TEIXEIRA, Anísio. Carta a Monteiro Lobato. Sl, [1936 (?)].
Carta publicada no livro Conversa entre amigos: correspôndencia escolhida entre Anísio Teixeira e Monteiro Lobato. Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas/CPDOC, 1986.


Lobato

No fundo deste sertão, o silêncio e o deserto nos tornam humildes e pequenos. Ainda, hoje, neste domingo - estou só, absolutamente só, há quatro semanas, em uma deserta fazenda - eu andei por veredas sem fim a não ouvir outro ruído senão os de pássaros, o que não é um ruído… E á medida que me afundava em contemplações, sem princípio nem fim, que esses silêncios e essas extensões nos diluem o espírito até ás raias de um estado quase gasoso, fui-me dirigindo para casa e direto sobre a sua carta, que reli pela centésima vez… Com o espírito a soprar como se fosse nada mais do que - sei lá! - uma simples brisa por entre as folhas e as árvores: posto, assim, em absoluto estado de leveza, ele voou até a sua carta. De fato, essa carta foi uma das cousas mais altas que recebi ultimamente. Acreditará você que não a respondi logo pelo muito que ela me disse, pelo muito que me consolou?… Costumo fazer isso. Institivamente. Uma carta respondida é qualquer cousa que se encerrou. Uma carta a responder é uma cousa viva, a falar ainda e a esperar… Cada vez que a releio, é como se a recebesse de novo. São paradoxos da amizade. Na distância em que me encontro - duas vezes distância: distância física e distância - perdoe-me - espiritual - não posso ter cartas suas constantes; que fazer senão prolongá-las por esse estranho processo de lhes demorar as respostas? A sua carta tem quatro meses de escrita, e é como se estivesse a ouvi-la, agora mesmo, de sua boca. Tome, pois, mais esse enigma psicológico: correspondência tardia e rara devido a ser muito grande a amizade… As mulheres nunca compreenderiam isso. E é tão real, e tão verdade…
Não li ainda as Memórias de Emília. E por mais que o sertão me ensine o gosto das privações e das restrições, com essa ainda não me habituei. Há pouco, pedi ao Otales novamente pra mandar-ma. Mas tenho um correio tão acidentado que muita cousa se perde. Ah! Se compreendo a alegria que lhe dão esses livros! Andamos, hoje, em uma dessas épocas em que só o trabalhar para o futuro nos pode consolar. Deve ter sido um momento como o nosso de hoje que aqueles homens melhores da Idade Média se meteram a fundar conventos. Não havia nada mais a fazer. Hoje não podemos fundar conventos, mas, pelo menos, escrevamos para as crianças. E uma forma de retiro, uma forma de refúgio, e retiro e refúgio em que somos úteis…
Uma das minhas grandes humilhações está em não me ser possível o mesmo. Meti-me em traduções. Mas, nem isso. O meu portuguezinho é uma gaiola de passarinho para o grande inglês livre e ágil dos meus autores. Terminei o Wells - o Outline - e a impressão que tive, ao terminar, foi a de ter roubado o leitor. Aquele livro iria ser traduzido por você. Não calcula o arrependimento de não o ter deixado em suas mãos!… Ás vezes, sonho que você o poderia corrigir. Mas corrigir é pior que traduzir… e o livro é uma tal visão global do mundo, uma tão estimulante apresentação do drama humano, que só você, entre nós, a deveria reapresentar, em português, aos nossos brasileiros. Não, traduzir é tão arte quanto escrever, e só escritores o devem fazer. E eu, positivamente, não sou escritor… Já não animarei tanto o nosso Otales a me entregar obras desse feitio. Vou resumir-me a traduções em que o lado técnico prepondere e, assim, eu me sinta justificado…
Por outro lado, estou tentanto meio de vida menos ambicioso. Sou, hoje, lenhador. Vendo madeiras e dormentes á estrada de ferro. Comprei umas terras e creio que retornarei ao destino rural dos meus bisavós. É um esforço para me "primitivizar" que não deixa de ter seus encantos. O cabritozinho do espírito ainda pula e esperneia e se bate - tão habituado ficou com a sua vida de livros, de complexidades e de inquietações -, mas virá, por fim, habituar-se á planície e á sóbria, poupada e sumaríssima vida intelectual de um criador de bois e vendedor de lenha…
Devo hoje ir receber Emilinha na ponta de trilho mas próxima. Estive na Bahia ás voltas com o médico e o dentista. Avalie o que não me veio mandar esse ano de deserto!… Um filho, nada menos que isso. E eu que sonhava sempre uma liberdade meio aventureira, meio romântica… As duas possíveis mãozinhas que vêm aí me enraízam definitivamente… Sou árvore, Lobato, sou árvore… As cousas passarão por mim, mas já não poderei ir ao encontro delas… A vida nos domestica. Maior razão, pois, para mergulhar no primitivismo sólido da terra.
As minhas, as nossas lavandeiras de Nossa Senhora se foram com as águas. Fizeram o seu ninho perto de nós e criaram seus filhos e se foram de novo. Hoje só as encontro pelos tanques e lagoas da fazenda. Não é curioso, procurarem a proteção da casa, para o período do ninho? Será que sejam as únicas a não saberem que o homem é o mais terrível dos animais ferozes.?
Tive há pouco que apelar para a generosidade amiga do Otales. Diga-lhe que não andou estranho a esse apelo o esperado cataclisma do rebento. De modo que, provavelmente, até setembro haverá mais alguém a agradecer.
E adeus, meu querido Lobato. Estendi esta até aqui, correndo o risco de lhe dar uma maçada, pelo mesmo motivo por que retardei a resposta. Para tornar mais longo o diálogo…
Lembre-me a d. Purezinha, aos filhos e a todos os seus. Abrace por mim o Fernando e o Otales e os demais amigos da casa.
A.
Sonhei outro dia com o petróleo, com dom Bosco. Vê, pois, que acompanho daqui a sua cruzada. E se os votos são, como queria Goethe, pressentimentos… os meus têm sido vivos e constantes.
Seu irmão

A.

 

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