TEIXEIRA, Anísio. Carta a Anna Spínola Teixeira e Deocleciano Pires Teixeira, Caetité, 25 mar. 1920.
Carta publicada sob o título "Carta aos Pais". In: ROCHA, João Augusto de Lima et alii. Anísio em movimento: a vida e as lutas de Anísio Teixeira pela escola pública e pela cultura no Brasil. Salvador: Fundação Anísio Teixeira, 1992. p.226.


Caetité, 25 de março de 1920
Sexta-feira Santa


Meus Queridos Pais:

Entendi que não devia partir para o Rio sem vos deixar antes, em uma ou duas páginas de bloco, todas as razões por que tomei a resolução firme de entrar para a Companhia de Jesus e que, em conversa, não tive a sorte de expender muito claramente.
Cristão pela graça de Deus, tive a felicidade de, desde cedo, ser educado em colégios católicos, que me souberam imprimir um grande amor à minha religião. Com os anos, à proporção que crescia dentro de mim este amor, crescia-me, também, a experiência e a justa visão das coisas. E foi indescritível a minha desolação ao perceber o menosprezo com que a maioria dos homens, considerava esta religião, única verdadeira e de onde os afastava uma educação racionalista e falsa.
Ao mesmo tempo, de outro lado, observava o franco movimento de ressurgimento, já no século XIX tão pronunciado e que a formidável intervenção da guerra vinha apressar neste angustiado século XX. As leituras me iniciaram ainda mais na grandeza deste movimento, que é a última cruzada, cruzada branca, de paz e de luz e que virá de novo conquistar o mundo aos ensinamentos divinos de Jesus.
E se foi de profunda tristeza o primeiro espetáculo, a aurora que já entrevia de um mundo novo, reabilitado perante a sua própria consciência, forte, virtuoso, fiel a Deus, cristão enfim, trouxe-me a alma um salutar entusiasmo de moço e uma irreprimível aspiração de me fazer apóstolo deste grandioso movimento de idéias que iria restaurar o mundo.
De logo não pude mais compreender a vida como a luta pelas pequenas ambições materiais dos homens.
Compreendia-a como a luta por este ideal superior da Verdade e do Bem. E já me via na imaginação de um novo apóstolo de Jesus, pregando suas idéias e seu amor e espalhando, em volta de mim, o conforto sagrado da religião. A razão viria, porém, cortar os sonhos do meu entusiasmo. O ideal ficaria o mesmo, mas, as aspirações muito menores. Nunca teria o talento e as qualidades pessoais necessárias para o papel que sonhava. Com o meu acanhamento, as minhas inaptidões absolutas para falar em público e uma natureza no fundo muito desanimada - as minhas ambições de apóstolo, que antes de tudo um lutador - eram quase ridículas. Então veio-me a idéia de trabalhar de sociedade, já que via a minha incapacidade. E nestes numerosos exércitos, que lutam pela Igreja, nenhum me fascinava mais que a Companhia de Jesus da qual, além de conhecer muitos membros, tive, incidentemente, em alguns estudos ocasião de ler a história estupenda feita de um batalhar contínuo, de inenarráveis sacrifícios e de grandes vitórias. Eu sabia, porém, o que era ser jesuíta. Era deixar o mundo, era desprezar até as mais inocentes aspirações que alimentamos e era, sobretudo, abandonar a família, as consolações da amizade e do afeto. Era nunca, talvez, mais vêr meus pais, meus irmãos, meus amigos… E por muito tempo esta idéia flutuou à superfície de minha alma, sem que ela a pudesse aceitar. Foi quando caiu-me nas mãos um precioso livrinho francês L’Idée Réparatrice. Nenhum outro livro me soube fazer conhecer, tão a fundo, a essência mesma da doutrina de Jesus, que este. E eu vi como o que o Divino Mestre exigia dos homens - era a renúncia a si mesmo, a abnegação, o amor ao próximo, o sofrimento, a reparação, enfim. Reparar-se é completar a sua Obra, é completar a Redenção, é sofrer pelos que não sofrem, amar pelos que não amam. E aquela minha primeira impressão, ainda da meninice, de desolação pelo abandono em que vive a religião voltou-me. E a idéia de que eu podia pela minha dedicação, reparar, este doloroso estado fez-me refletir por muitos meses.
Agora compreendia a utilidade do sacrifício e do sofrimento. A idéia que poderia aplicá-los, por todos os meios, cuja sorte lamentar-se, sobremodo me confortava. Quase que desejava estes sacrifícios e sofrimentos… eles seriam minha riqueza e meu tesouro; e eu distribuiria largamente por todos que amasse! Parece, que Deus me esclareceria, para poder transpôr com convicção a única barreira que encontrava para a Companhia de Jesus: o afastamento da família. Daí em diante, de fato, embora nada me diminuísse o custo com que iria cumprir este sacrifício, que - relevem-me a imodéstia - chamo imenso, nenhuma só vez mais tive em minha consciência a veleidade de recuar.
Eis como nasceu em mim e se firmou a vocação religiosa. Nada tem de extraordinário. Nada de sobrenatural. É simples, é razoável, é lógica. Mas, não quero terminar sem mais algumas palavras. O que contei aí em cima é a gênese geral, sem particularidades de minha resolução. Não saberíeis quanto seriam persuasivas as mil e uma circustâncias que rodearam estes longos meses de demorada reflexão.
Mas, nem me sobra tempo nem memória para exará-los todos. Apenas apontarei algumas observações que me auxiliaram na resolução.
Em primeiro lugar o meu caráter superlativamente acanhado que de todo me anularia na vida pública e que parece feito de molde a servir sob uma direção. A minha tendência ao desânimo e ao desalento de que me salvaria o espírito de disciplina e obediência da Companhia. Depois, ainda, a minha negação para qualquer outro estado, o que o caso de viver no mundo, tornar-me-ía a vida difícil e triste.
E ainda a falta de verdadeiro gosto pelos estudos profanos, que por mais de uma vez, fêz-me pensar em abandoná-los, o que indica um mal estar de quem não segue a vocação. E finalmente um motivo muito pouco compreendido do mundo e que estive para não pôr aqui, que é sentir-se a cada passo de nossa vida íntima de piedade, a voz de Jesus a chamar-nos…
Como vêdes não se pode chamar de leviana e impensada uma resolução que procurei tanto e tanto refletir e ponderar. Espero em Deus que hei de perseverar nela.
Este ano não tive a consolação de obter o vosso consentimento. Esperarei outro, ainda. Porque não desejo partir sem esta bênção de meus pais, que é consentimento e que será para mim o mais doce e suavizante bálsamo para a despedida.

Beija-vos as mãos resignado,

o filho afetuoso

Anísio

 

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