LACERDA, Carlos. A mais justa das causas. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 4 abr. 1959.

A mais justa das causas

Constou-me que alguns estudantes deitaram manifesto contra o nosso projeto de lei de diretrizes e bases da educação e a favor do substitutivo do Govêrno. Qual dêles? Convém recordar os fatos. Façamos a cronologia do projeto.

1946 – Ministro da UDN no govêrno Dutra, o sr. Clemente Mariani envia ao presidente, que o remete ao Congresso, um projeto de lei de Diretrizes e Bases da Educação.

1946-1954 (8 anos) – Marchas e contramarchas, discussões acadêmicas, citações pedantes, depoimentos, entrevistas – e nada mais.

1955 – Chegando à Câmara, procuro o projeto para tocá-lo por diante. Depois de muita procura, sou informado de que o autógrafo do projeto... sumiu. O presidente da Câmara, deputado Carlos Luz, aconselha-me o melhor caminho: fazer recopiar o projeto, do "Diário do Congresso" e apresentá-lo com a minha assinatura, para impedir que êle seja sepultado e, assim, ressuscitá-lo. E’ o que faço.

1955-1957 – Não se consegue fazer caminhar o projeto, apesar dos esforços do deputado Coelho de Sousa, presidente da Comissão de Educação, e poucos mais. A soma de interêsses criados, o empenho político e financeiro, a guerra entre ateus e religiosos, a luta entre igrejas diferentes, só encontra trégua quando sepulta o projeto. E por isso, a Comissão de Educação, onde prossegue uma guerra surda entre protestantes e católicos, aquêles apoiando o ateísmo da escola, preferindo deformar o ensino a dar iguais oportunidades a todos, por entenderem que com iguais oportunidades, os colégios católicos levarão mais vantagem. E acima de tudo, o interêsse eleitoralista e orçamentário dos politiqueiros, coincidente com o interêsse de aventureiros como o chefe do gabinete do ministro da Educação, que se elege deputado à custa da verba destinada às bôlsas escolares.

1958 – Juntamente com um grupo de professôres, religiosos e agnósticos, da escola pública e da escola particular, apresento um substitutivo ao que, entrementes, o govêrno Kubitschek mandara à Câmara em lugar do primitivo projeto, da gestão Clemente Mariani.

Consigo urgência para a aprovação do projeto na Câmara. Mas, por maioria de um voto, às vêzes, e quase sempre pouco mais do que isso, a Comissão de Educação conduz-se com um estreito espírito de vaidade pessoal, de melindres de autoria, e atira fora o nosso projeto para ficar com uma espécie de sarapatel educacional e legislativo que cozinhou tirando pedaços de cada projeto e misturando-os sem cuidado pela organicidade e unidade doutrinária de cada qual.

Sacrifico, então, a urgência para impedir essa deformação do projeto. Deixo à nova legislatura, mais arejada, menos envenenada por êsses humores, o encargo de examinar os projetos e votar um que tenha unidade e coerência.

O nosso projeto, entretanto, avança nos setores educacionais. Êstes, pouco a pouco, despertam. O cardeal do Rio de Janeiro, o grão-rabino israelista, autoridades da Igreja Protestante, educadores, leigos, agnósticos, pronunciam-se em favor do projeto. Milhares de telegramas chegam à Câmara. O próprio sr. Kubitschek, pondo por um momento de lado a sua odiosa discriminação, disfarçada em palavras, mas sempre confirmada em fatos, manifesta-se favoràvelmente ao nosso projeto. Não posso divulgá-lo no rádio e na TV, porque a censura proibe as emissoras de me transmitirem a palavra. Enquanto isto, começa a propaganda contra o nosso projeto.

Primeiro, blandiciosa. Depois, audaciosa. Já agora, impudente. Os comunistas gritam – porque não desejam uma educação para a democracia, para formar cidadãos conscientes e úteis à preservação de um país livre e cristão.

Começo a conversar com os pontífices da educação oficial. Ouço o Sr. Anísio Teixeira, que me faz a honra de sua amizade há tantos anos. "Quais as suas objeções?" Êle as formula. Em tudo o que nos parece possível, aceitamo-las. Incorporamos ao projeto várias de suas idéias, essas mesmas idéias que êle, durante tantos anos, não conseguiu fazer vitoriosas nem mesmo no seio do govêrno a que tem servido com exemplar discrição. A educação, diz êle, dizemos nós, dizem os pais, dizem os mestre, dizem os alunos, anda mal, anda péssima. Quando alguém aparece e se propõe a ajudá-la a andar melhor, sai a condená-lo, a vituperá-lo, logo quem?

Exatamente os responsáveis pelo estado a que chegou a educação. Os superburocratas, os profissionais do mau ensino, os interessados na ignorância do povo, os inimigos de sua formação moral e cívica. E mais: os que instauraram no Brasil uma escola de classe, que dá ensino uniforme aos pobres e sòmente aos ricos permite – no papel... – um ensino adequado às condições e exigências psicológicas e vocacionais do aluno.

Começa a campanha contra o nosso projeto. O sr. Fernando Azevedo, figura que respeito, é chamado por alguns interessados na manutenção do ensino na porcaria em que se encontra, para opinar contra o nosso projeto – cujas definições são, no entanto, tiradas de seus próprios estudos e trabalhos... Encontro, em São Paulo, o meu amigo e companheiro de partido Vicente de Paula Lima, ex-secretário de Educação, impressionado porque lhe disseram que o nosso projeto "acabava com a escola pública". Mostramo-lhe o projeto. Êle fica espantadíssimo. Como poderiam ter-lhe dito êsse absurdo? Aos poucos, esclarecem-se as posições.

Estão contra o nosso projeto, os que não querem que as escolas de formação religiosa, especialmente católicas, participem sem discriminações, do esfôrço – que deve ser geral e indiscriminado – pela educação dos brasileiros.

Estão contra o nosso projeto os comunistas, que preferem uma educação tumultuada – o tipo de escola em que os alunos e os mestres têm de fazer greve, pela proletarização do professor pelo envolvimento do aluno em tudo – menos no estudo.

Estão contra o nosso projeto, os especuladores do ensino, que fazem do sistema de bôlsas um sistema de bolas, um privilégio, um caça-cruzeiros, e não querem a intervenção do Estado mas também não admitem a fiscalização pelos próprios professôres... Houve um diretor de colégio, notório por vender exames, que se permitiu dizer que o nosso projeto... tirava liberdade aos colégios particulares. Ora, tôda a crítica que se lhe faz é exatamente a oposta. Por outro lado, o Ministério da Educação começou a adotar, fingindo que não o faz, medidas recomendadas pelo nosso projeto, como um meio de evitar a sua aprovação global.

Estão contra êle os que entendem que uma lei básica é uma espécie de monumental regulamento. E os que querem o ensino exclusivamente na mão do Estado. Uns, por preconceito anti-religioso. Outros, porque são totalitários.

Para evitar que o nosso projeto seja aprovado, o Ministério da Educação sai do sono profundo em que estêve metido todo êsse tempo e anda êstes dias no esfôrço insano de parir um novo mostrengo, um substitutivo do substitutivo do substitutivo, para dá-lo ao sr. Kubitschek, a fim de que êste envie à Câmara o substitutivo de seu proprio substitutivo... Tudo, até êsse ridículo, contanto que do líder da Oposição não se possa dizer que tem um projeto capaz de resolver a crise da educação no Brasil.

A educação tem sido assunto de tal modo fora de foco, durante todos êstes anos, que vinha sendo sumamente difícil interessar no tema até mesmo os mais diretamente ligados a êle, pais, estudantes, mestres, diretores de escolas. O esforço dos inimigos da Igreja, o afã dos inimigos da Oposição, o empenho dos inimigos da liberdade de ensino, o afinco dos inimigos da igualdade de oportunidades para todos aprenderem, afinal, lançam a questão sob a luz da opinião pública.

Ainda bem. Já que não posso propagar pelo rádio e a TV, à casa e à escola, ao lar dos pais e dos alunos, à classe dos professôres, a sustentação das nossas idéias, consubstanciadas no projeto que apresentamos à Câmara, ao menos os outros, os inimigos da educação e os falsos amigos, que a prostituíram, que a degradaram durante todo êsse tempo, encarregam-se de promover o assunto ao primeiro lugar na ordem do dia. Forcei-os a falar e a desmascarar-se.

Ainda agora, o sr. Lourenço Filho, veterano batalhador da causa da educação, como uma feliz exceção, com o qual ousei ter várias divergências por motivo de seu inaceitável apoliticismo em face do Estado Novo, ou do que como tal me pareceu na época, acaba de dar um exemplo de isenção e de fidelidade ao dever do educador, numa entrevista que concedeu ao jornal estudantil do "Diário de Notícias". As suas afirmações são por tal modo coincidentes com as nossas, no fundamental, as suas definições aproximam-se tanto das nossas, que nos sentimos tão honrados quanto reforçados em nossa posição por tal autoridade.

Respeito profundamente a participação do estudante na vida pública. Entendo que se deve opinar e tem até, à disposição, uma larga margem de êrro.

Mas não reconheço a ninguém, estudante ainda menos, o direito de chamar "reacionário" a um projeto que não conhece, que nem sequer leu e se leu não entendeu. Essa não é uma posição digna de estudantes e sim de meros "pelegos" do Ministério da Educação.

Urge que os estudantes verdadeiros se dignem estudar a questão e pronunciar-se depois de ouvir depoimentos e opiniões, informações e versões fidedignas. Pronunciar-se contra um projeto de lei de educação e ensino por preconceito político ou religioso é uma conduta indigna de democratas e ainda mais, indigna de lealdade e da generosidade de inteligência, que têm de ser apanágio da juventude.

Compreendo que os liberalões se aliem aos comunistas para combaterem um projeto que visa a dar aos brasileiros um sistema de educação baseado numa filosofia cristã, portanto solidária, mas não comunitária, da vida. Os liberalões geraram o comunismo com o seu egoísmo, com a sua distância em face do drama social. Os comunistas, que vão exterminá-los, servem-se dêles para lançarem a confusão e a perplexidade, que os há de matar.

Compreendo que os responsáveis, diretos e indiretos, pela desordem e pela apatia da educação no Brasil queiram salvar a face, ou o que faz as vêzes de face nesses senhores, torpedeando o nosso projeto para fazer com que tudo continue mais ou menos na mesma.

O que não compreendo é que um estudante digno do nome de estudante faça o jôgo dêsses reacionários, procurando intrigar o nosso projeto com a classe estudantil que, na sua grande maioria, ainda não o conhece.

Obrigam-me, assim, a um novo esfôrço que farei enquanto me restarem energias. Já aceitei convite para ir a Belo Horizonte e a Curitiba, para falar na Universidade Católica do Rio, sôbre a lei de diretrizes e bases.

O rádio me é negado, a TV apaga-se para nós, e a intriga come sôlta no meio dos professôres, dos estudantes e dos próprios pais. Pois bem: vamos explicar, falar, escrever, trabalhar, lutar, esclarecer, debater, examinar, estudar, demonstrar, convencer até que não haja mais dúvidas nos espíritos de boa fé e sim, ùnicamente, torpor ou torpeza nos demais.

Não há causa mais justa, não há luta mais santa do que essa de conseguir, com a ajuda de tantas pessoas de reta intenção, na Câmara e fora dela, uma lei básica que trace à educação dos brasileiros um rumo de liberdade e de solidariedade, de preparação para a vida e não de preparação para a prova parcial, de formação e não de deformação.

Esperava que fôsse mais fácil ganhar essa batalha. Se ela é difícil, trataremos de ganhá-la assim mesmo. Quem não quiser ser pisado, saia da frente. Pois, chega de brincar com o destino da juventude do Brasil. Chega de fingir de educador e emprestar seu nome a tudo quanto é macaqueação e malandragem no sistema corrompido e gasto de falso ensino que se ministra oficialmente no Brasil, na exploração do trabalho do professor, no desdém pelas vocações, no desprêzo pela inteligência da criança, na adulteração do sentido do ensino e na perversão do processo educativo.

Quem quiser, junte-se à nossa batalha. Não há causa mais justa, não há luta mais santa.

CARLOS LACERDA

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