VELHO, Carlos de Brito. Escola particular e liberdade de ensino. Folha da Noite. Belém, 3 mar. 1960.

Escola Particular e Liberdade de Ensino

CARLOS DE BRITO VELHO

Há dias, respondendo a pergunta de um amigo, declarava-lhe considerar tímido o projeto de diretrizes e bases do ensino, no que se refere à escola particular, por não ter, senão atingido, ao menos indicado, com clareza e desassombro, as últimas conseqüências, implícitas, com carater de necessidade, no sistema de princípios que o inspiraram.

Quais são êsses princípios? O direito natural dos pais de escolherem, com verdadeira liberdade, o tipo de educação a ser dada aos filhos; o direito, dos particulares, de organizarem escolas, desde que sujeitas a certo número de normas, fixadas pela lei; o dever do Estado de propiciar a todos indistintamente, educação condigna.

Agora, o grande problema – como conciliar, orgânicamente, os princípios, mantendo vivos e atuantes todos os três?

A fórmula preconizada pelos que combatem o projeto, liderados pelo Sr. Anísio Teixeira, é de ingênua simplicidade: promova o poder público suas rêdes escolares, seus sistemas de ensino, concentre nêles os recursos de que disponha, facilite o acesso de tôdas as crianças, tornando o ensino pràticamente gratuito, e negue às entidades privadas qualquer benefício material, concedendo-lhes, tão só, no plano da lei, o direito à existência.

Que significa, real e pràticamente, tal atitude?

Para iluminar o assunto, imagine-se o seguinte: a lei declara livre a fabricação e a venda de pão, ao mesmo tempo porem o Estado concorre com a iniciativa privada, montando padarias, adquirindo o trigo a preço superior ao suportável pelo comprador particular e vendendo o produto a preço ínfimo ou, mesmo, distribuindo-o gratuitamente.

Que aconteceria? Em verdade, a indústria e o comércio privados de pão, apesar da lei, estariam liquidados, já que as condições criadas pelo Poder Público tornariam materialmente inexeqüível aquilo que fôra facultado pela lei.

Para que não se torne fictício um direito, legalmente reconhecido, é mister que leis complementares e providências administrativas criem o clima favorável à atualização do direito.

Agir doutra maneira, seria neutralizar ou impedir o exercício do direito….

….é trabalhar pela destruição, lenta ou rápida da escola particular, pela extinção de um dos direitos fundamentais, exigidos pela consciência democrática; pela implantação, progressiva, de uma forma totalitária de educação, na qual o Estado é tudo e a família nada é; enfim apesar das declarações em contrário, pela discriminação crescente entre classes – a dos ricos, aos quais será, sempre, possível escolher a escola de seu agrado, e a dos remediados e pobres, que serão forçados a não escolher, mas a fazer ingressar os filhos na única escola que lhes é acessível, a pública, ainda que tal lhes contrarie a inclinação, a aspiração, o desejo. Ora, isso é odioso, pois exprime um privilégio, tanto mais repugnante porque privilégio decorrente de situação econômica.

A solução democrática, honesta e capaz, só ela, de obedecer aos três princípios, sem esquecer ou ferir qualquer dêles, e, ainda, de impedir todo privilégio em favor dos abastados, estaria em regular o uso dos recursos do Estado, de tal forma que êsse atendessem, igualmente, a tôdas as famílias, proporcionando-lhes a escola que sintonizasse com seu ideal, livremente manifesto.

Quer o pai educar o filho em escola neutra, sem especial marca filosófico-religiosa? Põe-lhe o Estado à disposição a escola pública comum.

Deseja, ao invés, que os filhos freqüentem escola confessional, em que, em vez de neutralidade, se respire uma pedagogia, tôda ela impregnada de valores religiosos? Pois o estado, também aqui, lhe põe ao alcance, sem onus maior, a escola de seu sonho.

Pretende, mesmo, o pai, que o filho, criança ou adolescente, se submeta a uma linha de educação firme e claramente negadora de todo o sobre-natural? Pois o Estado há de lho oferecer, para que o ateísmo se mantenha dentro de limites compatíveis com a moralidade pública e com as regras do bem viver democrático.

Perguntar-se-á: mas como é isso possível? Como poderá o Estado ofertar à escolha daqueles a quem compete, dentro de certos limites, a indicação do estilo educativo a ser dado à criança, o tipo de escola condizente? Noutras palavras – como poderá o Estado tornar a escola particular, a escola confessional, a escola marcada por uma ideologia, tão barata ou tão gratuita como deve ser a pública, neutra por não possuir uma filosofia oficial pelo menos bem delineada e suficientemente explícita?

Para tanto, bastaria que as entidades mantenedoras do ensino particular não tivessem que arcar com onus das instalações e, mais que isso, com o tremendo dispêndio monetário que representa a justa remuneração de um corpo de professores, devidamente habilitados.

E aqui se toca no slogan: o ensino particular é caro ou caríssimo, e só acessível aos que tenham fortuna.

Eis a resposta: caro ou caríssimo, porque não podendo as referidas sociedades bater moeda, a qual seria falsa, hão de tirar de alguma fonte o dinheiro, para custear prédios e professores.

E como tudo é caro ou caríssimo, caro ou caríssimo há de custar, ao bolso das famílias o ensino ministrado pela escola que preferiram. Resulta, pois, não ser da essência ou natureza do ensino particular o seu preço elevado. Poderá, como vimos, até ser universalmente gratuito, bastando que o Estado o trate com a solicitude que tem para com o ensino oficial.

Posta nestes termos a questão, caem as dificuldades levantadas contra a escola privada e se desfazerem os chavões tão ao gosto do Sr. Anísio Teixeira.

Declarava êle, há poucos dias, em São Paulo: "Nacionalismo e escola pública são termos correlatos. Um não existe sem o outro. A escola pública é a escola nacional, destinada a promover a igualdade social, a igualdade de oportunidades. A escola privada, por seu lado, conserva, cultiva e promove a discriminação".

Deixemos de lado o "nacionalismo", que lá figura, tão só, com o intuito de captar simpatias e com a intenção solerte de sugerir "entreguismo" em todos os que se opõem às suas idéias. Aliás, se lhe conviesse para a propaganda, o habilíssimo dirigente da Capes teria dito, com igual entono e convicção, internacionalismo, em vez de nacionalismo.

Vejamos, porém, o que de mais relevante há na declaração.

Para o Sr. Anísio Teixeira, a escola pública promove a igualdade social, a igualdade de oportunidades; a escola privada conserva, cultiva e promove a discriminação social.

Ora bem – no dia em que se organizasse a escola privada nos moldes que definimos, ela se tornaria instrumento muito mais hábil de nivelamento social, porque nesse momento o grupo de privilegiados da riqueza veria cair, no plano da educação, o seu mais sólido reduto – o escolar, então penetrado e ocupado sem a menor dificuldade, pela grande maioria, os filhos do povo, do proletariado e da classe média. Assim, somente assim, serão derrubadas as últimas barreiras entre crianças ricas, remediadas e pobres.

Repito – discriminação quem a quer é o Sr. Anísio Teixeira, consentindo na existência de escolas particulares, sempre mais caras e sempre menos acessíveis aos que não têm cópia de recursos; discriminação, escolher entre, porque dá ao burguês rico o direito de escolher entre a neutralidade ou o agnosticismo educacional da escola pública e o confessionalismo da escola particular, e obriga o pobre, "genus electus" de Cristo, a enviar, mesmo contra a vontade, o filho à escola pública, ou a postular, do Govêrno, o "benefício" de bolsa de estudos em estabelecimento particular.

Este o democratismo do Sr. Teixeira: ao rico, ao economicamente poderoso, o direito ou o luxo da livre escolha; ao pobre, ao economicamente fraco, a necessidade de nada escolher.

De notar é que a maneira de organizar o ensino, esboçada no correr deste artigo não representa um ideal apenas sonhado ou um plano visionário. Muito pelo contrário, é a forma, em suas grandes linhas a que chegaram, após quase um século de discussões e lutas, os democráticos e progressistas holandeses, nada reacionários e nada clericais.

A lei escolar de Visser, promulgada em 1920, instituiu, nos Países Baixos, o verdadeiro regime de liberdade do ensino, pois que então, passou a autoridade civil a tratar, com absoluta igualdade, ensino público e ensino particular.

A leitura do livro de J. Aarts antigo professor da escola normal católica de Eindhoven, "A escola livre num país livre", esclarece nos menores detalhes, o modo de aplicação da lei e ressalta, do mesmo passo, o seu maior benefício: a elevação sempre maior da qualidade do ensino na Holanda, cujo govêrno vigia, como é natural, a formação do professorado e fiscaliza, com zelo, o funcionamento das escolas.

Disse, ao começar, ser tímido o projeto aprovado na Câmara. Bem sei que, instantaneamente e com uma penada, não é possível instituir, no vastíssimo território nacional, o ensino nas bases que preconizo. Nem seria desejável. A timidez está, porém, em faltarem normas que permitam começar, desde já, o movimento, a fim de que dentro de alguns decênios pudéssemos ter levado à existência o único regime que se me afigura respeitar, realmente, as liberdades democráticas.

Timidez mais grave, no entanto, é a de certos líderes do ensino particular que não se batem pela liberdade nos termos aqui propostos, perfeitamente satisfeitos, que se mostram, com um sistema de mais largas subvenções e auxílios governamentais acrescidos de distribuições de bolsas de estudo. Contra êles, quer me parecer, justificam-se muitas das críticas do Sr. Anísio Teixeira e fico tentado a pensar que acima da liberdade que devem ter os pobres de enviar os filhos, sem qualquer embaraço, às escolas particulares de sua simpatia, põem tais líderes uma outra liberdade – a de manterem a qualquer preço, os seus colégios.

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