TEIXEIRA, Anísio. Carta a Paulo Duarte Guimarães, Nova Iorque, 10 nov. 1964.
Localização do documento: Arquivo privado - Paulo Duarte Guimarães

Nov.10, 1964.

Meu caríssimo Paulo: foi uma alegria hoje receber a sua carta tão amiga e tão generosa como sempre! Cada vez sinto mais que nada mais somos do que circunstancia e quando vejo pessoas como você tomar a sério o objeto - porque não somos o sujeito mas o objeto - da circunstancia, não consigo esconder o agradavel calôr humano que isso me traz. Confesso que ao vê-lo tão generoso comigo, lembro-me de sua irmã Helena, que, certa vez, como a louvasse ou louvasse alguém, disse-me: "Viva com ele…" O ditado é o de que não se conhece alguém sinão depois de comer junto com esse alguém uma saca de farinha…
O outro lado dessa análise é a de que só a amizade consegue ser uma relação afetiva sem conflito. É Montaigne, se não me engano, quem melhor escreveu a respeito. Graças a essa amizade escreve-me V. as cousas agradáveis da sua carta.
Confesso que já pensei não em romance mas em memórias ou cousa parecida, mas, parece-me que nada disto pode ser planejado. Teria que ser escrito au-jour-le-jour, como um diário, talvez, por aquele mesmo motivo de que somos contingencia e circunstancia e só em cada contingencia ou circunstancias seriamos nós mesmos… De maneira que a oportunidade passou …
Quanto às suas perguntas como vivo? que faço? que sinto? que vejo?, V. há de concordar que é muito perguntar e não será numa carta que lhe posso responder. Esta super-organização lembra um hotel, em que o hóspede, tendo com que pagar, vive como num paraíso, pelo menos material. Nada lhe falta de substancial. Mas uma cousa é o hotel e outra o hóspede. O hóspede, por isto mesmo que está com quasi todos os seus problemas materiais resolvidos, entra a se aborrecer e achar péssima a vida de hotel. É verdade que nem todos. Muitos aceitam e passeiam o seu aborrecimento pelo hotel até com um certo orgulho. Lembra-se do Jacinto do Eça enfarado com Paris e sonhando com a aldeia de Portugal? Há por aqui milhões e milhões de Jacintos. Acho que os que acodem ao apêlo do Peace Corps e vão passar um ano em Petrolina, Januaria ou Pita Arcado a 50 dolares por mes são Jacintos daqui. O fato é que ter problemas materiais resolvidos não é nenhuma completa bênção. Aliás já sabiamos disto com a historia dos ricos em todo o mundo. Por outro lado, contudo, é só depois dessa solução dos problemas materiais, que o problema do homem se põe por inteiro e que ser bom ou ser ruim, ser são ou ser doente, realmente conta. Aqui, tanto quanto posso ver, esse problema material está substancialmente resolvido. Agora é que vamos ver como o homem se comporta - a massa dos homens - depois de achada essa solução. Se o Goldwater vencesse, teriamos que dizer: a riqueza e a abundancia enlouquecem tanto quanto o desespero da pobreza. Como lhe responderam com certa eloquencia, vamos a ver se o americano realmente perdeu o medo e pode constituir-se um exemplo de saudavel e generosa independencia, aberto para todo o mundo, confiante e alegre. Não há ainda sinais disto mas quem sabe?
Acabo de receber um telefonema do Instituto e devo encerrar esta. Fiquei numa pequena parte da resposta. A segunda parte seria a do game da humildade necessaria para o homem ser qualquer cousa que se parecesse com feliz! E ai, voltaria às crianças e às circunstancias. As crianças são felizes porque se satisfazem com as circunstancias. Temos que ser como elas. Aceitar que o mundo é um play-ground e nós, as crianças desse play-ground, a viver cada momento conforme o que pedir cada momento, ligados ao mundo e não a nós proprios. Fomos jogados no mundo mas também podemos dizer: fomos dados ao mundo e nosso devêr é viver bem com ele, sem encarecer nossa dadiva, nem pedir nenhum pagamento. Para tudo isto precisamos esquecer-nos de nós mesmos e nos encontrarmos!… Tão simples e tão dificil. Adeus, querido Paulo. Mil saudades do seu

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