RIBEIRO, Darcy. Carta a Hermes Lima. S.l., S.d.
Carta publicada em RIBEIRO, Darcy. Confissões. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p.228-229.

Carta a Hermes

Volto de sua casa aquecido pelos vinhos da Nenê, só arrefecido por sua frase final: estou a terminar a biografia de Anísio. E eu, que nunca escrevi a página, a simples página, que você pediu? Não sei se pelos vinhos, não sei se pelas lembranças, o certo é que me sinto culpado. Culpado diante de você, culpado diante de Anísio, que são as gentes a que mais eu quero bem.
Que dizer de mestre Anísio?
Nem mesmo sei se o que mais sei dele são fantasias ou fatos. Por exemplo: aquelas histórias de Roma e de Lourdes. Serão verdadeiras? Segundo a minha versão, Anísio, chegando a Roma pela primeira vez, foi com o papa negro dos jesuítas - ele seria, então, a grande vocação sacerdotal que se oferecia à Companhia - visitar o papa. Anísio o teria encontrado no castelo de Sant Ângelo vestindo uma sotaina de verão, diante de uma grande janela. Aproxima-se, ajoelha, olha e pára. O papa benze sua cabeça e espera. Talvez Anísio reze. Cansado de esperar, o papa pede que ele se levante para falar. Anísio, perplexo, não se move. Está paralisado porque quando levanta os olhos só vê a ceroula do papa, através da sotaina, à luz do janelão. Pregado nos joelhos, Anísio pensa agoniado: ai, meu Deus! É uma tentação demoníaca. O papa, pensando que Anísio está paralisado de unção. Anísio, contrito, sofre a visão chocante. Demoníaca.
Essa história tem antecedentes. Antes de chegar ao papa, Anísio teria ido a Lourdes, em peregrinação. Lá viu as multidões dos estropiados, dos aleijados esperando uma graça da Senhora. Quando chega diante da pia de água benta que toda aquela multidão miserável beijava, lambia, suplicando o milagre, Anísio se convulsiona num sufoco de nojo. Horrorizado com sua própria impiedade, para se martirizar, aperta a boca exatamente onde milhares de bocas porcas se lambuzavam. Teria esfregado a boca ali um tempo enorme, para se macerar, para se obrigar a aceitar a fé como ela é expressa pela gente simples.
Essa história também, talvez, não seja inteiramente verdadeira. Mas é de histórias assim a minha imagem de Anísio.
Esse meu Anísio mitificado como a figura mística do ex-futuro jesuíta que, obedecendo à proibição paterna de ingressar na Companhia, a desobedece fazendo, em segredo, sua preparação sacerdotal, sob assistência pessoal do padre Cabral, enquanto cursava direito. Tudo isso nos anos em que vivia no Rio, como um santo - entre boêmios como você -, numa pensão do Catete. O mesmo Anísio mitítico, mas já não místico, que deixa Roma e o catolicismo para ir se encantar com Dewey na Universidade de Colúmbia, em Nova York, e se fazer a voz brasileira dos ideais de educação para a liberdade. Lavado já de qualquer ranço do reacionarismo católico que impregnara o seu espírito.
É extremamente curioso que isso ocorresse justamente naqueles anos 20, em que surge no Brasil o primeiro grupo de intelectuais que se desgarram do anticlericalismo positivista ou liberal para se fazer católicos militantes. Quando Jackson, Alceu e outros marchavam para a Ação Católica, nosso Anísio - como você - vinha de volta. Quando a inteligência brasileira se descaminha para a direita que a levaria ao integralismo, Anísio, aferrado à democracia norte-americana, caminha para a esquerda. Você também.
Mas quem sabe dessas transas de sua geração é você. Meu papel é reconstituir a figura do Anísio de depois, através de episódios reais diretamente observados por mim. É rememorar o meu amigo Anísio, de uma vivência de anos. O nosso Anísio que você há de reencarnar ou pelo menos encadernar na biografia. Esse sertanejo agreste da nossa Chapada Diamantina; baiano da Bahia do bode, tão posto às fofuras dos baianos do Recôncavo.

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