LOBATO, Monteiro. Carta a Anísio Teixeira, Buenos Aires, 1 jan. 1947.
Localização do documento: FGV/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 28.06.22.
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspondência escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas / CPDOC, 1986. p.101-103.

Buenos Aires, 1º 1. 947

Anísio

Minha primeira carta do ano quero que seja para você. Recebi afinal a tua de setembro 7, a qual fez duas viagens para cá em virtude de erro de endereço. Meu número na Sarmiento é 2.608, e puseste 3.608.
Li-te no bonde, de volta para casa - e meus olhos se umedeceram. Que revanche a nossa, Anísio! Porque tuas vitórias são vitórias de todos os teus adoradores - eu já não digo amigos, palavra muito surrada. Meu primeiro ímpeto foi escrever um grande artigo de despique, para o Estado ou o Correio da Manhã, baseado nos informes que me dás. E hei de escrever. É preciso que os Olímpios e a urubuzada se remordam, com estas nossas vitoriazinhas parciais.
Lembro-me de quando te vi no Rio de Janeiro, traqué pela polícia, escondido pelos amigos como um grande criminoso - e naquela ocasião também chorei. To whom the bells toll? Todos estávamos implicitamente perseguidos, foragidos, escondidos com você, enquanto lá fora o tumor Vargas sorria com o seu charuto e entregava a Cultura Brasileira aos percevejos da Coisa Romana.
Mas o tempo passa, há a Lei do Ritmo, e se na superfície a Libertação do Espírito Humano sofre obnubilações e mesmo demorados eclipses, subterraneamente a nossa vitória caminha sempre, como a toupeira - ou como o Pato Donald em certas fitas do Disney. Inda esta semana vi uma assim, Donald jogando pólo. Em dado momento, havendo engolido a bola, e debaixo da perseguição tremenda de todos os jogadores a cavalo, o pobrezinho afunda terra adentro e vai como uma minhoca na direção do goal... Nós, os Donalds da Liberação, fizemos isso naquele ano, Anísio: afundamo-nos como minhocas terra adentro e prosseguimos. E aonde foi você sair? Na UNESCO, elevado à função de Lobo Cerebral do Mundo de Amanhã! E elevado a essas alturas, por quem, Anísio? Por Julian Huxley, outro Lobo Cerebral do mundo, o grande filho do Huxley que deu um dos mais bem dados golpes na Coisa Teológica. O Venâncio chegou a saber do teu caso? se soube, juro que morreu de emoção. Excelente Venâncio! Por que é que criaturas assim morrem?
Dez anos passou você caminhando como minhoca por baixo da terra, escondido da Reação Triunfante - mas caminhando sem o saber. E bem consideradas as coisas, talvez tenha sido aquele golpe da Reação, determinante dos dez anos de minhocamento, que te elevou à posição atual. Abençoado seja o cônego Olímpio e todos os percevejos que te seguiram! Um deles lá se foi - mas não estará na esfera em que está o Venâncio, o Lourenço, ou o Pissinhas, como dizia o Maneco Lopes. Depois do que te fez, teve a audácia de escrever-me sobre qualquer coisa. Não respondi.
Anísio: estou curioso por saber dos aspectos culinários do teu caso. Quanto ganhas? É posição temporária ou vitalícia? Não posso conceber um lobo cerebral provisório ou temporário, mas que não pode ser neste mundo? Meu último livro vai ter esse título: Não há o que não haja.
E onde moras? Tua carta vem de Paris. Ficas aí ou... e que tal a tua sensação de Orientador da Educação do Mundo de Amanhã - o nosso mundo - o mundo que vai enterrar o padre Olímpio com todos os balandraus de Roma?
Ah, que vontade de estar com você aí agora! De repente sou capaz de ir - para te ajudar nalguma coisa. Minha situação hoje é a dum jetsam, flotsam - estou boiando à tona do mundo. Em fevereiro vou para o Peru. A Argentina já não me interessa. Não tem profundidade, muito rasa, muito moderna, muito imigracionista, muito São Paulo. No Peru, por baixo da coisa européia começada com Pizarro, há todo o passado inca. Peru e México: únicas águas fundas das Américas. Tudo mais, raso como a lagoa rasa. Os próprios Estados Unidos começam com os puritanos de Plymouth; nós, no Brasil, começamos com Cabral. Mas no Peru e no México já havia duas velhas e notabilíssimas civilizações, muito superiores à sórdida civilização católica que a destruiu e saqueou.
Quando me cansar do Peru vou para... Colômbia, Venezuela, México. Com isto entretenho Purezinha e evito de voltar para o Brasil do cônego Olímpio e do General Dutra, que é o que, sentimentalmente ela quer.
E se depois eu fosse par aí, a fim de te ajudar nalguma coisa? Poucos anos terei de vida, estou boiando no mundo e posso morar aqui como na China ou aí. Pense nessa hipótese, Anísio, e escreva-me. Use o endereço abaixo, porque ao vir da carta posso já não estar aqui.
E receba lá um abraço da Purezinha e outro da Rute, a qual rivaliza comigo no culto anisiano.

Adeus, adeus, adeus, Anísio querido...

Lobato

Calle Piedras 346

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