O Batalhador Anísio Teixeira
Roberto A. Salmeron
Diretor de Pesquisa Emérito LPNHE-Ecole Polytechnique-91128 Palaiseau Cédex-França

    Este ano é o centenário do nascimento de Anísio Teixeira, uma das maiores figuras da educação no Brasil, que dedicou a sua vida a melhorar o ensino em todos os níveis, primário, secundário, profissional e superior. A marca por ele deixada é profunda, o centenário deveria ser festejado em todas as escolas do país.
   Os que se interessam pelo ensino e sua evolução no Brasil não podem deixar de conhecer as principais idéias e iniciativas deste filósofo da educação, que alivia teoria e prática no mais nobre interesse pelo ser humano, considerando que o ensino, fundamentalmente, deve almejar a formação de homens melhores, numa sociedade mais justa.
   Por que "filósofo"da educação? Porque sua preocupação era de estabelecer princípios racionais como fundamentos de um sistema educativo, dos quais deveriam decorrer naturalmente as ações a serem tomadas. Estabelecer uma ampla lógica de educação visando o progresso do homem e da sociedade.
   Para avaliarmos a obra de uma pessoa, devemos situá-la no contexto histórico da época em que viveu. É o que tentaremos. Como não temos o hábito de cultivar nossa memória intelectual, muitos docentes e a grande maioria dos estudantes não sabem quem foi Anísio Teixeira. Foi um lutador. Não é facil resumir num simples artigo as suas batalhas e o legado que nos deixou.
   Homem de cultura, fertil imaginação e idéias originais brotando com espontaneidade, tornando as conversas inesquecíveis para os interlocutores, gozava de prestígio nos meios intelectuais e no mundo dos educadores. Impressionavam o nível e a variedade de temas que podia abordar, com aquela característica dos homens inteligentes de discernir rapidamente os aspectos importantes de um assunto ou de um problema.
   Anísio Teixeira foi uma das maiores autoridades em educação que encontrei em minha vida profissional. Fui iniciar o Instituto de Física da Universidade de Brasília quando ele era o reitor. Tive então o privilégio de ouvir, em contato que mantínhamos quase todos os dias, suas opiniões sobre educação no Brasil e no exterior, sobre as relações entre o ensino e a pesquisa em nossas universidades, sua preocupação em harmonizar essas duas atividades na UnB. Mente agil analisando o presente e sondando o futuro, com exemplo de modéstia, jamais se referindo a suas experiências passadas, a não ser quando solicitado.

A carreira de Anísio Teixeira
   Anísio Spínola Teixeira nasceu em 1900 na cidade de Caetité, na Bahia, fez o curso secundário no Colégio dos Jesuítas, em Salvador, e formou-se em Direito no Rio de Janeiro. Em 1924, portanto com 24 anos de idade assumiu o cargo de Inspetor Geral do Ensino da Bahia, e começou a reformar a instrução pública em Salvador. Foi o início da luta pela educação que travaou até a sua morte.
   Desde jovem percebeu que para ser capaz de melhorar a formação de outros, tinha de começar por melhorar a sua. E naquela época em que não havia no país nenhuma estrutura para elevar o nível das pessoas formadas em ensino superior, em que não havia universidades, nem Ministério da Educação, foi para os Estados Unidos estudar no Teachers College da Universidade de Columbia, em Nova York, onde foi discípulo do famoso John Dewey e lá se formou em Educação aos 29 anos.
   Há fatos na vida das pessoas que despertam nossa curiosidade. O que levou o jovem Anísio Teixeira a procurar orientação com John Dewey? Por que caminhos, no Brasil daquela época, soube da existência de John Dewey? Este educador, filósofo, filósofo da educação e psicólogo norte-americano trabalhou para a reforma dos sistemas educacionais durante toda a sua longa carreira, e desenvolveu doutrinas pedagógicas que tiveram influência não somente nos Estados Unidos, mas também em lugares tão diversificados como a América Latina, a China e a Turquia. Anísio Teixeira assimilou, divulgou e aplicou as idéias do mestre, com a precaução de adaptá-las às condições brasileiras, tanto nos métodos quanto do ponto de vista social. Traduziu trabalhos de John Dewey para o português.
   Anísio Teixeira ligou-se a um grupo de intelectuais do Rio de Janeiro, na maioria relativamente jovens, interessados em educação e muito críticos em relação ao sistema educacional vigente; discutiam a necessidade e modos de reformulá-lo. Na ausência de estruturas oficiais para tratar desses problemas, atuavam na interessante e importante Associação Brasileira de Educação (ABE), criada em 1924 por Heitor Lima da Silva, professor da Escola Politécnica.
   A ABE era uma original instituição de vanguarda. Dedicava-se a como renovar o sistema de educação em todos on níveis, primário, secundário, normal, superior, profissional e artístico. Promovia reuniões, elaborava trabalhos sobre criação de escolas e de universidades, e até sobre a necessidade de um Ministério da Educação, que não existia. A partir de 1927 organizou conferências nacionais sobre educação, e inquéritos sobre o ensino secundário e universitário. Uma atividade interessante, que teve sucesso superior as expectativas, foi prover cursos de extensão universitária abertos ao público, chegando a realizar mais de cem conferências por ano assistidas por audiências interessadas que lotavam o anfiteatro da Escola Politécnica.
   Na ABE, Anísio Teixeira foi um dos líderes do movimento chamado "Escola Nova", que preconizava educação em escolas públicas gratuitas accessíveis a todos, mantidas oelo Estado, para que houvesse igualdade de oportunidade aos jovens independentemente de status social e situação econômica. Idéia progressista há mais de sessenta anos, de grande atualidade ainda hoje, quando vemos o ensino secundário tranformado em ensino de classe social, e a gratuidade do ensino universitário público parece ameaçada. Faziam parte desse movimento outras personalidades, como Fernando de Azevedo, que em 1934 foi um dos fundadores da Universidade de São Paulo; Manuel Lourenço Filho, que em 1938 organizou i Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (INEP) no Ministério da Educação; e Francisco Campos, que já atuara em educação no seu estado natal de Minas Gerais, foi o primeiro ministro da Educação e Saúde, quando o Ministério foi criado por Getúlio Vargas em 1930, e tornou-se tristemente conhecido quando ministro da Justiça, por ter sido um mentor intelectual do regime ditatorial instaurado com o golpe de Estado de Vargas, em 1937.
   Anísio Teixeira lançou-se na reforma do ensino público na capital do país, de 1931 a 1935. Em 1935, dirigiu o Departamento Municipal de Educação no Rio de Janeiro, e fundou nesse ano a Universidade do Distrito Federal, que descreveremos abaixo. Sua carreira foi interrompida de 1937 a 1945, afastado de cargos públicos durante o regime ditatorial de Getúlio Vargas. Foi secretário de Educação da Bahia, em 1947. Em Salvador, criou a original Escola Parque, no bairro pobre da Liberdade, onde lançou a primeira experiência, pioneira, em educação integral, tema que sempre esteve entre os seus prediletos, que retomou mais tarde no plano educacional de Brasília. Na Escola Parque instalou a "Educação pela Arte" e fez construir pelo seu amigo o arquiteto Alcides Rocha Miranda um teatro para dança e música, chamado "Centro Educativo de Arte Teatral". Rocha Miranda, 15 anos depois, projetou, iniciou e coordenou o Instituto Central de Artes da Universidade de Brasília.
   Em 1952 assumiu a direção do INEP, no Ministério da Educação, onde criou, em 1955, o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE), com seções em diferentes lugares do Brasil. Trabalharam no CBPE pessoas em vários Estados, que assentaram bases para trabalhos futuros, como por exemplo, Carolina Martuscelli Bori, que fundou e coordenou o Departamento de Psicologia da Universidade de Brasília e a Psicologia Experimental na USP.
   Anísio Teixeira lecionou Filosofia da Educação na Escola de Educação da Universidade do Distrito Federal, e foi catedrático de Administração Escolar na ex-Universidade do Brasil. Atuava em níveis variados: como ensinar a ensinar, como pesquisar sobre educação, como organizar escolas, e até em questões relativas a registro de diplomas.
   Em 1964, o regime militar, depois de exonerá-lo das funções de reitor da Universidade de Brasília, aposentou-o compulsoriamente. No mesmo ano, depois de aposentado publicou o livro "A Universidade de Ontem e de Hoje". Com a implantação da ditadura, em 1964 deixou o país. Foi inicialmente para o Chile, e depois para os Estados Unidos, onde lecionou como Professor Visitante na Universidade de Columbia, em 1964, na Universidade de Nova York, em 1965, e na Universidade da California em 1966.
   Anísio Teixeira expôs seu pensamento em conferências e em muitos artigos publicados em revistas, e escreveu uma dezena de livros. Para quem se interessa pela sua obra, é imprescindível a leitura de pelo menos dois dos livros que sintetizam suas principais idéias. Um é "Educação não é Privilégio"1, que na última edição contém artigos escritos sobre ele por Darcy Ribeiro, Afrânio Coutinho, Marisa Cassim e Clarice Nunes. O outro é "A Universidade de Ontem e de Hoje"2, que contém uma apresentação de Ivo Barbieri, um artigo sobre ele escrito por Clarice Nunes, e como suplemento, um documento precioso, de grande valor histórico: a conferência que Anísio Teixeira pronunciou na inauguração dos curos da Universidade do Distrito Federal, a 31 de julho de 1935, com o título "A Função da Universidade".

A filosofia da educação de Anísio Teixeira
   Os princípios básicos da educação que Anísio Teixeira defendia podem ser divididos em duas categorias: os de cunho social e os de métodos.
   Do ponto de vista social, para Anísio Teixeira a educação é a base da democracia, e por isso o Estado deve assumir a responsabilidade de difundí-la em todos on níveis. Era intransigente em considerar que educação é direito, não privilégio. Quando é privilégio de alguns, torna-se educação de classe social. Naquele Brasil de estrutura feudal, pregoava a necessidade da educação para todos, com metodologia adequada às crianças da cidade e às crianças do campo, para que estas pudessem permanecer no campo com uma educação básica.
   Essas idéias despertavam a cólera de elementos da classe dominante conservadora, especialmente católicos, que tratavam como "perigoso inimigo revolucionário" que queria mudar a sociedade. Foi ele atacado na imprensa e até na Câmara dos Deputados, precisando ser defendido contra esses ataques pelo Conselho Diretor da Associação Brasileira de Educação3.
   Conhecedor da história da educação no mundo ocidental, citava exemplos que mostravam claramente como via a educação no quadro amplo da sociedade. Vejamos o que escreveu a respeito da mudança da educação na França depois da Revolução Francesa de 1789:
   "Quando, na Convenção Francesa, se formulou o ideal de uma educação escolar para todos os cidadãos, não se pensava tanto em universalizar a escola existente, mas em uma nova concepção de sociedade em que privilégios de classe, de dinheiro e de herança não existissem, e o indivíduo pudesse buscar, pela escola, a sua posição na vida social. Desde o começo, pois, a escola universal era algo de novo e, na realidade, uma instituição que, a despeito da família, da classe e da religião, viria a dar a cada indivíduo a oportunidade de ser na sociedade aquilo que seus dotes inatos, devidamente desenvolvidos, determinassem"4.
   Quanto aos métodos, Anísio Teixeira propalava que a educação deve levar em conta os princípios da atividade mental e do amadurecimento da criança, que nos são ensinados pela psicologia. Pensamento e aprendizado são verdadeiros processos de investigação, que começam com a dúvida ou com a incerteza diante várias possibilidades e são estimulados pelo impulso de resolver um conflito. A educação, portanto, deve ser baseada em experimentação, em prática, não em simples recapitulação da experiência vivida por outros. Insistia também em que, na educação moderna, deveria se dar ao ensinamento científico uma parte mais importante do que se dá, porque a ciência é dos fatores importantes do progresso. Anísio Teixeira tinha compreendido esse papel da ciência há 60 anos, quando no Brasil a ciência balbuciava. Esta verdade cada vez mais verdadeira ainda não foi compreendida por todos os responsáveis pelo interesse público.
   Insistia em que o ensino universitário, para ser vivo, não pode ser separado do trabalho criador, de atividades intelectuais inovadoras.

A função da universidade
   O conceito de anísio Teixeira sobre universidade está resumido de modo impressionante na conferência que pronunciou na inauguração dos cursos da Universidade do Distrito Federal, a 31 de julho de 1935. Aí expôs as idéias que o nortearam na fundação dessa universidade e, 35 anos depois, na fundação da Universidade de Brasília. Essa conferência é de atualidade hoje, 65 anos mais tarde. O melhor modo de transmitir a mensagem que contém e transcrever alguns trechos. Escolhemos os seguintes:
   "A universidade é, pois, na sociedade moderna, uma das instituições características e indispensáveis, sem a qual não chega a existir um povo. Aqueles que não as têm, também não têm existência autônoma vivendo, tão somente, como um reflexo dos demais. Com efeito, a história de todos os povos que florescem e se desenvolveram é também a história da sua cultura, e a história da sua cultura é, hoje, a história das suas universidades".
   Dizendo que as universidades salvaram grande parte da experiência que a humanidade adquiriu no passado, comentou:
   "Dir-me-eis que a imprensa e o livro a salvariam, dispensando as dificuldades e os dispêndios dessas complexas organizações universitárias que a muitos, entre nós, chegam a parecer luxuosas e supérfluas"..."Já reparastes, entretanto, que a nenhum povo da história ocorreu esse ovo de Colombo? Já notastes que, muito pelo contrário, a imprensa e o livro condicionaram o surto das universidades?"
Continuou mais adiante:
   "Não. A função da universidade é uma função única e exclusiva. Não se trata somente de difundir conhecimentos. O livro também os difunde. Não se trata somente de conservar a experiência humana. O livro também a conserva. Não se trata, somente, de preparar práticos ou profissionais de ofícios ou artes. A aprendizagem direta os prepara, ou, em último caso, escolas muito mais singelas do que universidades".
   "Trata-se de manter uma atmosfera de saber, para se preparar o homem que o serve e o desenvolve. Trata-se de conservar o saber vivo, e não morto nos livros ou no empirismo das práticas não intelectualizadas. Trata-se de formular intelectualmente a experiência humana, sempre renovada, para que a mesma se torne consciente e progressiva".
   "Trata-se de difundir a cultura humana, mas de fazê-lo com inspiração, enriquecendo e vitalizando o saber do passado com a sedução, a atração e o ímpeto do presente."..."O saber não é um objeto que se recebe das gerações que se foram para a nossa geração, o saber é uma atitude de espírito que se forma lentamente ao contato dos que sabem".
   "A universidade é, em essência, a reunião entre os que sabem e os que desejam aprender. Há toda uma iniciação a se fazer. E essa iniciação, como todas as iniciações, se faz em uma atmosfera que cultiva, sobretudo a imaginação... Cultivar a imaginação é cultivar a capacidade de dar sentido e significado às coisas. A vida humana não é o transcorrer monótono de sua rotina cotidiana; a vida humana é, sobretudo, a sublime inquietação de conhecer e de fazer. É essa inquietação de compreender e de aplicar que encontrou afinal a sua casa. A casa onde se acolhe toda a nossa sede de saber e toda a nossa sede de melhorar, é a universidade".
   "São as universidades que fazem, hoje, com efeito, a vida marchar. Nada as substitui. Nada as dispensa. Nenhuma outra instituição é tão assombrosamente útil".5
Esse é pequeno resumo de grandes idéias.

A fundação da CAPES
   Desde jovem Anísio Teixeira preocupou-se com duas questões ligadas aos próprios fundamentos de uma universidade: a formação dos docentes e as atividades criadoras em todas as áreas: Ciências Humanas, Ciências Naturais e Exatas, Artes e Letras. Combatia a atitude do corpo docente acomodando-se na situação simples transmissor de saber adquirido em livros.
   Essa preocupação levou-o, em 1951, á criação da "Campanha Nacional de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior"- CAPES - (atualmente "Fundação Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior") a mais conhecida de suas iniciativas. Esta instituição pioneira foi uma das primeiras do gênero em países do Terceiro Mundo, com um sistema estruturado de bolsas de estudo para trabalho no exterior. Com milhares de bolsistas através dos anos, tem desempenhado papel da maior relevância na melhoria da formação de pessoal universitário, em todos os recantos do país.
   Meio século depois de criada, a CAPES continua sendo uma das mais importantes instituições do Brasil no campo da educação, com programas extensivos de formação para profissionais, e importante trabalho de controle da qualidade do ensino superior no país, em graduação e pós-graduação.

A universidade do Distrito Federal
   Anísio Teixeira, quando diretor do Departamento Municipal de Educação, no Rio de Janeiro, nomeado pelo Prefeito Pedro Ernesto, criou a Universidade do Distrito Federal (UDF), em julho de 1935. Esta criação originou-se de discussões havidas durante anos na ABE, e provavelmente também de estímulo provocado pela criação da Universidade de São Paulo no ano anterior.
   Anísio Teixeira ficou impressionado com a criação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, que considerava o único nas universidades brasileiras que tinha, além de objetivos práticos e profissionais, objetivos de cultura desinteressada e de preparação para a carreira intelectual. Outro ponto que unia os pontos de vista de Anísio Teixeira e dos fundadores da USP era a convicção de que, embora a organização do ensino deva ser baseada em sólidos ensino primário e secundário, que serão os alicerces de boas universidades, o modo prático e realista de elevar o nível da educação no Brasil era o de começar por fazer boas universidades. Estas poderiam então exercer duas funções importantes: estimular o trabalho intelectual criador e formar bons professores para as escolas primárias e secundárias.
   A UDF começou a ser combatida desde o momento em que a intenção de criá-la foi anunciada, antes dela existir. A história desta universidade é episódio extremamente significativo não somente da nossa história universitária, mas da História do Brasil, mostrando a falta de visão e a arrogância de elementos influentes da classe dominante da época.
   A UDF tinha cinco setores: uma Escola de Educação, uma Escola de Ciência, uma escola de Economia e Direito, uma Escola de Filosofia e Letras, um Instituto de Artes. Essa estrutura foi o germe da estrutura adotada 27 anos mais tarde para a Universidade de Brasília. A idéia fundamental era ter uma universidade que cultivasse o espírito criador, as atividades não devendo ser limitadas ao ensino. A fim de criar essa atitude de espírito, manteve desde o início cursos de graduação e de pós-graduação. Estes últimos eram novidade naquela época, não somente no Brasil, mas também em países culturalmente mais avançados da Europa e nos Estados Unidos.
   O primeiro reitor foi Afrânio Peixoto, professor de Medicina e escritor, e o corpo docente contava com personalidades de prestígio, como entre outros: os biólogos Lauro Travassos e Herman Lent, os geólogos Djalma Guimarães e Viktor Leinz, os físicos Bernard Gross e Luis Freire, os matemáticos Lélio Gama e Francisco de Oliveira Castro; em Ciências Humanas e Letras, Jorge de Lima, Gilberto Freyre, Artur Ramos, Hermes Lima, Sérgio Buarque de Holanda, Prudente de Moraes Neto: Vila Lobos em Música, Cândido Portinari em Pintura, Mário de Andrade em História e Filosofia da Arte. Foram contratados especialistas francêses em Ciências Humanas.
   A UDF funcionava em regime de economia. Não chegou a ter prédios próprios, era dispersa em várias instituições, as aulas sendo ministradas nos lugares de trabalho dos docentes, o que dava aos estudantes a possibilidade de freqüentar os laboratórios dos professores: na Escola Politécnica, no Instituto Oswaldo Cruz, no Instituto Nacional de Tecnologia, no Laboratório da Produção Mineral. Os professores percebiam somente um pequeno complemento aos salários provindos das instituições em que trabalhavam originalmente.
   Essa Univesidade sofreu do clima político da época. A intentona comunista de 1935 deu pretexto ao governo para fazer intervenção em muitas instituições durante muito tempo, atingindo pessoas alheias àquele movimento, mas visadas por não seguirem idéias oficiais ou por desenvolverem atividades fora dos quadros considerados oficiais. Naquela vaga de perseguições, Pedro Ernesto foi destituido da Prefeitura, Anísio Teixeira da direção do Departamento de Educação e Afrânio Peixoto da reitoria da Universidade.
   O ministro da Educação, Gustavo Capanema, iniciava estudos para uma reforma do ensino superior. Fundou no Rio de Janeiro, a "Universidade do Brasil", que assim denominou porque seu objetivo era torná-la o padrão para as demais. Homem autoritário e obsessivo, demorou mais de dois anos para organizá-la no papel, a partir de 1935. Dirigiu uma comissão que, em vez de se ocupar da estrutura global e deixar que futuros responsáveis elaborassem os detalhes em suas especializações respectivas enquanto a Universidade crescesse, foi ao extremo de fazer descrição minuciosa de cada uma das Faculdades, Institutos e outros organismos que a comporiam. Chegou ao absurdo de detalhar os programas das disciplinas a serem lecionadas em todos os anos dos cursos, em todas as Faculdades. Assim, a Universidade do Brasil, antes de iniciar as suas atividades, foi apresentada como completa e estruturada de modo definitivo6. Para comparação, quando ela começou a funcionar, em 1939, a Universidade de São Paulo, fundada somente um ano antes do início da sua organização, já tinha cinco anos de experiência com eminentes professores estrangeiros.
   O espírito aberto da UDF era incompatível com o fechamento intelectual imposto ao Brasil de então. Gustavo Capanema, em conluio com outros intelectuais católicos, liderados por Alceu Amoroso Lima, combateu-a intensamente. Como é bem sabido, é incomparavelmente mais fácil destruir uma instituição do que construí-la; de todos os modos de destruição, o mais eficiente é o corte nas finanças. O governo promulgou um decreto, em 1937, proibindo a acumulação de cargos públicos. As atividades dos professores na Universidade do Distrito Federal foram consideradas um segundo emprego, embora eles percebessem somente um complemento de salário. Não tiveram os docentes outra alternativa, senão deixá-las e voltar a trabalhar exclusivamente em suas instituições de origem. A Universidade foi, assim, se esvaziando aos poucos. Alguns professores, nem compreendendo bem o que estava acontecendo, ficavam a par da situação quando, indo receber os complementos de vencimentos, eram informados de que tinham sido suprimidos.
   Gustavo Capanema organizava a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da futura Universidade do Brasil, com estrutura idêntica à que tinha sido adotada pela Universidade de São Paulo em 1934. Procurou professores na França e, admirador do regime de Mussolini, também na Itália. Mas, contrariamente ao que tinha ocorrido na USP, onde os professores estrangeiros foram convidados por uma comissão presidida pelo insigne matemático Teodoro Ramos, que conhecia o ambiente científico europeu, para a Faculdade do Rio os professores italianos foram designados pelo próprio governo da Itália, e os francêses foram escolhidos com a recomendação de que se selecionassem pessoas ligadas à Igreja. Com efeito, em carta ao professor Georges Dumas, que conhecia o Brasil e auxiliava na procura de professores francêses, escreveu Gustavo Capanema7:
   "Para Psicologia e Sociologia, desejo professores habituados a pesquisa e de estudos bem orientados, mas ligados à Igreja. A Faculdade vai ficar sob a direção do Sr. Alceu Amoroso Lima, católico, amigo de Jacques Maritain8. Daí não encontrar eu boa acolhida para nomes que sejam conhecidos por suas tendências opostas à Igreja ou dela divergentes".
   Esse era o quadro imposto pelo ministro. Era nesse contexto retrógrado que Anísio Teixeira e seus amigos lutavam para fazer uma universidade de vanguarda para a época. E foi nessa atmosfera que Alceu Amoroso Lima tornou-se reitor da Universidade do Distrito Federal durante oito meses, em 1937-1938. Por que aceitou a direção de uma universidade que combatia? Embora não tenha sido o último reitor, sabemos que em 1938 começaram a ser tomadas providências para a sua extinção. Além disso, Alceu Amoroso Lima recusou posteriormente a direção da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, porque não queria admitir a transferência, para ela, dos professores, estudantes e funcionários da extinta Universidade do Distrito Federal.9
   O golpe final para acabar com a UDF foi dado por Gustavo Capanema, que decidiu que somente o ministro da Educação tinha autoridade para criar universidades. A do Distrito Federal, criada pelo prefeito, era, por conseguinte, ilegal, e a sua existência representava um ato de "indisciplina e de desordem no seio da administração pública". Para a manutenção da disciplina e da ordem, ela tinha de ser extinta. Com aprovação desses argumentos, Getúlio Vargas satisfez aos desejos do ministro e extinguiu-a com um decreto-lei em 20 de janeiro de 1939.
   A Universidade do Distrito Federal teve a vida êfemera de apenas três anos e meio. O Brasil foi privado de uma iniciativa brilhante que poderia ter tido consequências da maior importância.

A Universidade de Brasília
   Juscelino Kubitschek, admirador de Anísio Teixeira, que era o seu conselheiro para assuntos de educação, convidou-o para fazer o Plano Educacional de Brasília relativo aos ensinos primário, secundário e profissional. Anísio Teixeira teve a colaboração de Lúcio Costa, que em seu Plano Piloto para a nova capital já tinha previsto, em linhas gerais, a rede de escolas primárias e médias, e tinha reservado a área para a Universidade.
   Nesse trabalho admirável, Anísio Teixeira novamente lançou idéias de vanguarda para a época: permanência das crianças nas escolas públicas o dia todo, não somente algumas horas por dia, com refeições, assistência social e atividades variadas. As escolas públicas com dia letivo integral, funcionamento normal no sistema de educação nos países avançados, desde os jardins de infância, infelizmente não vingaram no Brasil, são muito raras entre nós, mesmo entre os colégios particulares ricos.
   Quando Juscelino Kubitschek decidiu tomar as primeiras providências para a fundação de uma universidade em Brasília, foi Anísio Teixeira quem convidou para elaborar os planos, indubitavelmente uma das pessoas mais indicadas para aquela tarefa. Em seu livro "Por que construí Brasília" o presidente assim se refere10.
   "Troquei impressões com o ministro da Educação e Cultura, Clóvis Salgado, e a conclusão a que chegamos foi a de que os técnicos recrutados para essa tarefa deveriam ter a maior liberdade de ação possível, de forma a evitar-se que, sob a pressão da tradição e da burocracia, a obra a ser construida não se enquadrasse no espírito revolucionário, que era a característica de tudo quanto sendo realizado em Brasília".
   "Do meu entendimento com o ministro Clóvis Salgado resultara a escolha do técnico que se incumbiria da tarefa: o Professor Anísio Teixeira. Tratava-se de um idealista, profundo conhecedor das melhores técnicas educacionais, e de um intelectual dotado da visão universalista do papel que competia à juventude desmpenhar em face dos desafios do mundo moderno. Só essas qualidades assegurariam de antemão a realização dos dois objetivos prioritários da universidade a ser criada: renovação de métodos e concepção de um ensino voltado para o futuro".
   As sementes da Universidade de Brasília estão na Universidade do Distrito Federal de 1935 e na Universidade de São Paulo, fundada em 1934.
   A Universidade de Brasília começou a funcionar em abril de 1962. Devido al alto nível de pessoas que nela foram trabalhar nos vários setores, desenvolvia-se rapidamente. Depois do golpe de estado de 1964, foi a mais perseguida das universidades brasileiras. O impulso inicial foi interrompido em fins de 1965, com o pedido de demissão coletivo de 223 docentes, por que não tinham mais condições de trabalhar com dignidade.
   Houve impressionante analogia nas situações em que se encontraram a Universidade de Brasília, a Universidade do Distrito Federal e a Universidade do Brasil. Com efeito, depois de extinguir a do Distrito Federal em 1939, Gustavo Capanema deixou claro a Getúlio Vargas, em 1944, que os professores da Universidade do Brasil eram nomeados por autorização do presidente da República, "depois de ouvida a Seção de Segurança Nacional"11 que também era ouvida em Brasília. E como havia acontecido com a Universidade do Distrito Federal, os mesmos argumentos, "manter a disciplina e a ordem", foram usados contra a Universidade de Brasília vinte e sete anos depois, por um regime político que também instaurava a ditadura no país.
   Procuramos, neste curto artigo, dar uma idéia de quem foi Anísio Teixeira. Com espírito crítico, idéias e atividades sobre o direito à educação e sobre a necessidade moral de democratização das escolas, ele era homem que, no Brasil, estava adiante do seu tempo.
Referências:

  1. TEIXEIRA, Anísio. Educação não é privilégio. 5ª ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1994.
  2. TEIXEIRA, Anísio. A universidade de ontem e de hoje. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998.
  3. Referência 1, p.31.
  4. Referência 1, p.40.
  5. Referência 2, p.86-89.
  6. SCHWARTZMAN, Simon, BOMENY, Helena Maria B. e COSTA, Vanda Maria R. Tempos de Capanema. Rio de Janeiro, São Paulo: Ed. Paz e Terra; EDUSP, 1984. p.207-208. Este livro é preciosa fonte de informações sobre a mentalidade e as atividades do ministro da Educação de Getúlio Vargas, e sobre o estado da educação no Brasil naquele período da nossa História.
  7. Carta de Gustavo Capanema e Georges Dumas, 17 de junho de 1939, em referência 6, p.216.
  8. Influente líder católico e escritor francês.
  9. Referência 6, p.217.
  10. KUBITSCHEK, Juscelino. Por que construí Brasília. Rio de Janeiro: Bloch Ed., 1975. p.212.
  11. Referência 6, p.218.