GASPAR, Carlos. Falência do ensino primário. O Cruzeiro. Rio de Janeiro, 28 set. 1957.

Falência do ensino primário

O BRASIL PRECISA DE UMA CARTILHA DE ABC

Colaborando numa nobre tarefa que entende ser de todos os brasileiros, O CRUZEIRO vai lançar uma grande campanha de alfabetização, começando pela edição de uma cartilha moderna - Vários dados estatísticos revelam que o nosso País está a reduzir o ensino e não a aumentá-lo, crescendo assustadoramente o número de analfabetos.

Reportagem de Carlos Gaspar

NEXO a um de seus próximos números, a revista O CRUZEIRO vai editar, brevemente, uma cartilha de ABC, como parte de uma grande campanha de alfabetização, de âmbito nacional, que certamente há de contar com o apoio dos nossos milhares de leitores, em todo o País. Essa cartilha foi organizada por dois consagrados escritores patrícios, Herbeto Sales ("Cascalho") e Marques Rebêlo ("A Estrêla Sobe"), rigorosamente de acôrdo com os mais modernos preceitos pedagógicos. Ilustrou-a (e não é necessário dizer que primorosamente, a côres) o saudoso desenhista, homem de letras, pintor e cenógrafo Santa Rosa. Foi a cartilha o seu último trabalho, antes de partir para a Índia, onde a morte iria surpreendê-lo. A simples enunciação dos nomes dos autores, portanto, dispensa qualquer apresentação da cartilha que iremos lançar, como parte da campanha de alfabetização a que nos referimos. O que se torna importante acentuar, todavia, é a necessidade do apoio de todos, particularmente dos que lêem regularmente O CRUZEIRO. Vamos pedir a cada um de nossos leitores que, através daquela cartilha, alfabetize pelo menos uma pessoa, contribuindo assim, ainda que modestamente, para superar um dos maiores entraves do progresso nacional. Com a reportagem ora apresentada, iniciamos uma série em que será examinada a calamitosa situação do ensino no País, com sua imensa legião de iletrados - chaga que cabe a todos os brasileiros, num esfôrço único, e não apenas ao Govêrno, exterminar, como dever patriótico.

O AUGE de uma sêca no Ceará, um engenheiro americano, que percorria a zona do polígono em viagem de estudos, perguntou a um lavrador humilde e aparentemente ignorante qual era o principal produto da região. "Produzimos homens, seu moço" - foi a resposta inesperada, com que o sertanejo definia tôda a sua luta contra as intempéries. O americano ficou impressionado, tanto mais quando ouviu o seu interlocutor, com as vestes em farrapos, a falar de técnica de construção de açudes e problemas de irrigação. E aquêle homem era completamente analfabeto! Como analfabeta era cêrca de 65% da população de seu Estado. Tão espantado ficou o cidadão yankee, com êsse e outros exemplos, que ao voltar à sua terra, e fazendo uma conferência no Rotary International, falou mais de educação do que de engenharia. Êle não concebia - e nós às vêzes também não concebemos - como se deixasse de oferecer, a um povo para quem os conhecimentos são de fácil assimilação, as oportunidades para aprender a ler e escrever. E assim acontece no Brasil, particularmente nas zonas mais afastadas da capital.

O Diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP), Professor Anísio Teixeira, há vários anos, vem estudando e preconizando medidas para solução da crise educacional brasileira. E sua pregação tem sido infrutífera, até agora. Êle tem dito e provado que, ao contrário do que muita gente pensa, estamos aumentando cada vez mais o número de analfabetos, pois os meios de aprendizado não têm evoluído na proporção do crescimento demográfico - e que o nosso sistema escolar está atrasado de 600 anos. Sua organização pode comparar-se à Idade Média.

Em escolas mal instaladas, com professôres mal remunerados e um sistema educacional obsoleto, é que temos a pretensão de formar as elites nacionais

O HOMEM QUE SABE DE TUDO

O Professor Anísio Teixeira explica bem essa revelação espantosa. Entre os escolásticos, herdeiros do saber grego - diz êle -o saber era um saber absoluto e completo. Na Idade Média, sabia-se tudo. O mundo havia ficado conhecido pela revelação divina e pela revelação aristotélica. O desenvolvimento acaso possível nesse saber não traria pròpriamente nada de novo, mas novas distinções, novas discriminações, novos comentários e refinamentos de classificação. Aprender essa "cultura" consistia em compreender e fixar suas categorias e habilitar-se alguém a poder falar sôbre o mundo e nós mesmos, com distinção e elegância. Todo êsse saber se achava em livros definitivos, cuja leitura daria tôda a cultura possível. O "lente" era o leitor. Os alunos ouviam e aprendiam.

Sòmente semelhante teoria do saber poderia produzir a escola brasileira - acrescenta o diretor do INEP - pois outra coisa não representam os seus curtos períodos de aulas, seus pobres livros esquemáticos e seus exames para reprodução do aprendido nas aulas. Encurtamos o período de aulas, encurtamos os professôres. Nessa escola brasileira, tudo pode ser dispensado: prédio,instalações, biblioteca, professôres ... Sòmente não pode ser dispensada a lista completa de matérias. Qualquer daquelas disciplinas tem de existir no currículo. Uma só que retiremos porá abaixo todo o edifício de nossa cultura!

Isso explica como ainda estamos lidando apenas com a velha noção do "conhecimento completo", total, da idade Média, na concepção de que nada pode ser ignorado. Procuramos formar, assim o homem que sabe tudo. E como nem metade dos programas das numerosas matérias são cumpridos, acabamos formando o que sabe pouco mais do que nada.

FALÊNCIA DO ENSINO PRIMÁRIO

Nada pode haver de mais anacrônico e sem objetivo prático do que o nosso ensino primário. Segundo o mestre Clark, da Universidade de Colúmbia, a educação não é apenas um processo de formação e aperfeiçoamento do homem, mas o processo econômico de desenvolvimento o capital humano da sociedade. É a educação escolar, portanto, o processo pelo qual se distribuem adequadamente os homens pelas diferentes funções e ocupações especializadas. É essa a base do sistema educacional norte-americano e, sem dúvida, uma das razões do formidável progresso técnico dos Estados Unidos. Para organização do sistema escolar brasileiro, desprezamos o exemplo americano e procuramos seguir o da França. No dizer do próprio ministro da Educação, Sr. Clóvis Salgado, a pedagogia francesa desenvolvia, acima de tudo, a inteligência de tipo dedutivo, a inteligência do discurso, desprezando outros tipos de inteligências que são, de certo modo, até mais necessários à nossa civilização, tais como a inteligência de caráter plástico, que concebe com imagem, a inteligência que concebe com ação e a "inteligência da matéria", que leva à invenção e ao artesanato de alta qualidade. A inteligência que fêz, por exemplo, o operário Graham descobrir o dínamo, dando-nos tôda a eletricidade de hoje. No Brasil, mesmo no ensino primário, procuramos seguir a pedagogia intelectualista. Nem isso, porém, conseguimos fazer.

A escola primária, mesmo gratuita, não consegue reter o aluno. O estatístico Moysés Kessel, pesquisando uma geração em 1945, composta de 1 milhão e 200 mil matriculados na 1ª série, verificou índices alarmantes de evasão. Dêsse total, conservaram-se na escola menos de um ano, 104 mil crianças; apenas um ano, 506 mil; dois anos, 152 mil; três anos, 111 mil, quatro anos, 143 mil; cinco anos, 125 mil; seis anos, 49 mil e, sete anos, 10 mil. Êsses dados oferecem a oportunidade de constatar que estamos educando realmente o grupo que permanece na escola 4 anos e mais, ou seja, menos de ¼ de cada geração. Só êsse grupo atinge nível cultural razoável para ajudar a conduzir a civilização semitecnológica que possuímos. Os demais saíram, da escola mal sabendo ler e escrever. E, de acôrdo com a opinião do Prof. Anísio Teixeira, passam a ser elementos piores do que os próprios analfabetos. Diz o diretor do INEP, comentando êsses dados: "Na verdade, a escola não os educou, mas deu-lhes certa predileção por atividades mais brandas e fáceis e certa indisposição pedante por trabalhos braçais ou manuais. São êles que constituem essa grande massa de operários semi-alfabetizados que desejam ser funcionários públicos e que integram, em grande parte, o quadro subalterno das funções públicas como serventuários, que são maus trabalhadores manuais e ainda piores servidores de escritório".

MUNICIPALIZEMOS O ENSINO

O diretor do Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos tem soluções próprias para essa crise. Uma delas é a da municipalização do ensino primário, que é sem dúvida o mais importante, já que o secundário, principalmente com os programas atuais, representa, no conjunto da realidade brasileira, direito apenas de uma classe de privilegiados. A educação primária já se distribui, no País, por mais de 70 mil unidades, com cêrca de 140 mil professôres, abrigando cêrca de 4 milhões de crianças, e custando à Nação cifra que não é inferior a 3 bilhões de cruzeiros. A realidade, porém, não é tão animadora quanto parece, pelos números, porque os alunos não se conservam na escola, em média, mais do que 2 anos e meio. E a escola, com a matrícula em muito superior à sua capacidade, divide-se em turnos, oferecendo ao aluno meio dia escolar, com a conseqüente redução do programa. Sofre ainda a escola uma administração centralizada e rígida, que lhe dificulta a adaptação a condições cada vez mais difíceis de funcionamento. É daí que parte raciocínio do Prof. Anísio Teixeira. Argumenta êle que, por outro lado, o professor, integrado em quadro único pertencente a todo o Estado, desligou-se da escola, para pertencer às Secretaria de Educação, onde vive uma competição dolorosa por promoções, remoções e comissões, que se fazem o objetivo da profissão. Com êsse professorado extremamente móvel e as matrículas duplicadas ou triplicadas, a escola entra a funcionar por sessões, como os cinemas, e a se fazer cada vez menos educativa, por isso mesmo que sem continuidade nem seqüência. É, além disso, incerta e instável.

Perde, assim, a escola primária, a função característica de ser a grande escola comum da Nação, a escola de acesso, preparatória ao ginásio. A solução inicial - acha o professor - é a descentralziação. Considera êle que devemos fazer a escola local, com administração local, programa local e professor local. A reforma educacional que êle preconiza é, assim, uma reforma política, pela qual se criem nos Municípios os órgãos próprios para gerir os fundos municipais de educação e os seus modestos mas vigorosos sistema educacionais. Seu esquema dá ao Município as escolas locais, primárias e médias, com professor vivendo no meio e recebendo os salários do meio; ao Estado, as escolas médias, superiores e profissionais, exercendo e sofrendo a influência das escolas municipais e detendo o poder de formar o magistério primário; e à União o sistema federal supletivo de escolas superiores, escolas primárias e médias de demonstração, órgãos de pesquisa educacional e o poder de regulamentar as profissões. A escola primária municipal teria seis séries e seu programa adaptado às exigências locais, menos intelectualísticas do que práticas. Escola que ministraria uma educação de base, capaz de habilitar o homem ao trabalho, nas suas formas mais comuns.

Segundo o Professor Anísio Teixeira, não há outro meio possível de conseguir-se atenuar a crise que solapa o nosso ensino, particularmente o primário. Tem êle estudos que comprovam a absoluta viabilidade de tal sistema, permitindo a expansão do sistema escolar, pràticamente sem que se aumentem as verbas ora consagradas à educação, através de execução disciplinada.

AUMENTAM OS ANALFABETOS

Desde o Império, o problema do analfabetismo vem desafiando a capacidade administrativa dos nossos governantes. E não há dúvida de que alguns dêles têm realizado alguma coisa, no campo educacional. Parece-nos, porém, que essas realizações pouco têm fugido à simples teoria, sem qualquer repercussão realmente digna de nota, no terreno prático. É fácil verificar, por exemplo, que a despeito do aumento do número de escolas e de professôres, a despeito da Campanha de Alfabetização de Adultos, e de alguns decretos, o Brasil está vendo aumentar progressivamente o número de seus analfabetos. Nada pode haver de mais desanimador, mas é a pura verdade. Em reportagem recentemente publicada nesta mesma revista, o repórter Ubiratan de Lemos referiu dados do IBGE, segundo os quais tínhamos, em 1900, 9.750.000 habitantes de mais de 15 anos, dos quais 3.380.000 eram alfabetizados e 6.370.000 analfabetos. Em 1950, 14.900.000 eram alfabetizados e 15.350.000 analfabetos. Por conseguinte, diminuímos a percentagem de analfabetos de 65% para 51%, em cinqüenta anos, mas em números absolutos, passamos a ter mais do dôbro de analfabetos. A situação tornou-se muito pior em 1950, portanto, do que em 1900.

Outros dados estatísticos, se por um lado oferecem alguns aspectos positivos, como o incremento da alfabetização feminina, especialmente nas idades juvenis, por outro revelam até um retrocesso. É o caso, por exemplo, da alfabetização infantil, que se ressente de considerável lentidão. Nesse particular, entre os recenseamentos de 1940 e 1950, aumentamos não apenas o número absoluto, mas também a percentagem de analfabetos. A percentagem de alfabetização entre as crianças de 5 a 12 anos era, no Censo de 1940, 13,80%. No de 1950, baixou para 13,02%. Nesse último ano, a população infantil (entre 5 e 9 anos) abrangia 7 milhões de crianças, dos quais 5 milhões viviam no quadro rural, onde a média nacional de alfabetização era inferior a 7%, descendo a menos de 4% nos Estados do Nordeste.

Nos dados gerais relativos à alfabetização da população de menos de 15 anos, todavia, é que mais se comprova o nosso atraso, especialmente atraso da escola primária, que não vem dando conta da sua tarefa. De um total de 8.957.275 crianças entre 8 e 15 anos, eram analfabetos, de acôrdo com o último Censo, 5.527.883, o que dá uma percentagem de alfabetização de apenas 38,2%. Em outras palavras e números redondos: numa população por alfabertizar de 8.950.000, conseguimos alfabetizar apenas 3.400.000. Estamos, portanto, a aumentar o analfabetismo no Brasil e não a reduzí-lo, a despeito do aparente crescimento vegetativo das escolas. E aparente porque, em face do crescimento da população, estamos a congestionar as escolas, e não a aumentá-las, estamos a reduzir o ensino, e não a incrementá-lo.

Se isto não basta para provar a estagnação do ensino (o primário principalmente), tomemos a percentagem do corpo docente, diplomado por escolas normais: tínhamos, em 1933, 53.000 professôres, dos quais 57,8% diplomados. Vinte anos depois, em 1953, os docentes eram 134.000, dos quais apenas 53% diplomados.

É com base em dados como êsses que o Professor Anísio Teixeira decreta, como vimos linhas acima, a franca deterioração, a verdadeira falência do ensino primário, com a exacerbação do caráter seletivo da educação, no seu vêzo de preparar alguns privilegiados, para o gôzo das vantagens de classe e não o homem comum, para a sua emancipação pelo trabalho produtivo.

FAÇAMOS ALGUMA COISA

Todavia, não é justo, lógico ou patriótico, que esperemos ação exclusivamente de parte dos poderes públicos. A tarefa é grande demais para ficar restrita às repartições. É preciso que todos nós, brasileiros, façamos alguma coisa. A iniciativa particular, por vêzes abnegadamente, tem operado verdadeiros milagres. Confiemos a nós mesmos a missão de evitar que continue a engrossar a legião de analfabetos, envergonhando o País. É facílimo calcular o resultado que se poderia obter, se cada cidadão alfabetizado ensinasse a ler um analfabeto. É isso o que pedimos, amigo leitor.

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