TEIXEIRA, Anísio. Carta a Maurício da Rocha e Silva, Rio de Janeiro, dez. 1965.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 65.12[25].

Rio, natal de 1965

Meu querido Maurício:

escolhi este Natal, que estou passando sozinho no Rio (minha mulher está em Brasília, com a filha e os netos, a segunda filha está em Santiago, Chile, e o filho, em S. Paulo), para lhe escrever sobre o seu fascinante livro - Lógica da Invenção.
O tema do livro é dos que mais me apaixonam, interessado que sou, como qualquer um do nosso tempo, por que se elabore uma cultura comum baseada nos nossos conceitos de ciência e não nos postulados antigos do senso comum. O seu livro é uma pedra para êsse edifício. Sinto, porém, que nem sempre posso acompanhá-lo. Parece que a dificuldade decorre de que V., como cientista, parte de uma real vivência do método científico, sobretudo no campo biológico, para suas especulações e análises sôbre o mundo da percepção, da ciência e da arte, enquanto eu, com formação mais literária (a própria filosofia é literatura) parto do ponto oposto, da filosofia como estudo dos problemas humanos, para a abordagem das intrincadas concepções científicas e a necessidade de revisão da filosofia, para que ela se reajuste à nova visão do universo, a que nos obriga a ciência.
Devido talvez a essa diferença do ponto de partida, várias páginas do seu livro me desconcertam, tais como as das considerações sôbre a lógica, que V. reduz à Aristotélica, quando a lógica moderna, sem despresá-la, já se expandiu e desenvolveu de tal modo, que alguém já disse representar a parcela de contribuição de Aristóteles apenas a uns 15% do atual conhecimento nesse campo. Kant, em seu tempo, dizia que nessa área seria impossível o progresso.
Com a sua massa de conhecimentos e a sua familiaridade com o conhecimento biológico, só ele uma revolução na lógica aristotélica, e mais a sua penetração nos novos conceitos da física, também eles revcolucionários em relação aos anteriores conceitos do universo racional e mecânico de Newton, V. preferiu demonstrar as contradições entre as duas lógicas, a sublinhar o imenso progresso feito nesse campo, em que se inclui a matemática, deixando no leitor a impressão do aparente absurdo da visão atual do universo. Na mesma linha está a sua utilização do princípio de indeterminação de Heisenberg. Nenhum conceito novo foi saudado com mais alvorôço do que este para nos ajudar a sair do racionalismo mecanicista, insuficiente para nos explicar o universo da evolução, que nos revelara a biologia. Também aí fiquei desconcertado com o seu livro, lamentando que não se aproveitasse das novas descobertas para mostrar ao leitor a nova coerência entre o universo físico e o biológico, humano e social. A grande revelação, pela qual a ciência suprimiu a velha separação entre o homem e a natureza e se identificou no mesmo processo de evolução e crescimento, V. não só não a acentua como lhe empresta aquele caráter absurdo, que é apenas resultante da distância entre a ciência de hoje e a observação do senso comum. Ora essa observação do senso comum era apenas a observação sem os instrumentos modernos de observação. Se Aristóteles os tivesse em seu tempo, acredito que tivesse chegado a formulações muito similhantes às atuais. Não há contradição entre o seu método e o método atual, mas, apenas, uma diferença nos instrumentos de pesquisa e uma consciência maior de que o conhecimento científico é uma hipótese, ou melhor a construção de um modêlo que equivale à realidade, enquanto responde às dificuldades de sua interpretação, mas não é a realidade. Daí poder modificar-se e aperfeiçoar-se. A êsse esclarecimento v. preferiu acentuar os aparentes aspectos paradoxais do novo saber.
O seu desejo de identificar o processo de criação artística com o processo de criação científica levou-o a especulações que são, sem dúvida, engenhosas e ricas, mas deformam a natureza do real progresso que se opera no campo da ciência em contraste com o da arte..
Neste aspecto, a única identificação possível é de caráter estético dos modêlos que elabora a inteligência humana para interpretar a realidade. Mas tais modelos são primeiro verificáveis, isto é, verdadeiros no sentido de válidos e correspondentes, até o momento, à realidade e só depois estéticos. A sua beleza é um aspecto secundário da sua correspondência ao que chamamos de "verdade". Como você não acentua esse novo conceito de "verdade" de pensamento científico hodierno, não lhe ficou difícil uma aproximação entre a criação científica e a criação artística, que está longe de se confirmar nos métodos de consagração de um ou outro produto do labor mental do homem. A arte é uma forma de sentir o universo, a ciência é uma forma de conhecer o universo. As relações entre os dois mundos consistem, sobretudo, em que o novo conhecimento produz uma nova arte, ou seja, uma nova forma de sentir o universo. E como o conhecimento é uma forma de poder e renova pela sua aplicação a tecnologia humana - essas novas técnicas aumentam a capacidade humana de exprimir sua forma de sentir o universo. Estas, as aproximações. A diferença fundamental está em que a arte não é uma acumulação de esforços em marcha permanente, como é a ciência, mas sempre e em cada momento, algo de único, podendo ser perfeita ou imperfeita em cada caso e em cada tempo, mas não propriamente progressiva. Daí a exatidão com que V. se refere a 40.000 anos de pintura abstrata.
Já com a ciência registra-se continuidade e progresso. Os novos conceitos reconstroem e ampliam os antigos conceitos, em busca de uma unidade cada vez maior em nossa interpretação do universo, interpretação que não é arbitrária nem subjetiva mas objetiva, no sentido, como já disse, de válida, verificável e útil, isto é, instrumental para o controle da natureza ou de processo que é a natureza.
Bem sei, meu caro Maurício, que lhe estou a repetir banalidades para o seu espírito, a que V. responderia que sua Lógica da Invenção não pretendeu ser um estudo de epistemologia mas ensaios sobre as surpresas e transformações da Ciência em comparação com as surpresas e transformações da arte. É, sem dúvida, marcante, que a arte tenha começado como a mais prática das atividades humanas e a ciência como uma especulação estética sob muitos aspectos. Só efetivamente no século XVI é que a ciência se faz poder e já não interpreta apenas, mas modifica o mundo. E só com a biologia, já no século XIX, é que o mundo deixa de ser algo de feito e acabado contra o qual o homem quebra a cabeça e se consola com a arte, para se fazer um processo em marcha, de que o homem participa e que, de certo modo, pode até dirigir ou alterar.
A essa orientação V. preferiu uma atitude que lembra a de Eddington e busca em seu livro reaproximar a pesquisa científica à pesquisa em arte, quando, a despeito dos aspectos estéticos das construções científicas, aí se buscam instrumentos de operação sôbre o mundo e, na outra, formas de contemplação e formas de sentir o mundo.
O novo conceito de universo em expansão e a nova penetração do homem nos mistérios da matéria, reduzindo-se a uma forma de energia, embora sempre suspeitado, constitui algo de novo e de extrema consequência, pois revela-nos que o crescimento e a evolução não são apanágios da cousa viva mas estendem-se a todo universo físico, químico, biológico e social. A natureza probabilística do conhecimento científico em sua interpretação do mundo físico suprimiu a contradição entre êste mundo físico e o mundo humano e abriu as portas para a permanente renovação de um e de outro.
Nesse nosso universo que não foi criado mas está em permanente criação, o homem tem que reformular o sentido de cada uma de suas palavras, todas elas embebidas do conceito antigo de universo feito e acabado perdido na música monótona das esferas. E a primeira reformulação é a do conhecimento científico, que não é uma revelação mas a elaboração de instrumentos para atuar no processo e re-dirigi-lo ou modificá-lo. Por isto mesmo, os conceitos de verdade e certeza se alteraram profundamente e se fizeram conceitos de correspondência tão aproximada quanto possível e certificabilidade tão segura quanto possível. Mas esta natureza essencialmente hipotética de todo o nosso saber não deveria levar Camus e com êle V. ao desencanto mas à exaltação, pois, graças a isto é que o progresso é possível e o esforço humano justificável.
Compreendo - mais do que gostaria de compreender - o sentimento de absurdo que dominou o nosso grande e desventurado Camus. Esse absurdo é do homem com a sua comovente capacidade de sofrer e fazer sofrer na sua aparentemente irremediável cegueira, em uma época em estado de confusão, devido à súbita aceleração das mudanças e a necessidade de reformular todos os seus conceitos e modos de agir. O existencialismo de Camus é uma espécie de anti-metafísica, pela qual reproduz velhas fórmulas do pessimismo humano, tão comuns no após-guerra, se é que já saímos dela. Em sua grandeza, entretanto, ele se redime com La Peste, cuja última frase é de extrema lucidez e grandes esperanças: "Há no homem mais cousas a admirarar do que a desprezar".
Estou a me estender mais do que desejaria neste post-scriptum ao seu livro, que já li e reli cheio de admiração e de encanto pela virtuosidade de sua inteligência e de sua arte. Todos temos, porém, os nossos modos de encarar a revolução do nosso tempo. Esperava de V. uma contribuição mais direta ao difícil ato de aceitação da ciência em sua nova forma. Contribuição é, sem dúvida, e das mais penetrantes mas não lhe falta a nota camusiana de quase decepção com o novo saber, decepção, que, entretanto, é mais aparente do que real. Talvez tenha você razão e seja este o melhor método de levar o homem a aceitar o construtivo cepticismo científico. A ciência não nos traz mais a verdade mas um simples instrumento para a ação inteligente. Não traz um programa mas meios de criá-lo, ficando ao homem a liberdade de escolher entre as múltiplas alternativas que oferecem o universo pluralista e em crescimento e os novos instrumentos de compreensão e ação que lhe fornece a ciência. Camus quereria, talvez, que a ciência lhe desse êsse programa de ação e fé humana. Era ainda a busca e o gosto da certeza antiga no mundo estático de ontem. Cumpre-nos hoje, porém, viver na incerteza, mitigada pela probalidade, na dúvida, tocada de esperança, e aceitá-las como fonte do novo e razão para nossas escolhas, sempre mais ou menos precárias e mais ou menos felizes. Todo o imenso campo da prudência continua a cargo não da razão mas da inteligência humana. A razão, como a ciência, são apenas meios que ajudam nossas decisões se fazerem mais inteligentes. Inteligência é lucidez, equilíbrio, proporção, levar tudo em conta, que irá substituir o velho e superado culto da razão, que, no fundo, é apenas a "escrava de nossas paixões". O problema do homem é o da escolha de suas paixões. E, neste ponto, é que a contribuição de Camus foi reamente grande.

(parágrafo ilegível)

Com a agradecida admiração e os votos de muitos outros livros como Lógica da Invenção, o muito seu

Anísio

 

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