RIOS, Cruz. Reminiscência. A Tarde. Salvador, 18 jul. 2000.

Reminiscência

Cruz Rios

Agora, quando parece já haver terminado o ciclo de justas comemorações do centenário de Anísio Teixeira, despertou-se-me a vontade de rememorar os meus encontros com ele.

Quando Octávio Mangabeira governou a Bahia, eu era diretor do Departamento de Serviço Público. Dirigi-lhe duas cartas, logo após a sua posse, com pedidos de exoneração. Não tive resposta. Passados alguns dias recebi de Epaminondas Berbert de Castro, secretário do governo, um ofício comunicando-me o dia da semana e a hora em que seria recebido pelo governador para despacho. Era a resposta às duas cartas, quando já admitia intimamente que o DSP fosse extinguido por ser um órgão remenescente da ditadura de Vargas (o "estado novo") e combatido acirradamente pelo secretariado. O ofício de Epaminondas foi uma grande surpresa e me deixou a impressão de que o governador via no Departamento um instrumento através do qual poderia exercer controle pessoal do serviço público. Para livrá-lo de qualquer constrangimento escrevi e lhe ofereci um trabalho sobre o Dasp, demonstrando não ser uma originalidade do "estado novo", e sim uma cópia fiel do Civil Service dos Estados Unidos, que a ditadura de Vargas implantara no Brasil para afastar da influência da política partidária o serviço público. O fato, porém, é que, apesar de toda a indisposição do secretariado com o DSP, o governador o manteve e o prestigiou.

Certo dia o secretário com o qual ainda não havia tido qualquer contato, Anísio Teixeira, telefonou-me:

- Dr. Cruz Rios, preciso falar com o senhor.

- Estou as suas ordens à hora que o senhor desejar.

- Então eu aguardo o senhor.

- Dr. Anísio, a distância é a mesma e o departamento não tem carro.

- Porei o meu carro à sua disposição.

Resolvido o impasse com a explicação de que habitualmente ele encerrava o expediente entrando pela noite e posto o carro à minha disposição, resolvi atendê-lo. Logo que cheguei à Secretaria fui conduzido ao gabinete, onde o encontrei despachando com uma senhora que atendia a sua curiosidade informando-o sobre o gasto semanal de arroz, feijão, farinha, carne, açúcar etc. Supus ser a empregada de sua residência. Enganava-me. Depois de completar a lista de gêneros alimentícios, a sua exclamação: "Um absurdo! Pelo que eu vejo, os loucos estão comendo mais açúcar do que feijão".

Foi quando então percebi que a mulher que o informava devia ser a dispenseira do Hospital Juliano Moreira.

Dispensada a dispenseira, atendeu-me com uma exclamação inesperada: "Dr. Cruz Rios, o senhor acabou com o professorado!"

- É o, senhor a primeira pessoa que me diz isso. Quem lhe deu essa informação?

Convencido de que o enganaram, informando-o que professoras do interior haviam sido removidas para a capital pelo DSP, revoltou-se contra o informante na minha presença e aceitou o meu convite para visitar e conhecer o DSP, o que fez poucos dias depois, tornando-se daí então em diante um denfesor do Departamento nos despachos coletivos do secretariado.

Anos depois fui nomeado consultor jurídico da sua secretaria, quando ele se empenhava por desocupar a área onde foi contruída a Escola Parque Carneiro Ribeiro e eu descobri no Patrimônio Municipal que a área pertencia à Prefeitura e havia sido invadida quando, ao recebê-la em reversão gratuita da antiga Companhia de Água do Queimado, nela não se empossara, deixando que a invadissem. Resolvido o problema, nela ergueu Anísio uma obra de repercussão internacional, para dar execução a uma de suas idéias luminosas: a escola de tempo integral, na qual a criança, além das matérias do currículo escolar, aprendia artes e ofícios, alimentava-se, praticava esportes, dando-lhe o nome de outro grande educador baiano. De outros países vieram à Bahia sociólogos, pedagogos, autoridades para conhecê-la e nela se inspirarem para reproduzi-la em seus países.

Mas, vejam os leitores as voltas que o mundo dá. Tempos depois o encontrei no Ministério da Educação e Saúde, quando ministro o meu chefe, mestre, amigo e compadre - Simões Filho, que certa feita me disse: "Com o Anísio na Educação e (salvo engano) o Arlindo de Assis na Saúde, estou tranqüilo. Além de um fascinado pela inteligência ele respeitava como ninguém o aforismo inglês the right man in the right place, o homem certo no lugar certo.

Anísio Teixeira foi uma dessas raras cerebrações cuja perda constitui grave desfalque não apenas para o seu país, também para a cultura universal.

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