a se tornar realidade? Que destino é este que nos faz prisioneiros de discursos democráticos e práticas excludentes? Por que o professor, tão valorizado pelas propostas anisianas, foi relegado à situação de um trabalhador malformado e mal-remunerado, freqüentemente acusado de ser responsável pelo não-aprendizado de seus alunos?

É impossível ler e conhecer Anísio Teixeira sem colocar perguntas e sentimentos uns sobre os outros e sair cobrando a nossa maturidade. Não que suas idéias fossem uma unanimidade morta em duas ditaduras. Ou ele um arauto de novidades modernosas. Não. O pensamento e a ação de Anísio Teixeira estavam inseridos no seu tempo, nas necessidades e sonhos desse tempo e colocavam na agenda nacional as questões pertinentes: por que, como e para que educamos? Parte das respostas estavam no ideário da Revolução Francesa. Mas entre o ideário e o dia-a-dia humano um largo fosso se abriu logo no dia seguinte à Tomada da Bastilha e - mesmo na França - a tal escola gratuita e universal só virou realidade cem anos depois, mesmo assim cheia de senões que a tornaram, a cada dia, menos democrática, menos universal.

Devemos ao educador baiano Anísio Teixeira não só o desenho do sistema público de ensino e suas principais instituições, mas um acervo de propostas e iniciativas concretas tendo como eixo o plano de educação nacional, que ainda hoje se faz atual e necessário. Muitas das respostas estão lá, em Anísio Teixeira. E isso certamente provocou a emoção de que nos fala a pesquisadora Clarice Nunes, na sua tese de doutorado na PUC-Rio, agora publicada em livro (Anísio Teixeira: A poesia da ação, Editora da Universidade São Francisco, Bragança Paulista). "Entrevistei pessoas, mergulhei em discussões teóricas, vasculhei arquivos e neles encontrei um desejo transbordante de vida", diz ela logo na apresentação.

Essa vida que transborda dos escritos de Anísio Teixeira com certeza fez com que ele se transformasse num exemplo de missionário da educação. Mas quem espera encontrar, na tese da professora Clarice Nunes, um texto de louvação a Anísio pode se decepcionar. Trabalhando o tempo todo com as representações em torno da figura do educador, ela busca entender o papel dos intelectuais que, em 1932, assinaram o Manifesto de reconstrução educacional no Brasil dirigido ao povo e ao governo, o "Manifesto dos Pioneiros", marco do pensamento da Escola Nova no Brasil. Entre eles, Anísio Teixeira.

Embora a representação de pioneirismo tenha se consolidado, os signatários certamente não eram os primeiros profissionais da educação no país. Seu legado é, contudo, indiscutível, como aponta Clarice Nunes: as reformas por eles feitas mudaram os cursos de formação e redefiniram o professor e seu papel na escola. "Esses intelectuais da cidade, consciência desse mundo no início do século, trabalharam como organizadores da cultura e do campo educacional na sociedade civil e em determinada parcela do Estado. Diante da crise da República Velha e da ordem oligárquica, não se deixaram levar pelo cinismo. Ao contrário, procuraram com todas as suas forças elaborar uma resposta que superasse os obstáculos políticos, sociais e culturais da sociedade brasileira, mediante projetos político-educativos que traziam em seu bojo certas concepções de povo brasileiro e pretendiam instaurar a modemidade, isto é, a civilidade, a racionalidade, a urbanidade, a disciplina de uma sociedade capitalista".

Talvez esteja aí a chave para a questão inicial. O Brasil mudava. As fábricas se modernizavam, as cidades cresciam. Esse mundo novo se organizava em tomo da palavra escrita. Era preciso trazer a classe trabalhadora para esse mundo. O projeto simplista, e óbvio seria alfabetizar os adultos e os seus filhos de forma que pudessem ler os letreiros de bondes e ônibus, os manuais de instrução das máquinas, as placas das ruas que se modernizavam e os letreiros da lojas onde deveriam deixar seus salários. Assinar o nome, na hora de votar seria uma conseqüência. Uma educação massificada, que reproduzisse a linha de produção fordista seria suficiente para os filhos da classe operária.

Com esse projeto simplista, no entanto, não se constrói uma sociedade mais justa e aqueles intelectuais liberais que assinaram o manifesto sabiam disso. Liberdade, igualdade e fraternidade certamente ainda faziam parte do seu imaginário como uma possibilidade de organizar indivíduos de classes sociais diferentes como cidadãos iguais perante o Estado e o Direito. Mais que isso, entre eles havia este, Anísio, impregnado das idéias pedagógicas do americano John Dewey, cuja leitura o "libertou da necessidade de uma resposta absoluta e avassaladora" ( ... ) e fez com que passasse a "admitir que a verdade é construída e se estabelece à custa de um sistema de crédito posto à prova sempre que algo o desafia", como afirma Clarice Nunes, já na conclusão do livro. Dewey também teria inspirado o seu programa de ação, que parte de um pressuposto - entre outros - mais que atual: o enraizamento e as direções da mudança social a favor da democracia estão postos na infância. É também de Dewey a idéia do educador como um mediador entre o aluno e o conhecimento.

Jovem, Anísio assumiu cargos e funções que puseram em suas mãos a tomada de decisões. Das viagens e estudos, construiu a crença na educação como fator de progresso individual e coletivo, na escola como formadora do caráter e da cidadania, no saber humanista como base da nossa sociedade, no direito de todos terem acesso a um ensino de qualidade, que não só permitisse ler manuais, mas .abrisse os horizontes, trouxesse luz.

Por isso a escola anisiana, da qual a Escola Parque (em Salvador e em Brasília) é modelo, tem amplas janelas, os espaços interagem, o pensamento e a ação convivem nas oficinas e salas de aula. A escola anisiana recoloca, de forma inédita e raramente conseguida, a questão do trabalho manual. Numa sociedade que vê a atividade braçal com olhos superiores, o trabalho manual e o fazer intelectual são colocados no mesmo patamar e o indivíduo se constrói pelo trabalho e no trabalho. As oficinas da Escola Parque não estavam ali para torneiros, marceneiros e costureiras. A prova veio em 1968/69. Centenas de jovens, que haviam passado por uma escola mais ou menos anisiana, desfrutando de um ensino público de qualidade, bateram às portas das então poucas universidades e formaram o ameaçador exército de excedentes - estudantes que, tendo conseguido média, não tinham vagas numa universidade destinada às elites. Na verdade, essa escola, que ainda podia ser vista em São Paulo até o início dos anos 60, nos projetos de Lourenço Filho, nos grupos escolares e ginásios estaduais de grandes janelas e e piscinas olímpicas, deram aos filhos das classes trabalhadoras a oportunidade única de atravessarem o fosso social e, em muitos casos, se tomarem os primeiros a pisarem em uma faculdade. Em um estudo de 1973 (Educação popular e educação de adulto, Edições Loyola), Vanilda Paiva afirmava que o projeto da Escola Nova dos Pioneiros visava basicamente à democracia das urnas. Isto podia estar no substrato do projeto liberal de democracia que passava pela alfabetização e educação dos filhos dos trabalhadores urbanos, mas muitos deles perceberam que aquele ensino poderia levá-los além das umas e ousaram abrir as janelas.

Esse legado individual não deixa registro. As pessoas, que mudaram seu destino de classe graças à educação, não fazem parte da história. O que aconteceu está só na memória de cada um que lá esteve. E, se aflora, em momentos comemorativos como neste centenário, acabam apontando para uma distância talvez nunca transposta entre o que acontecia nas escolas e nas casas daqueles que freqüentavam as escolas anisianas e as análises acadêmicas elaboradas em torno de Anísio Teixeira, seu discurso, seus textos, suas idéias. Este não é com certeza o caso da tese de Clarice Nunes. Embora fiel ao rigor acadêmico, a autora se banha da poesia e do saber humanista clássico para passar em revista a historiografia sobre Anísio e, depois, resgatar a sua formação como educador e analisar seus projetos entre os anos de 1931 e 1935, sobretudo naquilo que eles tiveram de efeitos sobre os professores e sobre a cidade onde atuavam.

Em 31, Anísio assumiu a Diretoria Geral de Instrução Pública, numa Rio de Janeiro marcada pela fragmentação social e exclusão das periferias, e deu início à reforma do ensino: criou a rede municipal da escola primária à universidade e, com isso, "estremeceu as representações cristalizadas da realidade", como afirma Clarice. Mas estremeceu mesmo foi a figura do professor, obrigado a fazer diários de classe, fichas pedagógicas, planos e relatórios de atividades, tendo em vista resultados na aprendizagem. Reclamações e resistências não faltaram, mas o passo estava dado. Em troca, outras medidas levaram à valorização do professor: curso de formação de nível superior, redefinição da carreira docente, construção de novos prédios escolares, divulgação de novas teorias pedagógicas e inclusão dos professores em programas de viagens ao exterior, na dramaturgia do canto orfeônico e nas apresentações esportivas, acessos a palestras, cinema e teatro. Uma reforma, como diz Clarice, que fazia com que a tarefa educativa fosse "assumida primordialmente como formação de consciência e pela qual a escola se afastava da casa e se aproximavam das ruas". Só por esse detalhe, afinal, pode-se perceber porque essas idéias foram abandonadas e parece mais fácil esquecer anísio e seus projetos. Setenta anos depois, eles são extremamente necessários.

A obra de uma vida

No dia 11 de março de 1971, quando acabara de ser indicado para a Academia Brasileira de Letras, depois de longos anos de afastamento desde o golpe de 64, Anísio Teixeira morreu. Seu corpo foi encontrado no poço de um elevador, mas os detalhes da sua morte nunca foram esclarecidos. Em 12 de julho, comemorou-se o centenário deste educador nascido na Bahia, que começou sua carreira como inspetor geral do ensino. Em 1928/29, estudou no Teachers College da Columbia University e trouxe na bagagem os estudos de John Dewey, que será sua inspiração na concepção da Escola Nova. Suas inovações não foram aceitas na Bahia e ele se mudou para o Rio de Janeiro, o que o aproximou do grupo que lançou, em 1932, o Manifesto dos Pioneiros - uma proposta de reconstrução educacional do país levando em conta suas características e necessidades, com base na escola pública, gratuita, obrigatória e leiga.

Para eles - em especial para Anísio não se poderia falar em desenvolvimento sem investir na educação. Nos anos 30, Anísio incentivou o nascimento dos Institutos de Educação; na década seguinte, criou o Centro Educacional Carneiro Ribeiro - a Escola Parque - primeira escola pública de tempo integral com oficinas de trabalho, reproduzida nos anos 60 em Brasília. Nos anos 50, assumiu a secretaria da Capes (Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal do Ensino Superior) e a direção do Inep (Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos), investindo pesadamente na formação de professores, quer trazendo grupos para o Rio de Janeiro para cursos de atualização, quer publicando os manuais de ensino. Em 1963, dirigiu a Universidade de Brasília.

Anísio escreveu uma sólida obra sobre Educação. Por muitos anos, seus livros não foram reeditados, mas agora os textos integrais estão disponíveis na Internet:

(http//www.prossiga.br/anisioteixeira), assim como tudo que foi publicado sobre ele. Neles, Anísio expõe sua convicção: sem educação igual para todos é impossível construir a democracia. Para ele, a escola fundamental não poderia ser apenas um trampolim, mas a fonte de uma base sólida para a cidadania e o trabalho: "...uma escola (...) de iniciação intelectual, mas sobretudo, prática, de iniciação no trabalho, de formação de hábitos de pensar, de hábitos de trabalhar, de conviver, de participar de uma sociedade democrática, cujo soberano é o próprio cidadão". (do livro Educação nao é privilégio)

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