LACERDA, Carlos. O dono da educação está zangado. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 6 jun. 1959.

O DONO DA EDUCAÇÃO ESTÁ ZANGADO

A Educação no Brasil está ameaçada, na hora em que uma lei básica é levada ao Congresso por uma audaciosa e agressiva minoria que pretende impor a sua vontade ao país. À frente dessa minoria está um homem que tem a tenacidade da sua frustração e não usa armas leais nem reconhece o valor do jôgo democrático.

Um reduzido grupo de "donos" da educação insiste em continuar com essa propriedade como se a educação fôsse marca registrada, depositada em cartório para dar aos seus senhores um domínio absoluto e o direito de sòmente êles falarem em seu nome.

O Brasil tem ainda um hábito realmente nefasto, o de rotular uma pessoa de senhora de certos assuntos, que passam a constituir seu latifúndio. Na música, o grande Villa Lobos ia sendo vítima dêsse hábito nacional. Na pintura, o imenso Portinari quase vê liquidado o seu valor de artista pela imposição de um rótulo com o qual seria êle o único pintor representativo do Brasil. Na sociologia, o grande escritor que é o sr. Gilberto Freyre correu êsse risco, o de ser "o sociólogo" brasileiro: libertou-se por um processo através do qual êle próprio suscitou a formação de outros, estimulou vocações, animou capacidades novas. Na arquitetura foi preciso que o sr. Lúcio Costa fôsse um prodígio de modéstia para não ficar dono do assunto: em seu lugar entronizou-se o sr. Oscar Niemeyer, o talentoso arquiteto cujos defeitos e cacoetes artísticos vêm precisamente desse papado arquitetônico que lhe atribuíram, arquiteto oficial do Estado Novo e do faraó Tutankashek I.

Na educação, as pessoas que nada entendem do assunto convencionaram que o sr. Anísio Teixeira é "o" entendido de educação. Daí a ser dono dela, foi um pulo – que o sr. Anísio deu gostosamente. Fêz-se proprietário do assunto. Espalhou-se em livros, conferências, artigos nos quais a sua concepção filosófica mistura um picadinho de John Dewey (na versão taquigráfica de discurso recente na Câmara chamado Due e Diu) com um ataque agudo de laicismo "faisandé" dêsses que são menos uma expressão da inteligência do que da psique inflamada. De horror à religião e de estatismo reacionário.

Acompanho, desde há muito, a evolução do pensamento educacional do Sr. Anísio Teixeira e de alguns respeitabilíssimos dinossauros da educação no Brasil. À medida que passam os anos em vez de clarear êsse pensamento escurece. Tudo, agora, para êle se resume nêste lema novidadoso: "écraser l’infâme". (Na versão taquigráfica: "écraser l’enfant", curiosa e significativa corrupção...). O sr. Anísio Teixeira é um dêsses muitos que procuram Deus a socos e pontapés e hão de um dia encontrá-lo, pois o que sentem – eu conheço de experiência própria essas aflições – é nostalgia da fé, é saudade da crença. A sua experiência pessoal justifica, até certo ponto, êsse traumatismo que o faz desesperar da esperança, secar num brilho intelectualista que chega ao disparate, uma inteligência aguda que se faz trombuda, um raciocínio que se enovela a ponto de em vez de um desenvolvimento lógico nos apresentar um enroscamento, uma espécie de espiral de frases, frases, frases. Se não é o maior educador brasileiro, sobretudo depois do seu malôgro como Secretário de Educação na Bahia, onde nada deixou do muito que se esperava de sua atuação, é certamente no momento o mais verboso.

Atualmente êle dispõe de uma verba, que emprega como muito bem entende, no Ministério da Educação, superior aos orçamentos de mais de 10 Estados brasileiros somados. Essa posição lhe assegura, além da patente de invenção da educação, que registrou para o mercado brasileiro, uma importância superior à sua razoável e incontestável importância, uma ascendência superior à sua compreensível e aceitável autoridade na matéria.

Os processos de luta do sr. Anísio Teixeira contra o atraso da educação no Brasil são realmente curiosos. Êle luta – participando do atraso, êle condena em conferências aquilo de que participa. E quando se trata de mudar a rotina da educação, contra a qual clamava enquanto não havia perigo de mudá-la, êle dá tudo o que tem e até o que apenas julga ter para conseguir que quanto mais se mude mais fique a mesma coisa.

Os seus instrumentos de trabalho são realmente curiosos. O projeto que fabricou é perfilhado, na Câmara, pelo ex-chefe de gabinete do ministro da Educação, eleito com o dinheiro das bôlsas de estudo para alunos pobres, dinheiro portanto que foi roubado ao ensino para eleger um deputado cuja frieza diante do fato moral é realmente o espetáculo mais penoso desta legislatura. Êsse é o intérprete, e porta-voz do sr. Anísio Teixeira na Câmara. Ou antes, o sr. Anísio Teixeira transforma-se no justificador doutrinário, no capanga ideológico da manutenção do "status quo" da rotina corrupta e incompetente no ensino brasileiro.

Seja tudo pelo amor à cruzada sem cruz a que o sr. Anísio se atira. Êsse fanático da irreligiosidade leva ao campo da educação as suas frustrações místicas. Como bem lembra McCluskey, no seu livro – cuja leitura faria um grande bem à inteligência do sr. Anísio Teixeira – "Escolas públicas e educação moral"– para destruir a metafísica é preciso criar outra metafísica, o sr. Anísio Teixeira acaba cozinhando uma metafisiquinha de bôlso, dentro da qual transforma em volutas e espirais as suas generalidades mais ou menos sociológicas sôbre a educação e a escola.

Tem-se a impressão de que o sr. Anísio Teixeira está zangado porque querem lhe tomar um brinquedo. O permanente servidor da rotina e da mediocridade da educação oficial está triste: se a educação fôr levada a sério por todos, como poderá o sr. Anísio Teixeira continuar dono dela?

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