GROSSI, Esther Pillar. A natureza que se faz arte. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 jul. 2000. Caderno Opinião, p.9.

A natureza que se faz arte

Esther Pillar Grossi

Democracia e educação embebidas em compromisso apaixonado são as palavras expressivas com as quais inicio, emocionada e reverente, uma homengaem ao poeta da ação que foi Anísio Teixeira. É uma alegria festejar o nascimento desse brasileiro que tanto contribuiu para nos enriquecer como nação.

Anísio foi uma pessoa inteira, conforme tantos depoimentos dos que com ele conviveram. Dos múltiplos aspectos que o caracterizaram, vale a pena enfatizar, de modo muito particular, o grande mérito de ter sido ele o primeiro compatriota que associou ciência a educação. Foi Anísio, entre nós, quem, por primeira vez, pensou e fez educação com sólidas bases teóricas. Ele as explicitou e as forjou a partir das idéias de John Dewey, filósofo pragmatista americano, de consistência científica reconhecida. Esse é um dos seus mais notáveis méritos porque, conforme Paulo Freire, atrás de toda prática há sempre uma teoria, mesmo que esta não seja explicitada. E nada é mais ineficaz do que uma prática apoiada em teoria fraca ou incoerente.

Tomando o fio e a rede do equilibrista como metáfora ilustrativa dos vínculos entre prática e teoria, a prática ilustrativa dos vínculos entre prática e teoria, a prática é a façanha corajosa de quem se aventura a caminhar sobre um fio e a teoria é a rede que protege o equilibrista nas suas inevitáveis quedas, sendo a rede, nada mais nada menos, do que uma especial reunião de fios. Não simplesmente um feixe de fios, mas uma reunião de fios articulados na trama e na urdidura, da qual resulta um tecido. A teoria é a garantia e o aval da prática. A teoria é o fundo que permite à figura aparecer. A teoria é o alicerce que assegura a firmeza do edifício, construído com as múltiplas práticas que a vida nos exige. A importância da teoria é enorme, em todas as circunstâncias das nossas tentativas de compreender e explorar a realidade, mas ela é particularmente importante quando se trata de educação. Pior do que teoria superada ou superável é teoria inconsciente, teoria mal articulada, tecida com fios incompatíveis. Neste momento, uma das mais graves lacunas do ensino brasileiro é a fragilidade dos modelos teóricos que o sustentam; por isso, a lembrança, o aprofundamento e o elogio do que fez e elaborou Anísio Teixeira são por demais oportunos e úteis.

Que esta homenagem ultrapasse a louvação para lá de merecida, aos 100 anos de nascimento de Anísio - que se comemoram hoje -, mas que frutifique em conseqüências práticas e palpáveis em favor de nosso ensino, infelizmente ainda tão parecido com aquele do seu tempo, que tanto o ocupava e preocupava, apaixonada e obstinadamente.

Na trilha de suas opções científicas, há um aspecto da vida de Anísio que teve e tem enorme importância para a revisão de um direcionamento enviesado que ainda persiste na perspectiva dos objetivos educacionais no Brasil. Foi a "sua libertação das certezas definitivas da fé católica, não porque houvesse adquirido novas certezas também definitivas, mas porque aprendera um processo, um método diferente de pensar e de colocar problemas". "Só a busca é interessante - escreveu Anísio Teixeira a Lobato -, o achado é sempre pobre, incompleto e infeliz".

A associação indevida entre educação e religião pesa sobre nós ainda de forma sutil e velada, mas muito vigorosa. Ela nos vem, conforme afirmou o próprio Anísio, "da força militante da fé católica de que as nações ibéricas se fizeram o maior sustentáculo, a partir de seu esplendor, o qual se constituiu sob o poder papal. Este fato transformou a colonização em extraordinária experiência educacional." Colonização e catequese marcharam lado a lado. E Anísio, que se recusou a tornar-se comunista, por ver aí uma outra via de dogmatismo, não se contagiou pela repetição do viés católico, quando comunistas também usaram a educação como endoutrinação esquerdista, caindo exatamente no que Anísio tanto criticava - a educação para as certezas e não para a busca. Entender educação, como o fez Anísio, como base e sustentáculo da democracia, porque capaz de gerar o sujeito comprometido com a busca, não entra nos parâmetros estreitos da associação profunda da educação e endoutrinação para algum lado, qualquer que ele seja.

Para melhor sentir saudade de Anísio Teixeira, no centenário do seu nascimento, vale a pena ouvi-lo poeta em sua marginal definição: "Educação é a natureza que se faz arte".

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