TEIXEIRA, Anísio. Carta a Paulo Duarte Guimarães, Rio de Janeiro, 13 ago. 1964.
Localização do documento: Arquivo privado - Paulo Duarte Guimarães

 

Rio, Agosto 13, 64

Caríssimo Paulo - recebi hoje sua carta tão terrivelmente indignada. Nem mereço eu seu juízo tão generoso, nem os pobres fatos brasileiros tanta cólera. Confesso que também me surpreendi com o panico da direita brasileira. Nunca imaginei que houvesse tanto mêdo às mudanças que estão ocorrendo e que continuarão a ocorrer em nossa sociedade com a crescente participação do chamado povo - que é a população do seculo XIX.. Pensava que como tudo isto era velho, não seria possível esse novo mêdo nas alturas de 1964. Não tinha, porém, razão. O mêdo é do mesmo genero do das populações brancas do sul dos EEUU em relação à definitiva integração racial. Somos, devido nosso atrazo, uma sociedade culpada, como culpada é a sociedade americana. E a culpa produz insegurança e esta leva até ao desespero. Cumpre notar, entretanto, que o estilo brasileiro é mantido: uma permanente ambiguidade, para não dizer farsa. Até em nossa raiva não somos serios. Pirraçamos em vez de castigar. Não lhe parece?

Mas se V. alargar o debate e tomar um pouco conhecimento do que vem acontecendo desde que começou a civilização industrial, a crise brasileira fica muito mais clara. Isso tudo parece muito com o que sucedeu em 1848, com as revoluções populares na Europa. Também então o susto foi espetacular e o resultado uma reviravolta direitista que durou pelo menos até 1870 si não até 1914. Por isto mesmo, inclino-me a pensar que o movimento direitista irá durar por essas bandas da América do Sul. Posso estar enganado, pois aqui tudo é diferente, mas será melhor pensarmos que vai durar e temos de mudar os metodos de combate, saindo de frustras tentativas de ação para esforços sérios de esclarecimento. Há que refazer, no Brasil, a fase de crítica com que contou a Europa durante o seu período de conservadorismo. A chamada "ascensão das massas" traz um veradeiro perigo de anarquia. Melhor diria: um assustador perigo de anarquia. A correção, contudo, não é a repressão mas a cultura. Macaulay dizia: precisamos educar os nossos senhores, significando a massa. Se vamos ter uma sociedade de todos - não gosto de usar o termo equívoco de massa - precisamos de cultura para todos a fim de que a participação não seja negativa ou de revolta mas de integração. É claro que isto não se deu ainda nem siquer nos países desenvolvidos, onde ainda as próprias classes trabalhadoras mantêm uma atitude antes defensiva do que integrativa. Mas o avanço é muito maior que o nosso.

Não é possível contudo esquecer que a sociedade humana já foi mais feliz do que no nosso período de cultura em transição. Nunca fomos tão fragmentados, nunca estivemos em essência tão impregnados de guerra intestina (melhor designação do que a de guerra civil) e o que vimos sofrendo é resultado dessas divisões e contradições. Isso nos leva - o que julgo certo - a ver a situação brasileira como sintomática e buscar as causas mais profundamente.

Esta carta somente vale alguma cousa para lhe mostrar como estou fugindo de me deixar envolver no emocionalismo de uma situação como a nossa no Brasil. Aprendi com o velho Sócrates que a vida sem exame não é digna de ser vivida. Sou um apaixonado heterodoxo e é natural que viva desconfortavelmente em um período de ortodoxia. Mas, por outro lado, sou um pouco provocante em meu modo de ser. E muita cousa é aceita se não a dissermos em estilo provocativo. Tenho muitos companheiros mais importantes no passado com esse mesmo estilo. O que é fato é que não sou ainda aceito pela sociedade brasileira. Para se ser mesmo aceito, aceito no duro, é preciso que V. conte com a aprovação de três forças - o soldado e o padre. Acrescento hoje uma terceira: Portugal. Alguns de nós consegue ser aceito - mais ou menos aceito com qualquer uma delas. Até Portugal sozinho vale. Se V. for aceito, então terá independencia até para dizer cousas que só os não aceitos dizem. Ora, eu não conto com nenhuma delas. E muito satisfeito estou com isso. Mas tenho de sofrer as consequencias.

Nas alturas do tempo da minha vida, confesso-lhe que o que me vem sucedendo tem importancia muito secundaria. Estou mais aflito com os mais moços e … com o país. Quantos anos ainda levaremos nisto? Mathew Arnold, ou talvez seu pai Thomas, fala em algum ponto da "hectic of disease" de uma especie de civilização e do "bloom of health" de outra. Estamos na civilização doente. Quando voltaremos ao "esplendor da saude". Fiquei assombrado com a facilidade com que se pode fechar uma sociedade, como se fechou a nossa… Enfim, Paulo, perdoe-me essas tiradas um tanto pernosticas. Está sendo isto o meu modo de reagir, aos 64 anos. Ante-ontem foi aniversário de Roberto. Pensei em telegrafar. Mas o habito antigo de mais pensar em Roberto do que falar-lhe levou vantagem. Diga-lhe que seu silencioso padrinho pensa muito nele. Maria Helena está às voltas com o seu problema de trabalhar e fixar-se. Vamos ver o que se consegue.

Um abraço do irmão de sempre

Anísio

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