SANTOS, Pe. Sallustio dos S. J. Carta ao Pe. Antunes S. J. Caetité, 1 jul.1912. Cartas edificantes, v.4, p.7-9. In: AZEVEDO, Pe. Ferdinand S. J. A missão portuguesa da Companhia de Jesus no nordeste 1911-1936. Recife: Fundação Antonio dos Santos Abranches / FASA, 1986.

Caetité

O Pe. Sallustiano dos Santos, um dos padres jesuítas que foram para Caetité, deixou da cidade um descrição maravillhosa, captando muito bem as características sertanejas da chamada "Corte do Sertão":

 "Onde estamos nós? no Sertão; e é da Corte dele que escrevo e acerca dela me pedia informações. Hoje mesmo pelas 10 horas da manhã a vi de cima da minha "Fura-mundo-velho" boa mula viageira e suave enviada de Macaúbas. Fui lá pregar e demorei umas três semanas. Afianço-lhe que, depois desta ausência e tendo visto outras cidades do sertão, achei Caetité merecedora do seu título de honra. Para ser da minha opinião seria preciso ter visto as outras cidades sertanejas e depois contemplar, ainda que não fosse senão de cima de uma mula, do alto do monte donde eu a vi, a nossa cidade. Não pense que vou dizer que tive a mesma impressão dos hebreus contemplando o "Santa"do alto do Monte das Oliveiras; mas tem sua importância Caetité. Repousa no colo de uma colina vigiada por um pequeno observatório meteorológico e adormece à sombra de capelas mortuárias em ruínas, embalada pelo murmúrio de três riachos. Isto pelo lado ocidental; dos outros lados erguem-se ainda colinas que a engastam deixando, entre elas, vertentes servindo de passagem aos que ali se dirigem. Como pano de fundo `a rua da entrada, a quem vem da Bahia, ergue-se a Matriz de duas torres à moda portuguesa, com riscas azuis (mau gosto do pintor) menos má. Em roda uma grande praça coberta de capim, ladeada de edifícios menos maus, embora todos rés do chão, servindo de centro a oito ruas que ali vão ter. Tem ruas bonitinhas lageadas, e uma bastante asseada e larga: chama-se do Barão de Caetité, com aparência de luxo. São poucas as casas de sobrado, ou de andares, mas há limpeza, asseio; uma está descrita, a outra é a do mercado que é um bom edifício. Há candieiros nas praças, mas não há necessidade de os acender todos. E quem os havia de acender? Pergunta esta, muito natural aqui. Julgar-se-ia escravo quem o fizesse, e parecê-lo é a maior humilhação para quem tem de escravo a cor e o sangue. Numa cidade, vi eu o próprio Intendente lançar a escada, levar na mão o lampião de petróleo e colocá-lo no poste porque, me disse, ninguém o faria.

Aos sábados o sertão desce à Corte e a transforma ou disforma um pouco: só se vêem tabaréus, porque tudo o que é limpo não aparece nas praças e manda seus moleques"fazer a feira". É interessante ver chegar, de toda a parte, burros carregados do que chamam "broacas"que são umas caixas de couro, onde trazem os artigos para venda; noutros vêm montados os donos com os pés descalços pendentes do estribo, a que seguram pelo dedo maior, o tronco muito recostado para trás na atitude de pleno descanso: é mostra de bom cavaleiro; deixam pender sobre as costas uns cordões encebados que caem dos chapéus de couro prometendo eternidades de duração. Abastecem o mercado de galinhas a tostão ou dois tostões, de farinha a 90 rs. a medida, de carne de sol a 90 rs. a libra, meio quilo de carne de porco a 90 rs. a libra, de batata doce, de rapadura que é um paralelepípedo de açúcar inferior, requeijões, potes de barro, e de mil outras coisas; de tarde, esse "lote" de "tabaréus" se some para suas casas espalhadas pelos matos. Disse que a cidade está recostada e adormece, melhor diria dormita, entre colinas, é a verdade: a Corte do sertão tem o defeito das nobres famílias, parece passar a vida a rever-se no seu nome pronunciado com respeito no interior; é de uma rotina pasmosa. Os ricos não se abalançam a transações importantes; os menos abastados repeitam demasiado aqueles para lhes passar adiante, enquanto outras cidades que não são a Corte, labutam sob lindo sol e ar puro do sertão. Caitité passeia pelas ruas, que só lentamente se aformoseiam, e goza em boas salas escondidas atrás de adobes caiados ou pintados; há cômodos com rica e asseada mobília. Podia avançar enormemente, vai devagar.Não há ao presente uma padaria nesta terra, embora noutras haja muitas, mas come-se aqui muito pão; os padeiros não fariam fortuna, ninguém lhes daria nada; os particulares é que cozem, como muitos matam; e como vem muita carne de sol e do sertão e há de se comprar ao sábado, não sabem conciliar feira e talho permanente, por isso há um só e mata uma vez na semana.

São em geral amantes de instrução; como têm dinheiro nos cofres e conhecimento na consciência de que sabem pouco de letras, querem seus filhos em colégios, que se não abrem por falta de professores que queiram enterrar-se aqui. A política envolve a gente e a diverte e ocupa: é o que dá importância ao rico e o que só é capaz de fazer servir o pobre. Há um teatro, mas muito reles: verdadeira adega com uma porta muito larga por entrada e uns óculos por ventiladores; de vez em quando há recitais.

A gente tem um trato limpo, social, cavalheiresco até, e de boa sociedade. Os ricos dão o tom: viram Bahia. Trajam bem, apresentam-se bem e na conversação muito polidos. A gente limpa gosta de falar, como gosta de ouvir; os outros vão "cavaqueiar" com os coronéis, doutores, Intendente. O cavaqueiar consiste, como em todo o interior tabaréu, em entrar familiarmente em casa, sentar-se e escutar silenciosamente. Há em todo o sertão, e por conseguinte na Corte também, muito empenho em assistir a uma conversa, embora sem gastar uma palavra, o que é ao menos asisado. Saúdam franca e familiarmente os coronéis, às vezes com o chapéu na cabeça, e saem sem dizer nada, embora ninguém se retire sem apertar a mão e dar meio abraço a todos. Ninguém é despresado, nem o vaqueiro de seu Siô, nem a negra da sua Dona.

O clima agradabilíssimo, ao menos por agora; dizem que é quente na estação calmosa e parece que o deve ser, atendendo à posição. Nas outras paragens não se pode decidir, porque a três léguas varia conforme a posição; os geraes são frios, as catingas quentes; Caetité está em geraes, é fria.

Estendi-me muito. Mas hoje aprecio bastante esta cidade porque vi as do sertão muito inferiores. Todo ele tem os olhos postos sobre ela e se nota uma certa atividade e início de entusiasmo na cidade rotineira com a notícia do bispado, trabalhos de via férrea e ressurreição de uma escola normal para meninas; ressurreição porque já houve uma e morreu. P. Antunes, vimos de companhia as feéricas cidades de Holanda, a apalaçada Bruxelas, e esguia Liège, a nossa gaiteira Petite Enghien, Paris e outras cidades arrebatadas pelo progresso; tudo isso, e mais, me feriu a imaginação com a aparência de enorme, de opulento, de vertiginoso; agora repouso aqui. As imagens dos grandes palácios, dos espaçosos boulevards, até o saudoso ademan do nosso "Zeelandia" varreram-se com esta extensão mais imensa ainda, de verdura e com a vida nesta natureza conservada intacta pelo Criador parecendo aqui no dia de seu descanço. O Sertão!"