LOURENÇO FILHO. Carta a Anísio Teixeira, São Paulo, 1 nov. 1929.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 29.11.01.

São Paulo, 1 nov. 929 

Anísio 

Já estranhava a demora de notícias suas. Mas, por fim, recebi com dois dias de intervalo o "Álbum de curiosidades artísticas", o "announcement" do Teachers College, e a sua carta. Por tudo, gratíssimo. O álbum é trabalho primoroso. Pena é que não consigne mais informações acerca das obras, cujos fragmentos retrata. Lembra que lhe afirmei sentir muito esse espírito antigo da civilização original que a Bahia ia criando. O que é lamentável é que a gente tenha que pôr o verbo pelo menos no imperfeito... As informações da Columbia muito me interessam. Tanto mais que estou com um plano de trabalho, para o ano próximo, que envolve a criação de um "instituto de educação" - uma coisa que seja um desenvolvimento de meus cursos na escola normal, para professores já formados. É preciso doutrinar... Creio já vencida, em parte, a fase de propaganda das novas idéias e agora pretendo dar corpo a certos trabalhos de realização de pedagogia experimental. A luta não será pequena, mas o prazer está justamente no ardor que ela exige. Precisamos ir combatendo, sem tréguas, o espírito romântico de nossa gente. Por falar nisto: consegui o livro de Kilpatrick "Education for a changing civilisation", e estou maravilhado, sobretudo com o seu poder de síntese. É empolgante.
Muito me alegrou a nova de que você dará logo as traduções de Dewey. Creio que os dois primeiros trabalhos e o seu prefácio darão um ótimo volume, de 120 a 150 páginas. Desenvolva esse prefácio, de modo a podermos mesmo dar o título ao volume de "A pedagogia de John Dewey", ou coisa semelhante. Será assim um trabalho de criação sua, também, e, possivelmente, a publicar-se antes do concurso.
Sabe você pelas notícias de jornais, ao menos, que atravessamos dias amargos, aqui em S. Paulo. Creio que tivemos ocasião de conversar sobre a política econômica do Instituto do Café, evidentemente errônea, e que nos deveria conduzir fatalmente à crise em que nos vemos. A situação é alarmante. Contra todas as leis econômicas, o Instituto, (isto é, o governo) fez a política de retenção do produto e elevação fictícia do preço. Financiou cerca de 8 milhões de sacas a um preço demasiadamente elevado. Agora é o crack! Os fazendeiros não podem mobilizar o que têm. O Instituto fechou a sua carteira de financiamento. Todos os bancos se retraem e, mais, muitos deles, envolvidos em negócios do mesmo teor, ameaçam falência. Não exagero: transmito os fatos. Você verá dentro de um mês as conseqüências.
Tudo por quê? Porque os homens públicos não acreditam na ciência. O plano do Instituto não foi a concepção de grupos de técnicos, de sabedores do assunto. Foi obra de políticos, no mau sentido do termo. Assim, em tudo mais. Em economia, como em produção, em higiene, como em ensino. Costuma-se dizer que a República produziu o abaixamento do caráter, etc. e tal. Creio que o abaixamento foi especialmente de nível de cultura. Dado o seu tempo, o Império ainda apresentava cabeças suficientemente informadas. E o que temos é o governo dos não preparados... Melhor ainda, espíritos sem esta base mental de experimentalismo, que vai dominando o mundo.
Você desculpe esta tirada, de que você não tem necessidade. Mas é ela uma confirmação de "nossas hipóteses". Convém ser assinalada. É também um dos percalços da irmandade, de que você fala, repetindo o Lobato. O que é preciso é que a irmandade se desenvolva e não se ponha à margem, fazendo obra de Jeremias... Você tem assim obrigações de ação e necessidade de se fazer combativo. Venha para o sul e a transformação se dará.
Se o tal instituto, de que lhe falo atrás, caminhar suficientemente, você terá que vir fazer uns cursos por aqui, onde quer que você esteja. Vá amadurecendo esse compromisso desde já.
De vez em sempre, mande-me ao menos um cartão. Até fins de dezembro estarei terrivelmente ocupado, por uma porção de compromissos e o resto do curso, que pretendo matar este ano. Depois hei de escrever-lhe sempre, para animá-lo ao combate vivo, fora dessas amenas trincheiras do Salvador...

Creia-me o seu velho 

Lourenço Filho  



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