TEIXEIRA, Anísio. Carta a Paulo Duarte Guimarães, Rio de Janeiro, 5 set. 1969.
Localização do documento: Arquivo privado - Paulo Duarte Guimarães.

Rio, 5 de set. de 1969

Carissimo Paulo: julguei não lhe terem chegado às mãos os meus esboços de tradução do capítulo primeiro do Fim da Utopia, do Marcuse. A sua carta agora me confirmou havê-la recebido. Reconheço que Marcuse torna as cousas mais dificeis do que o necessario. Afinal é alemão e V., não sei se se recorda de que se conta haver Kant ficado deslumbrado com a clareza do seu proprio pensamento ao lêr a tradução dos seus livros em francês. Não traduzi o livro todo, pois logo soube que ia ser editado por outro editor, que não a Companhia Editora Nacional. Mas, traduzi os dois primeiros capitulos, de que lhe envio copia, para ver V. se está menos germanica. Acho que Marcuse abre uma clareira no dogmatismo comunista., de que não reputo Marx completamente responsavel. O segundo dogmatismo é o do conservadorismo. Temos de reabrir o caminho para uma reconstrução que se possa acompanhar sem ser preciso aceitar a inevitabilidade da violencia total. Com isto, retardariamos a reconstrução por dezenas de anos, se não séculos…
Não sei de contradição maior do que a dos regimes socialistas não chegarem a uma cultura socialista - cultura concebida como modo de pensar, sentir, agir e mudar, até atingir o reino da liberdade, que não é o de brigar, mas o de ser bom e feliz, que é o fim do homem: a bôa sociedade e não a grande, ou espetacular, ou poderosa, ou infinitamente destrutiva…Vamos decidir isto nesse fim de seculo, se não escolhermos a catastrofe final.
Deixemos, porem, essa conversa sem fim e vamos às noticias pessoais. Ando pensando em ir ai para vê-lo, primeiro,mas depois para um check-up. A saude está em seu combate com a velhice e sem achaques. Voltaram-me as dores de cabeça, que aliás sempre tive quando moço. Tanta cousa da infancia volta com a velhice, que não acho completamente absurda minha suposição. Mas não fiquei nisto: estou vendo se não são os olhos. O exame de fundo de olho deu sem novidade maior, tendo em vista a idade. Não sei até que ponto este julgamento é preciso. Estou fazendo experiencias com oculos varilux.. Deve conhecer que são oculos multifocais, exigindo adaptação dificil, que não consegui ainda. Exame de sangue para glicose, urea e colesterol, normal. A realidade é que ando nervoso, com as dores de cabeça pela manhã e, mais ou menos, sempre presentes. E no trabalho, certa insegurança e lentidão que não conhecia. A memoria, coitadinha, aos pandarecos, sobretudo para o presente e para os nomes. Alem disto, uma certa angustia em relação a compromissos e coisas marcadas a fazer. Creio que muito disto é velhice, mas custa-me aceitar. Perdoe-me essa choramingada. E vocês ai? E o nosso Nestor? Vivemos tempos dificeis, mas é preciso continuar a ter o gôsto de viver, pois, sem esse gôsto, parece inevitavel o aparecimento do gôsto pela morte, que, talvez, não fosse absurdo, mas tem suas inconveniencias… Em meio a tudo isto, a festa dos netos, sobretudo as duas da Maria Helena e de Marta - uma sua, outra minha - as ultimas. Estão uns sonhos! Que as espera nessas terriveis decadas que estamos vivendo? Enfim, Paulo, saudades, lembranças e a certeza de que, se ainda viajar, será para ir vê-lo e debatermos juntos todos esses problemas. Seu velho

Anísio

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