DUARTE, Jeremias. ABC de Anísio Teixeira. Tribuna da Imprensa. Rio de Janeiro, 29 mar. 1971.

ABC DE ANÍSIO TEIXEIRA

Jeremias Duarte

É muito arriscado escrever sôbre Anísio Teixeira, uma personalidade numerosa e filigranada e que consumiu tôda uma existência na tentativa de pensar e agir racionalmente sôbre as coisas e contradições dêste velho mundo em que vivemos.

Há vários Anísios, desde o adolescente destinado à vida religiosa e desde o prospector de minas de talco e manganês até o bacharel e escritor, o educador e o filósofo da educação.

Diante da riqueza e variedade de semelhante tipo humano, qual Anísio devemos escolher para sugerir, embora muito superficialmente, às gerações de hoje, a perda que o Brasil acaba de sofrer?

De mim, preferia não escrever sôbre Anísio Teixeira, ainda que amigos comuns assim o desejem. Durante tôda a vida estivemos ligados por laços fraternais e a minha admiração por êle crescia a tal ponto que, sendo íntimos, eu já procurava um jeito de introduzir em nossas relações um certo ritual cerimonioso, afim de não perder a perspectiva histórica em que deveria apreciá-lo e amá-lo. Já que o Brasil missioneiro e processional tanto fizera por desmerecê-lo, trataria de assumir, por aquela forma, a atitude de devedor confesso por tôda a juventude estudiosa de nosso País. Romantismo particular, talvez.

É, assim, de Anísio Teixeira, como educador, que deveremos escrever, para cumprir o testemunho sôbre uma escala humana a que a Nação, infelizmente, não tem estado acostumada, nem a mensurar, nem a aplaudir.

Em nossos tempos, desde 1928 até esta data, a problemática educacional brasileira pode ser tôda descrita em têrmos de atuação e do pensamento de Anísio Teixeira. A partir da Diretoria de Instrução Pública, depois Secretaria de Educação do Distrito Federal, é de inteira justiça proclamar que passou a percorrer a difundir-se por todo o País a idéia da importância e da gravidade de nosso problema educacional, não em têrmos de campanhas de alfabetização (espécie de colher de chá que, às vêzes, é dada aos pobres, com o fito de limpar as estatísticas), mas como algo inerente à sobrevivência das próprias instituições nacionais, consideradas o conjunto orgânico sem o qual nenhuma nação pode substituir e desenvolver-se. Daqui, do antigo Distrito Federal, sob a inspiração de Anísio, partiram as idéias de reformulação de nosso quadro escolar, a idéia da Escola Nova, que, por isso mesmo, pregava uma mudança radical de atitudes, não apenas na conceituação do problema educacional, tanto do ponto de vista teórico como técnico, mas também nos interêsses que haveria de ferir para transformar a escola num símbolo vivo da dignidade nacional, até o ponto e a dimensão e (...) que costumam ostentar as nossas igrejas e catedrais.

O problema, assim encarado, e a escola, assim dignificada, longe de constituírem uma fantasia ou uma promoção publicitária, foram corporificados num conjunto de mais de 80 edificações que até hoje podem ser vistas na Guanabara com tal projeção e grandeza que, tendo sido inauguradas até o ano de 1935 de todo o conjunto se têm servido as ulteriores administrações para fundar escolas de comunidade. Entre tantas outras, a quadra da Praça Arcoverde, em Copacabana, é um exemplo disso.

Claro que, tal concepção do papel da escola na formação democrática de uma nova e moderna sociedade. Anísio haveria de sacudir e contrariar velhos interêsses privados, velhas estruturas, velhas mentalidades, velhos privilégios. Daí, a caudal de restrições e agravos levantada contra o seu pensamento e a sua obra. O sinal maior e mais grave de um dêsses atentados foi a destruição da antiga Universidade do Distrito Federal, criada para suprir apenas a lacuna de nosso magistério secundário e que, não obstante, foi e é considerada até os presentes dias como a única "universidade" que o Brasil já teve. Destruída a obra, banido o criador, forjaram das cinzas a sua imitação através da Faculdade Nacional de Filosofia, com o que sobrou do acervo e da biblioteca da extinta UDF.

Depois disso, semi-foragido, Anísio recolheu-se à vida particular, dedicando-se a inúmeras atividades, inclusive empresariais, mas pensando sempre, e cada vez mais lúcido, no problema educacional, com o corolário da escola fundamental comum para todos os brasileiros.

Em 1946, decorridos 11 anos do fim do gôverno Pedro Ernesto, Anísio Teixeira aceitou, após a redemocratização do País, a Secretaria de Educação do Estado da Bahia. Acendia-se, novamente, um farol de nôvo, renascia uma esperança para o equacionamento de nosso problema escolar e educacional. Logo de início, ali na Bahia, Anísio produziu um dos documentos mais importantes de nossa época, propondo à Assembléia Constituinte a criação política de um IV Poder, o Poder da Educação, o qual, no seu entender, já chegava tarde, por isso que o mundo moderno, todo êle, era e seria produto do seu sistema educacional.

Ainda ali, na Bahia, ao deixar o cargo, Anísio deixava também a mais avançada experiência educacional de nossos tempos, a escola parque do Pau Miúdo, em todos os sentidos a mais rica do Estado, feita na zona mais pobre de Salvador. Como de outras vêzes, também não gostaram disso.

Terminado o govêrno Otávio Mangabeira e transcorrido algum tempo, Anísio voltou à função pública, aceitando a direção do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos. No INEP, além de administrar o fundo nacional de ensino primário, fertilizando com os seus conselhos as Secretarias estaduais de educação de todo o Brasil, Anísio criou a CAPES e fundou os únicos centros regionais de pesquisas de educação existentes em nossas principais capitais. Foi também membro do Conselho Federal de Educação, tendo sido Reitor da Universidade de Brasília.

Dir-se-ia que, tendo exercido tantos cargos, Anísio Teixeira não pode ser encarado como uma figura à margem, ainda menos como uma figura hostilizada pelo sistema governamental brasileiro. Assim pode parecer. Mas, de fato, o que aconteceu foi que Anísio Teixeira, em tôdas as horas críticas do Poder Nacional, serviu de bode expiatório das idéias mais generosas e avançadas, um homem para ser marcado e queimado, como sempre foi, por ser demais verdadeiro e inteligente e, por isso mesmo, perigoso para tôda ordem que, de tanto velha, aprendeu o expediente de chamar-se nova.

Na verdade, êsse homem amou profundamente a ordem democrática, e só a ela para servir ao seu País, amou a escola fundamental comum, a escola do povo, amou a pesquisa e a verdade intelectual fora de qualquer confronto, e deu-nos a consciência de vergonha nacional que é a nossa educação, tudo fazendo por honrá-la, dignificando-a inclusive no plano internacional, através de estudos, conferências e livros nos quais deixou a marca inimitável de suas intuições e análises algumas verdadeiramente geniais, dos problemas básicos da Nação brasileira.

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