RIBEIRO, Darcy. Carta a Anísio Teixeira, S.l., 11 nov. 1964.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira -ATc 62.04.24/3.

11.11.64

Meu querido mestre Anísio:

Só agora ouso escrever-lhe pelo temor que tinha de ainda mais comprometê-lo. Uma das coisas que mais me doeu de tudo que passou foi ver repetir-se, pela segunda vez, sôbre sua cabeça, a onda de despotismo. E, também, o pouco que conversávamos nos últimos mêses em que eu vivia naquela sofreguidão, freqüentemente sem o valor de enfrentar os problemas com um senso justo. Bem sei das dificuldades que lhe criei com minha impaciência. Isto é tanto mais grave porque se me perguntassem pelo encôntro mais importante de minha vida, eu diria que foi o nosso encontro. O senhor não avaliará o quanto eu lhe devo e como sou consciente de que em educação nada mais fiz do que pôr meu dínamo de agitação, zumbindo em tôrno de suas idéias.
Vivo aqui na mesma correria de sempre. Dou um curso de antropologia na Universidade com que me mantenho; escrevo um livro, mas me ocupo pricipalmente de política. E é duro, querido, o sentimento de frustação que dá ver que nem depois de sete meses de exílio impostos por uma ditadura, nem assim conseguimos unir as chamadas fôrças progressistas, divididas hoje como ontem em bandos mais hostis uns aos outros, do que ao inimigo comum.
Somos uma liderança bem ruinzinha. No poder nos comportamos como candidatos em campanha eleitoral, disputando uns aos outros um esquerdismo vazio. No ostracismo, ficamos a depender de que outros nos chamem novamente ao cenário, sabendo que muito pouca saudade deixamos do poder contraditório que exercemos. Valeu a pena? Que ficou da experiência? Um amadurecimento no povo da consciência do atrazo e da deliberação de progredir através das reformas? O descaramento da aliança da oligarquia nacional com o imperialismo?
O certo, a meu ver, é que nenhum govêrno teve maiores chances de conciliar e de compôr-se com a oligarquia para conservar o poder, nem se esforçou mais, apesar das contradições, para acertar, enfrentando problemas capitais. A luta está aberta, agora já não obrigatòriamente pelo caminho pacífico. Trata-se, doravante, de forçar as transformações indispensáveis por qualquer caminho e sem quaisquer aliados, já que a Aliança em que tantos confiavam, faliu redondamente.
Que é feito dos liberais ianques? Daqueles que apreciaram o "New Deal" e o Kennedy dos primeiros meses? Nossa atitude é tão próxima à deles que sua ausência e seu silêncio nos deixa isolados. Quem é mesmo êsse vice-presidente eleito? Teria valor para liderar um movimento que nos permitisse sair do dilema de escolher entre a condenação a nos resignarmos com a miséria ou o caminho soviético do desenvolvimento? Todos saudamos em De Gaulle a possibilidade de uma aliança para trilhar êste terceiro caminho. Fracassada a América na tarefa histórica de criar modêlos congruentes de desenvolvimento, a nós, brasileiros, é que caberá fazê-lo, dentro dos valores democráticos, se for praticável, de qualquer modo, se inevitável.
Gostaria imensamente de lhe falar e de ouvir sua apreciação sôbre os acontecimentos, porque estou certo de que uma compreensão clara da experiência vivida é indispensável para marcharmos à frente. Apesar de tudo, encontro o peito cheio de esperança de voltar logo e retomar o processo. Conversando com JK em Paris, êle me lembrava que tem 63 anos e Jango só 46 e que dentro de 10 anos será ainda mais nôvo do que êle agora.. Respondi que minha conta não era por décadas, nem por anos, mas por meses. A razão me diz que não é assim, mas um elan que não sei de onde vem me está dizendo que breve estaremos mandando a gorilada embora e retomando posição lá dentro pra prosseguir na luta.
Tenho acompanhado por cartas e jornais o ambiente em nossa universidade e a perseguição aos colegas do Rio, de S. Paulo, Porto Alegre, numa odiosidade sistemática à cultura. Pelo que sei nossa casa começa a reagir, o pessoal de ciência começa a chegar e vai dando substância à instituição. Se não faltar um mínimo de recursos, nossa UNB sobreviverá sem deformações insanáveis. Soube, por exemplo, que nossos jovens instrutores completaram o mestrado, o que é bom sinal. Prosseguem as obras do minhocão, embora a ritmo tão lento que levaria dez anos para concluir-se. Mas muito antes lá estaremos para pôr o pé no acelerador. Zeferino muito policial nos primeiros dias, quando fêz prender muita gente para agradar os militares, está, agora, procurando fazer média para o futuro como bom-moço.
Querido. Mande-me notícias. Abrace por nós à Emilinha e não me queira mal por meus exageros.

Darcy

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