TEIXEIRA, Anísio. Carta a Gustavo Corção, Rio de Janeiro, 23 fev. 1958.
Localização do documento: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC - Arquivo Anísio Teixeira - ATc 58.02.23.

Rio, 23 de fevereiro de 1958

Senhor Gustavo Corção: sou um leitor de seus artigos. Acompanho com extrema curiosidade a sua luta entre a independência intelectual, que me parece o seu natural, e o "dogma", sempre pendente sobre sua cabeça, como "Jeovah" sobre os hebreus. Essa espada de Damocles suprime o senso de humor. Como os hebreus, Corção não ri. Condena, adverte, aponta, profetiza tal qual um hebreu. Whitehead nota essa falta do riso entre os hebreus. Certo amigo lhe retorquiu que, quando o assunto é demasiado sério, não se pode rir. Este também me parece o caso Corção. Ainda agora nos seus últimos artigos sobre a liberdade de ensino. Defendo posição essencialmente idêntica à sua. A educação - não só a privada, como a pública - não deve ser sujeita ao Estado, mas, à Sociedade. Por isto defendo um governo independente para a educação: conselhos locais, de composição popular. No fundo, conselho de pais. A política educacional seria fixada por esses conselhos, ajudados pelos profissionais da educação, isto é, os professores. O senhor deseja, ao que parece, a mesma coisa. Como, porém, não defende a tese como uma plausibilidade imparcial, para a solução da educação dada pelo Estado e, ainda assim, independente, mas simplesmente como recurso de transferir o poder de educar à Igreja, toda sua argumentação soa falso. Não quer acompanhar a idéia até o fim. A educação pertence aos pais. Muito bem. Como vão eles organizá-la? Entregando à Igreja. Ótimo. Mas há várias igrejas... E há os que não têm igreja... Daí a necessidade de uma escola imparcial. Assim, parece, que os conselhos eleitos, à maneira democrática, seria a melhor solução. Por que não a defende? Como imagina o senhor organizar os pais para a educação de todos? Já notou que "pais" às vezes significa "pais" de certa classe? E os pais das outras classes? Os padres substituiriam os pais. Mas já notou o Sr. como os padres são poucos no Brasil? No artigo de hoje, porém, o que desejo notar é sua revelação que o poder de educar pertencerá ao diretor do colégio ou ao reitor da universidade, que pensaria, segundo creio, de acordo com a confissão religiosa do estabelecimento. E os estabelecimentos públicos? Não tenho dúvidas em aceitar escolas confessionais - mas, desejo também liberdade para as escolas públicas. Não seria possível aceitar a idéia dos pais organizados em conselhos dirigindo também o ensino público? Essa idéia que é mais extrema que a sua ainda não encontrou nenhum apoio católico. Será que os católicos não acham que vão ser a maioria nos conselhos? Ou, na realidade, não têm confiança nos pais mas nos padres? Defenderá o Sr. realmente, como defendo eu a liberdade do ensino, ou a transferência a outro senhor, à Igreja? Havendo os pais conquistado a liberdade de crença, não devem ter eles logicamente a liberdade de escola? Essa liberdade só existirá com uma escola imparcial entre as religiões. Essa imparcialidade não é irreligião, mas, simplesmente, tolerância entre as religiões. O dogma porém não o deixa ser tolerante. Parece traição. Quer outra demonstração dessa intolerância, dessa dureza, desse sectarismo? O mau gosto de suas observações sobre o índio brasileiro, nesse mesmo artigo de hoje. Por que tanta raiva do índio? Foram a nação vencida. Muito bem. Mas o Sr. sabe que o vencido não se extingue mas confunde-se com o vencedor e sobre ele exerce influência por vezes considerável. Afinal somos índios, negros e brancos. E um dos nossos maiores orgulhos é o de havermos contribuído para o que parece uma verdadeira democracia racial. Como os índios não eram católicos, o Sr. não os julga brasileiros. Brasileiros são apenas os brancos católicos que aqui aportaram em 1500. E os pretos? Será que também não são a nação? Essa idéia de nação sectária será realmente cristã. O samaritano era o próximo para Jesus. Para Corção, nem o índio é o seu próximo. E possivelmente, nem o preto. E também, por certo, nenhum nativo desta terra, que não aceite as suas crenças. Francamente, neste mundo diverso e plural, a questão não é de ortodoxia, mas de tolerância entre as ortodoxias. É uma pena que o Sr. não possa contribuir para essa generosa convivência humana. A leitura do padre Teithard de Chardin podia ajudá-lo a ver mais globalmente a aventura do homem na terra. Afinal ser católico deveria ser um dos modos de ser universais. 

Anísio Teixeira

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