CORÇÃO, Gustavo. O um e o múltiplo. Correio do Povo. Porto Alegre, 9 jul. 1961.

O UM E O MÚLTIPLO

(Especial para o "Correio do Povo")

GUSTAVO CORÇÃO

O desejo que o professor Anísio Teixeira manifestou na carta escrita ao Sr. Gustavo Lesa e comentada nestas colunas na semana passada, desejo de ver proliferarem no chão de nossa cultura "n" filosofias, como julga que proliferam na cultura contemporânea "n" geometrias, não é um pendor casual, episódico, e especialmente aplicado contra a inteireza da filosofia. Ao contrário, é talvez a idéia predileta, o eixo em torno do qual giram muitas, senão todas as manifestações intelectuais do Sr. Anísio Teixeira. Basta ler seu livro, "A Educação e a Crise Brasileira", e começar a ler o capítulo intitulado a contragosto do autor "A Educação e a Unidade Nacional", para poder qualquer espírito desanuviado concluir que o Sr. Anísio Teixeira ama a diversidade, tem um culto quase religioso pela diversidade, e vê com maus olhos tudo que cheira à unidade. Disse eu atrás que o título daquele capítulo fora dado a contragosto do autor. Efetivamente, trata-se de uma palestra pronunciada em 11 de agosto de 1952 na Associação Brasileira de Educação, tendo sido o título importo pêlos organizadores, e em certa altura repelido pelo conferencista "Logo, a educação é também um dos instrumentos da diversidade cultural e já agora podeis ver as razões de minha reserva ao modo pelo qual foi formulado o tema de minha palestra – educação e unidade nacional. Preferiria formulá-lo – educação e diversificação nacional".

Devo dizer, antes de prosseguir, que partilho com o Sr. Anísio Teixeira a reserva e a desconfiança de tal "unidade nacional" que a mim também não me cheira bem; mas daí a ver a perfeição sistematicamente do lado do múltiplo, como ensina o professor Anísio Teixeira, vai o abismo que infelizmente nos separa, ou a diversidade que talvez seja, na opinião do autor, um laço que nos prende.

No que toca à estrutura da sociedade civil, no que diz respeito às formas de um corpo político, professo o pluralismo ensinado pôr Maritais no seu "Humanismo Integral". É melhor esse pluralismo, é melhor a admissão da diversidade de experiências humanas, é melhor essa tolerância civil – inteiramente diversa da tolerância intelectual, dogmática ou filosófica, que Maritais jamais defenderia – é melhor, dizia eu, essa diversidade assumida nas modernas democracias do que a unidade, ou a procura de unidade máxima que caracterizou a civilização medieval. Mas daí a dizer o que diz o professor Anísio Teixeira vai uma enorme distância. Eis pôr exemplo algumas das passagens mais características da sua palestra: "A unidade de uma cultura primitiva é quase perfeita, e tanto mais perfeita quanto mais fôr inconsciente. (...) Seja na evolução da vida ou das culturas, diversificação é que é condição de progresso...". Mais adiante: "O desenvolvimento cultural da humanidade é uma lenta marcha da unitariedade para a diversidade..."Ora, isto, a meu ver, constitui um exemplo magnífico, didático, do modo especial de encarar as coisas por baixo, isto é, pelas partes e pelas causas materiais. Na verdade o mundo oferece, materialmente, esse espetáculo de multiplicação de experiências e de formas, a tal ponto que o professor Anísio Teixeira, adaptando ao seu estilo uma frase de Adler Mortimer, poderia dizer que este mundo é mais um Multiverso do que um Universo. Na verdade, à medida que passam os anos, crescem novos legumes e flores nos jardins da cultura universal ou multiversal. Ninguém negará esse aspecto multiplicador do progresso humano. Mas apesar de tudo isto não se pode dizer que o progresso seja medido pela diversidade e que a diversidade seja o verdadeiro índice da perfeição. Ao contrário disso, enquanto materialmente se multiplicou o mundo, cresceu também a unidade que abarcava aquela maior diversidade. A Física, por exemplo, enfrenta hoje maior número de problemas do que há cem anos; mas a ninguém escapa o fato de se ter ela tornado mais una do que nos tempos, dos fenômenos distribuídos em compartimentos quase estanques. As línguas também não confirmam a desabrida filosofia do professor Anísio Teixeira, pois qualquer estudioso do assunto sabe que muitas línguas evoluíram do mais flexionado para o menos flexionado, do mais complexo para o mais simples. E a moral nos oferece o melhor exemplo de crescente unidade, quando comparamos os códigos de Manú ou mesmo os livros da lei mosaica com a moral cristã sintetizada naquela palavra admirável de Santo Agostinho: "Ama e faze o que quiseres".

Os fatos não confirmam a doutrina do ilustre professor, nem podiam confirmar, a não ser na perspectiva baixa a que atrás nos referimos, porque é metafìsicamente impossível aquilatar a perfeição de uma coisa por sua diversidade de elementos. A perfeição será sempre medida em têrmos de unidade. Mas é preciso lembrar que o conceito de unidade é como o conceito de ser um universal analógico. No ponto mais alto, como propriedade transcendental do ser a Unidade é conceito coextensivo de ser. O Ser e o Uno são a mesma coisa, dizia Aristoteles. E nesse sentido a pura diversidade é um contra-senso. Nos analogados inferiores, é sempre em têrmos de unidade que se exprime um valor, um progresso, uma perfeição, e não em têrmos de diversidade. Na Arte, por exemplo, a unidade é sinônimo de integridade da forma, ou sinônimo da beleza: diz-se que uma obra de arte é perfeita quando nada se pode tirar e nada se pode acrescentar à sua forma. Num corpo vivo, também, é segundo a unidade que se avalia a beleza, e nesse sentido tive a oportunidade de dizer pessoalmente ao professor Anísio Teixeira, sem sombras de impertinência, que não seria vantajoso, para êle, o nascimento de uma verruga na ponta de seu nariz, embora, à luz de sua filosofia, tal verruga devesse ser considerada um progresso, por ser uma coisa diversa do dito nariz. E até nas sociedades, quando enunciamos o ideal pluralista, não é pela pura diversidade que nos batemos. Ao contrário, recomendamos a defesa dessa estrutura social como a mais conveniente para a concordia humana e para a liberdade de pesquisas. O bem e a verdade colimados dão ao pluralismo a sua razão de ser, e é sempre do lado do Uno que está o critério real, o critério profundo, o critério último de perfeição.

Levado por sua brutal simplificação, o professor Anísio Teixeira dirá, um pouco mais adiante em sua palestra, que "não há ilustração mais estridente do enriquecimento que representa para a cultura a divisão e a perda de unitariedade do que o movimento da Reforma na religião cristã-romana e depois a multiplicação das seitas do protestantismo". E o que me espanta em passagem como esta, não é a irreverência em relação à Igreja Católica. Não é a irreverência que tem um professor pela verdade, esteja onde estiver. Não parece despertar na alma do professor Anísio Teixeira a menor ressonância a suspeita de estar aqui a verdade e acolá o êrro. Suponho até que êle tenha um sorriso penalizado, polido, ao ler essas palavras ingênuas, "verdade", "êrro", como se pudessemos de alguma coisa, neste mundo, formular tão categórica proposição. E o que me parece grave, gravíssimo, é que uma mentalidade assim configurada se ocupa de problemas de educação!

Mais adiante, em sua palestra, diz assim o professor: "Tudo me leva a crer, sem o menor resquício de malícia, que o catolicismo brasileiro, por exemplo, muito teria a ganhar de um incremento do protestantismo entre nós, e protestantismo, da multiplicação no país de maior número de suas diferentes seitas". E reitero aqui a observação anterior. Não é o respeito pela ortodoxia que reclamo a uma alma que tem a infelicidade de estar apartada da doutrina de Deus. Não. O que reclamo, o que me aflinge é o descaso, a indiferença declarada com glacial polidez. Como pode ser professor quem não ama o desempate das proposições, pretendendo amá-las tôdas? Como pode cuidar de educação quem não tem sinais de afeto pelas formas com que as verdades das coisas espelham, confessam, uma verdade mais alta que a tôdas ilumina?

Bem sei que há unidades pobres, paupérrimas, tidas pelo lado da matéria, e merecendo mais o nome de uniformidade, embora esse nome tenha ressonâncias cheias de ambiguidades. Sempre me bati por uma democracia pluralista e bem sei que há unidades sonhadas pelos totalitários que vêem uma sociedade como quem vê um vaso ou uma estátua. Simpatizo com a repugnância que o autor manifestou pelo título que lhe foi imposto naquela palestra, no qual sinto um cheiro de Estado Novo; mas por uma curiosa coincidência, e sem o menor resquício de malícia, o digo como disse o nosso autor, a primeira idéia que me ocorreu, que me veio agora à mente quando recebi o impacto da expressão "unidade nacional", foi justamente a que se prende àquele fenômeno de estatização do ensino, pelo qual se bate nervosamente o nosso filósofo da pura diversidade.

William James disse mais de uma vez que o problema da unidade e da diversidade é o teste crucial da mentalidade filosófica e classificou em duas colunas as duas principais espécies de mentalidade. De um lado estavam os "ismos" favoráveis ao primado do Uno, e esta coluna tinha o título de "tender minded"; do outro lado os "ismos" favoráveis ao primado do múltiplo, e esta coluna tinha o título de "tough-minded". O primeiro título lembra a "carne tenra" que Aristóteles atribuía aos especulativos; o segundo que recai sôbre os discípulos do próprio William James, poderia ser traduzido por "cabeça dura".

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