TEIXEIRA, Anísio. Carta a Paulo Duarte Guimarães, Rio de Janeiro, 8 jun. 1969.
Localização do documento: Arquivo privado - Paulo Duarte Guimarães

Rio, 8. 6. 69

Carissimo Paulo: a sua carta, trazida por Lourdes, cá está em minha mesa, lida e relida, e sem resposta. É que andamos todos esperando revê-lo, com a sua vinda para revêr a neta e voltar com Lourdes. Parece, entretanto, que não lhe foi possivel deixar a Bahia.
Não estou, como diz V., desengatilhado com a caneta, mas ando sem animo para cartas, tanto era o que se teria de escrever. Cada vez mais me convenço de que estamos em uma daquelas grandes crises da cultura, que não nos mudam apenas habitos, mas a propria alma, o proprio modo de ser. A passagem da idade media para a idade moderna foi uma dessas crises: a renascença foi, então, o periodo intermediario., que começou com o século passado, e está a se findar. A vantagem do periodo intermediario é que se pode viver misturado entre a cultura velha e a nova que se vem formando. Ao encerrar-se a transição, isso fica muito mais dificil. E ai é que estamos. Sinto-me como um homem moderno, inteiramente obsoleto, diante do homem da era eletronica, em caminho para o universalismo de sua nova tribu planetaria. Saimos da tribu local da idade media, para o individualismo das culturas nacionais, e agora reingressamos no tribal, mas este não é local, mas planetario, e nacionalismo e individualismo estão ameaçados pela enorme aldeia mundial. A comunicação por satelite nos põe em contacto com o distante e destrói o perto, o vizinho, o "proximo". O universalismo medieval era de idéias, da inteligencia; agora o universal é o panfleto, o jornaleco da televisão, a moda, a noticia, o rumôr - tudo que, antes, era o mais particular, o mais proximo, o mais imediato, o mais "local" … Aonde nos levará tudo isto, meu caro Paulo? Estou perdido no [?] dessa nova "comunicação" apenas com o ausente, o longinquo, a "noticia", que, como sabe, é sempre a má noticia…
O refugio unico é a vida privada. Mas esta faz-se cada vez mais dificil. O recurso nos paises ricos é a fuga para o "suburbio", com sua população pequena e homogenea pela seleção e discriminação social. O que antes era "classe", hoje é "suburbio"…é o pequeno grupo de vizinhos congeniais, em contato com o mundo pela eletronica . O suburbio é a replica hoje do "mosteiro" medieval . É a maneira de escapar à metropole que se fez a unica forma de cidade. A febre que há hoje pelo turismo é uma febre para escapar a tudo isto e revêr o "local", que é o passado, que é o "ontem" ainda sobrevivente na Europa, a sede da "cultura moderna" moribunda. Sei que tudo isso é mudança, é transição, mas para algo de imprevisto, para o "formigueiro" humano, com sua grande vida "organica" e coletiva, mas sem alma, sem o individuo, sem ideia nem fins, mas apenas meios, meios, meios…
Era para não fazer cartas desse tipo, que ando sem gosto por cartas. Sei que se pode olhar para tudo isto com "otimismo", mas esse otimismo é a eterna fuga do homem para alguma ilusão que o console. Tambem eu fujo sempre que posso. Mas hoje estou nos meus dias negros e a pensar se todo esse admiravel seculo XIX não foi a ultima luta do homem pelo racional. E hoje, tudo que nos resta é a colmeia, ou o formigueiro, ou o "extraordinario mundo novo" de Huxley. Quem se irá aproveitar do "mel" da colmeia, ou dos "fungos" do formigueiro? Será que a especie irá criar o super-homem de Nietzche, ou da ficção espacial, como a nova variedade humana do futuro?
Não irei continuar. Perdoe-me tudo isto. Queria apenas responder sua carta e saiu-me isto. Não sei mais escrever cartas e, por isto mesmo, mando-lhe o recorte de uma carta do Carlos Drummond ao seu compadre. Era uma carta assim que gostaria de lhe escrever. Mas desaprendi o sorriso… E, talvez, a vida somente valha um sorriso…Seu velho de sempre

Anísio

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