ANISIO TEIXEIRA: EDUCADOR DO BRASIL

Prof. Dr. Frei Antônio Moser

Petrópolis, 5 de setembro de 2000.

Muitos desejaram ver o que nós vemos, e não viram, e viver o que estamos vivendo, e não viveram. Somos realmente privilegiados por estarmos trilhando o ano 2000. A virada de um milênio e de um século é uma oportunidade excepcional para traçar planos e estabelecer metas em todos os aspectos da vida humana. Esta espécie de balanço se torna particularmente necessário em alguns setores. É o caso da educação, mola mestra das transformações profundas em qualquer sociedade. E, se para todos é importante não perder esta oportunidade, ela é decisiva para uma nação como a nossa, com desequilíbrios tão acentuados em todas as áreas, e com falhas notáveis, sobretudo na educação. Analisar o século que finda é imprescindível para poder sonhar com um novo século e um novo milênio melhores.

Contudo, em meio a tantas idas e vindas, abalos mais ou menos profundos e mais ou menos freqüentes, faz-se indispensável apoiar-se em alguém que marcou este último século da nossa história. E com certeza, em se tratando da educação, nada melhor do que apoiar-se num educador formado em direito e história, mas filósofo por vocação, e carregado de inquietações religiosas e éticas. É nesta busca de uma espécie de guia da nossa história e da nossa filosofia da educação, que nos deparamos com a figura impar de ANÍSIO TEIXEIRA, no dizer de um número recente da Revista da Bahia, "o educador do Brasil". Nada mais correto, pois ele viveu como poucos 50 anos deste século que finda. Para certificar-se disto basta constatar as funções públicas que exerceu: Inspetor Geral do Ensino na Bahia, depois Secretário da Educação e Saúde neste mesmo Estado; Diretor da Instrução pública do antigo Distrito Federal; um dos idealizadores da Universidade Federal de Brasília, e depois seu Reitor; Membro do Conselho Federal de Educação; gestor da CAPES e do INEP; participante ativo da discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.

Com todas estas credenciais, não causa admiração que, após ser atirado pela janela em seu próprio país, num dos períodos de reacionarismo, ele tenha sido convidado para assumir o cargo de Conselheiro de Ensino Superior da própria UNESCO, e tenha ministrado cursos, seminários e palestras em várias Universidades no exterior. Toda esta trajetória brilhante o fez privar do contato, quando não da amizade, de quase todas as personalidades de destaque ao longo de seus cinquenta anos de vida pública. Anísio Teixeira é assim o guia que procuramos e uma figura que continua a nos interrogar, sobretudo neste ano que coincide com o centenário de seu nascimento, e trigésimo de sua morte.

É claro que não é sua empolgante biografia que interessa em primeiro plano a nós, membros da Academia Petropolitana da Educação e pessoas preocupadas com os destinos de nosso país. Evocando Anísio Teixeira, queremos desentranhar algumas linhas mestras do seu pensamento e da sua ação, para podermos entender nosso passado e nosso presente, e assim podermos contribuir para um futuro mais promissor. Pensamos que tudo isto possa ser feito em três momentos, que, na realidade se constituem em três passos, dialeticamente articulados: do dogmatismo à busca permanente da verdade; do particular ao social; da cruz à ressurreição.

I) DO DOGMATISMO À BUSCA INCESSANTE DA VERDADE

Durante mais de um decênio, Anísio não apenas freqüentou duas escolas dos jesuitas, mas mergulhou profundamente no mais radical dogmatismo montanista, que caracterizou alguns setores da Igreja na primeira metade do século 20. Mais ardoroso do que o jesuíta Pe. Cabral, ele não só admirava aquelas hostes, que qual exército aguerrido e ultradisicplinado, lançavam-se à conquista dos espíritos para Cristo, exatamente através do apostolado da educação. Na juventude, apesar das resistências provindas do seu pai Dioclesiano, Anísio sonhava tornar-se ele mesmo um soldado de Cristo, vestindo o hábito de Santo Inácio de Loyola, de Anchieta e do Padre Vieira. E com o mesmo entusiasmo, seguiu de perto a trajetória de sua irmã Tilinha, também ela fascinada pela vida religiosa, como Carmelita. Sentiu como ninguém quando, por razões de saúde, ela foi forçada a desistir.

Somente um daqueles misteriosos fatos, que assinalaram ciclicamente toda a vida de Anísio, o impediram de ser um dos personagens mais destacados da Companhia de Jesus, que tanto marcou o Brasil. Mas este acaso não o impediu de viver em sua juventude anos de intensa espiritualidade, alimentada pela Eucaristia diária, impulsionada pela fita de Congregado Mariano e pelo Círculo católico de estudos; nem o impediu de, ao longo de toda vida, acompanhar, devotamente sua esposa e familiares, na novena de Santo Antônio, e muito menos o impediu de respeitar as convicções religiosas de sua esposa e familiares. Estas observações são importantes para o tipo de análise que faremos. Como também é importante ressaltarmos logo de início que nada o afastou do seus anseio mais profundo: o da autenticidade de quem se deixou fascinar pela verdade, mas encarnada na história e pela liberdade, mas criativa.

1) O fascínio pela verdade encarnada na história

Em 1928, quando Anísio terminava seus estudos na Columbia University, em Nova Iorque, ao paraninfar uma turma de professorandas do Colégio dos Perdões, na Bahia, ele deixava muito claro que abandonar um tipo de igreja e um tipo de fé não significa abandonar seu ethos mais profundo: "A grande aventura da adolescência – dizia – é a descoberta de nós mesmos... Não são as filosofias que nos fascinam...", mas a fidelidade a nós mesmos. "A grandeza da vida dos heróis e dos santos não tem outro segredo senão o dessa intrépida fidelidade a si mesmos... Podem as contingências semear de tempestades a minha vida, mas eu não vivo na companhia das contingências, e sim na companhia de mim mesmo. E onde eu estiver arte e natureza, esperanças e sonhos, amigos e anjos, e o próprio Deus, não hão de estar nunca ausentes". Com estas palavras, o então jovem e impetuoso educador, não deixava margens sobre qual seria o farol que iria guiar sua vida: a busca da verdade, mas encarnada na história, assim como costuma acontecer com todos os grandes pensadores, sejam eles crentes ou não.

A base científica, e a admiração pelo espírito democrático que tinha haurido nos Estados Unidos, o impediam de continuar professando a fé num absoluto, que por definição transcende as contingências terrestres. Se a vida é, também por definição, dinâmica, as instituições, por mais veneráveis que sejam, deverão estar num processo de busca permanente para não se esclerozarem, e não perderem o passo da história. Qual Santo Agostinho de Hipona, Anísio é tangido por uma convicção profundamente agostiniana, embora nunca expressa: "tenho medo de perder o passo do Deus que caminha sempre". Talvez sem o saber, a maior lição que Anísio aprendeu em sua peregrinação por Lourdes, Roma, Israel, na busca de uma maior compreensão do Evangelho de Jesus Cristo, foi esta: é preciso caminhar sempre. Pois foi caminhando que o Mestre instruiu os seus discípulos; e os primeiros fiéis se autodenominavam como "aqueles que seguem o caminho". Nada mais justo, uma vez que o próprio Cristo se definia como sendo ele próprio o caminho; e no caminho a verdade e a vida.

Sei que a leitura que venho fazendo pode parecer surpreendente para os que se habituaram a ver em Anísio o homem marcado pela dúvida permanente e até um liberal agnóstico, e porque não dizer, um dos inimigos da Igreja. Entretanto, parece-me que só uma leitura superficial de um homem tão profundo poderia ignorar qual foi seu ponto de partida, o motor de sua vida e o ponto de chegada. Como bem observa Luis Viana Filho, no livro "Anísio Teixeira: a polêmica da Educação", na bagagem do Master of Arts da Universidade de Columbia não retornaria uma verdade abstrata e fossilizada. Em seu lugar vinha... "a inquebrantável vontade de pesquisar e rever, na procura da verdade, que sabia transitória, e por isto mesmo incessantemente buscada e abandonada" ( 41). Ou, como o próprio Anísio escrevia a um dos seus maiores amigos, Monteiro Loboto, "só a busca é interessante; o achado é sempre pobre, incompleto e infeliz" ( 40). Não é a busca pela busca que fascina Anísio, mas um buscar consciente da felicidade que este esforço por encontrar gera. Isto, no dizer textual de Anísio, se concretiza "com encontros que constituem tão somente novas plataformas para novas buscas, numa confirmação daquela sábia palavra de Laocoonte, se não me engano, pela qual a verdade toda só a Deus pertenceria, e a nós homens, o buscá-la eternamente, a imensa delícia de um eterno jogo com a verdade" (101). Palavras dignas de um Santo Tomás de Aquino, que Anísio absorvera na juventude.

Ademais, em carta de 1939 à sua irmã Sinsinha, ele não deixa dúvidas sobre o seu aparente antidogmatismo: " Vi a sua carta e notei a sua preocupação em afirmar que toda a verdade, com todos os seus desenvolvimentos, acha-se contida na palavra de Jesus. Isso hoje é até heresia. Se assim fosse, a religião paralisaria até a inteligência humana. Nada mais havia a buscar, tudo estava sabido e sabido definitivamente e para sempre. Você bem sabe que não é assim. A busca humana da verdade continuará, essa sim, para sempre..." ( 43).

Estamos portanto, diante de uma incansável busca da verdade, mas uma verdade encarnada na história. E nada há para estranhar nesta compreensão, desde que Deus se fez história e se revela na e pela história. Anísio sabia que o dogmatismo é conservador. E nós sabemos que Deus é criativo e criador.

2) O fascínio pela liberdade criativa

A busca da verdade encarnada na história, é pois a primeira mola mestra do pensamento e da ação de Anísio Teixeira. A segunda foi a liberdade criativa. Anísio estudou na Columbia University no final dos anos 20 e inícios dos anos 30. Em várias ocasiões, ele mesmo e outros, fazem a mesma observação: o período passado nos USA o fez mudar profundamente. Como diria Alceu de Amoroso Lima mais tarde, "o jovem baiano, discípulo do padre Cabral e dos jesuítas do Colégio Antônio Vieira, cansado da disciplina escolástica e dos argumentos de autoridade, descrente do próprio molinismo, descobria a liberdade e trocava a Religião pela Educação"( 32).

Depois de haver estudado a obra de Anísio e de reler muitas vezes esta frase de Alceu, ouso completar o pensamento de Alceu, outra figura de proa da história do Brasil no século que finda. Ousaria dizer que Anísio não trocou propriamente a Religião pela Educação: descobriu o verdadeiro sentido da Religião através da Educação. Isto ficará mais claro na nossa segunda parte. Contudo, de antemão se percebe que o ponto de toque da mudança radical, é justamente a busca da liberdade, para todos. Há pessoas que entendem a liberdade como liberalismo; há outras que a entendem como libertinagem; há outros que a entendem num sentido individudualista; há outras ainda que a entendem como um dos mais extraordinários dons que Deus nos confiou para através dele nós mesmos gerenciarmos sabiamente nossa vida e nossa realidade. E um homem de inteligência tão penetrante quanto Anísio, teria que renegar as três primeiras acepções de liberdade, mas teria igualmente de rebelar-se contra uma liberdade domesticada pelo autoritarismo.

A revolução que ocorreu na personalidade determinada de Anísio, e que ele cultivou no seu projeto educacional, foi regada pelos ideais que marcaram os USA sobretudo nas décadas de 20 e 30, quando os americanos se embeveceram pela liberdade criativa de uma nação que se julgava nascida para liderar o mundo. Em carta de 1929 ele diz textualmente: "Da América levarei, sobretudo, a independência e liberdade de inteligência que os meus últimos estudos me deram. Mais do que da educação, foi dessa viril e humana filosofia moderna que me ocupei nesses meses tão rápidos e tão intensos que aqui vou passando. A definitiva aceitação de uma atitude científica na explicação de todos os fenômenos da vida não só me deu uma rara traqüilidade intelectual, como ainda um programa de ação" ( 129) . Estas frases parecem bem o eco daquela de Lincoln, que reivindica para todos o direito à vida, à liberdade e à felicidade.

Contudo, se a revolução pela liberdade foi regada pelo idealismo nortemericano, suas raízes colocavam-se num plano bem mais profundo: o filosófico e o ético. Admirador dos ideais éticos dos gregos, Anísio mais intui do que expressa aquilo que se constitui no suporte maior da dignidade do ser humano: exatamente a liberdade. Deus não nos criou para sermos escravos. Ele nos criou exatamente para que, através da conquista da liberdade, nós nos humanizemos, e nos humanizando, nos divinizemos. O caminho pelo qual nos aproximamos do nosso Criador não é o da submissão, mas o da tomada de consciência da nossa vocação fundamental para a liberdade. Deus é a liberdade, e nós devemos parti-cipar dela.

De fato, toda a história sagrada está repleta de indicações neste sentido. Basta pensar na forma como o Povo de Deus no Antigo Testamento é libertado da escravidão em que jazia no Egito, e nos múltiplos episódios onde a sede de liberdade levava este mesmo Povo a rebelar-se contra a submissão, em nome de Deus. Basta lembrar que Jesus foi condenado justamente por levantar-se contra os mecanismos de opressão impostos pelas classes dirigentes ao seu povo. Jesus não só prega a liberdade, mas é um homem livre que, em nome da vontade do Pai, quebra todos os grilhões da submissão aos arbítrios humanos. O que mais chama a atenção é que o rebelde de Nazaré associa estas duas coordenadas que comandam também a vida de Anísio: verdade e liberdade. É a incansável busca da verdade que nos libertará, ou seja, nos tornará seres humanos na melhor acepção da palavra.

O sonho de Anísio é o de criar possibilidades de humanização para todos, sem exceção. E, se o caminho da humanização passa pela liberdade, a liberdade deve passar a ser o grande objetivo da educação, desde seus primeiros até seus últimos estágios. E aqui começa já a se manifestar uma das grandes descobertas do Educador do Brasil. Ao contrário do que ocorria nos USA, livres do feudalismo, justamente pela implantação das liberdades democráticas, no Brasil, e na América Latina de modo geral, o poder de uma classe dominante impedia a democracia e reeditava velhos princípios aristocráticos. As amarras que impedem o acesso de todos à liberdade se reforçam justamente no sistema escolar. Se Anísio tivesse sido ouvido, um ex Presidente não precisaria fazer a observação que fez recentemente: "Criamos uma elite altamente capacitada para o globalização, mas incapaz de ter uma visão social do país" ( Sarney, JB 26/08/00, Idéias, 1). A passagem do invididualismo egoísta, para uma sociedade realmente democrática, é a verdadeira pedra de toque da contribuição de Anísio para a educação no Brasil.

II) DO INDIVIDUALISMO À SOCIEDADE DEMOCRÁTICA

Anísio Teixeira se confunde com a história da educação no Brasil de 1923-1971. Poderíamos dizer até que Anísio Teixeira se confunde com o desenvolvimento social e político do Brasil de 1923-1971. Ele mesmo divide nossa história da educação no século que finda, em três grandes etapas: a primeira, voltada para a formação da elite. Tratava-se mais de um ensino livresco e ornamental, cujo objetivo não era propriamente o trabalho, mas o do mando e do lazer. A segunda etapa tinha como objetivo democratizar o ensino, alfabetizando o maior número possível de brasileiros. Acontece que, levado adiante sem planejamento, este projeto acabou por conduzir à perda de qualidade. Tínhamos más escolas para ensinar a ler e a escrever. Ademais, indiretamente a escola transformou-se em sinônimo de acensão social e de discriminação. Boas escolas para os filhos dos ricos, e escolas mais do que precárias para os outros. Este empreendimento, no dizer de Anísio, transformou-se num desastre, mesmo em se tratando do nível superior. Multiplaram-se as escolas de nível superior, mas de uma maneira irresponsável. Inspirado no clima de liberdade e de pesquisa científica que encontrou nos Estados Unidos na década de 20, Anísio passa a batalhar para a implantação de uma terceira etapa, na qual emerge a chamada Escola Nova.

1) Da Escola Tradicional para a Escola Nova

Para compreender o que representou e representa Anísio Teixeira para a educação como motor da transformação social, convém examinar um pouco mais de perto esta Escola Nova. Não se trata de uma pura e simples transposição daquilo que Anísio apreendeu em seus estágios no primeiro Mundo, mormente nos Estados Unidos. Ele era por demais inteligente e criativo para deixar de perceber que as tentativas de cópia são sempre desastrosas, quando não geradoras de novos mecanismos de dominação.

A Escola Nova, da qual Anísio é um dos mentores, se apresenta como uma concepção amadurecida e confrontada com os grandes movimentos sociais brasileiros, que marcaram os anos 20 e 30. Isto fica claro no Manifesto do Pioneiros da Educação Nova, de 1932, manifesto do qual ele é um dos signatários. A Escola Nova, por oposição à escola tradicional, não isola a educação dos processos sociais, muito menos quer ser uma réplica de uma sociedade envelhecida. Para a Escola Nova não é o aluno que deve se adaptar à escola, ao professor, e ao seu método. É a escola que deve responder criativamente aos desafios da realidade. Escola e sociedade fazem parte de um todo, e se articulam dialeticamente ou para gerar a liberdade ou então para perpetuar sociedades discricionárias.

Os mentores da Escola Nova percebiam muito bem que o Brasil era um país sem instrução adequada e isto em todos os níveis. Como observa Anísio, é um país sem moralidade de idéias, sem inteligência conseqüente, sem lógica e sem sentido ideológico ( 88). Daí todos perceberem a necessidade de uma revolução, mas que para a Escola Nova não deveria passar pelas armas, e sim pela Educação progressiva e continuada para todos. A batalha que durante decênios a Escola Nova travou, só nas aparências era contra as escolas particulares; pois na realidade era uma batalha em favor da escola pública, ou seja, a favor de um sistema capaz de garantir a todos, e não somente aos ricos, uma educação adequada. Daí a frase de Anísio, que resume assim o projeto da Escola Nova: "Só existirá uma democracia no Brasil no dia em que se montar no Brasil a máquina que prepara as democracrias. Essa máquina é a da escola pública"( 53).

Ninguém se empenhou tão a fundo neste processo educacional quanto o próprio Anísio. Por isto ninguém foi mais ferrenhamente combatido do que ele. Pequeno e franzino, como Davi, ele atemorizava os Golias. É a partir desta compreensão de fundo que Anísio deve ser entendido: ele representava um projeto educacional revolucionário, e portanto ameaçava o status quo. Era um projeto democrático, num país habituado aos regimes aristocráticos e ditatoriais. Muitos são os lemas, hoje incorporados na linguagem corrente, mas que brotaram do pensamento de da ação de Anísio. Vale à pena lembrar alguns deles, que são ao mesmo tempo títulos de livros ou artigos seus:: "educação não é privilégio"; "educação é um direito"; "vida, experiência e aprendizagem não podem ser separadas"; "educação progressiva"; "educação integral"; "ensino centrado no aluno"; "educar para a democracia"; "aprender fazendo"; "família, casa, amigos, centro de interesse dos alunos"; "aluno não é folha em branco"; "aluno é candidato a ser humano";
"a educação é o maior problema político brasileiro". Por trás destes títulos e lemas, esconde-se uma concepção orgânica de educação como instrumento de mudanças sociais profundas. E é esta concepção que queremos fazer emergir agora.

2) Os grandes eixos do pensamento e da ação educacional de Anísio Teixeira

Um dos pontos de convergência das inquietações sociais e educacionais de Anísio encontra-se nas crianças. Certamente, no seu inconsciente, martelavam dois dizeres de Jesus: "Deixai vir a mim as criancinhas"; e, "se não vos tornardes como crianças não herdareis o Reino dos Céus..." Com o carinho que manifestava posteriormente aos seus próprios filhos, a sensibilidade do educador não poderia ficar indiferente diante do drama vivido pela grande maioria das crianças brasileiras, por antecipação excluídas da sociedade. As frases que seguem localizam-se no início do seu grande calvário, ou seja, em 1963, ou seja, do Anísio sofrido e amadurecido. Constituem-se numa reflexão de grande densidade pedagógica e antropológica: "As crianças são felizes porque se satisfazem com as circunstâncias. Temos que ser como elas: aceitar que o mundo é um play ground, ( aceitar que) nós ( somos) as crianças deste play ground, e viver cada momento ..., ligados ao mundo e não a nós próprios. Fomos jogados no mundo mas também podemos dizer: fomos dados ao mundo e nosso dever é viver bem com ele, sem encarecer nossa dádiva, sem pedir nenhum pagamento. Para tudo isto precisamos esquecer-nos a nós mesmos e nos encontrarmos!...".

Uma hermenêutica deste texto faz emergir uma série de eixos que alimentaram o pensamento e a ação de Anísio. Em primeiro lugar, encontra-se sua preocupação com as crianças e sua educação. Aqui se evoca a experiência da Escola Parque, uma verdadeira Universidade infantil, fundada por ele em 1947 na Bahia. Foi uma experiência pioneira, e por isto mesmo elogiada em todo o mundo. Para ele é preciso oferecer, já às crianças, tudo o que há de mais moderno em termos de ciência, tecnologia e comunicação para possibilitar o nascer de uma atitude crítica da inteligência. Para tanto, os Mestres do futuro deverão estar familiarizados com os métodos e conquistas das ciências, para poderem, "desde a escola primária, iniciar a criança, e depois o adolescente, na arte sempre difícil e hoje extremamente complexa de pensar objetiva e cientificamente" ( 172). Daí as escolas-classes deverem ser aparelhadas da melhor maneira possível. Contudo, não bastam informações, por mais necessárias que estas sejam. É preciso oferecer às crianças também uma Escola-Parque, onde possam complementar o aprendizado, com atividades físicas, artísticas e recreativas. É o desenvolvimento do aprendizado democrático, pois, como Anísio diz textualmente: "Tornar a criança membro da sociedade e membro com plenos direitos e plena eficiência, é tudo o que busca realizar a educação" ( 32). Ele não diz, mas a Escola Parque se ajusta a um antigo ditado, que ele certamente absorveu dos jesuítas: Mente sã em corpo sadio.

A segunda observação que deve ser feita a propósito daquela oração acima citada, diz respeito ao play ground : se a vida é um play ground então é preciso viver na gratuidade e para a gratuidade. É só assim que poderemos nos esquecer de nós mesmos, tornar-nos solidários, servindo os outros, e conseqüentemente nos encontrarmos. Esta é a meta básica do nosso viver e da nossa realização. Temos o direito de ser felizes, desde que construamos nossa felicidade buscando a felicidade de todos ( 35) . Este pensamento se constitui num eco da frase evangélica: é dando que se recebe... é morrendo que se vive...

Um terceiro eixo emerge daquela oração de 1963: Não basta alfabetizar em massa; é preciso educar, no sentido pleno da palavra. A educação não se confunde com o simples saber. Este pode até ser uma manifestação das velhas paixões de domínio e onipotência. Para Anísio, a contribuição maior do saber oriundo da ciência parece ter sido o de nos dar maior poder para o mal ( 194). O simples saber não produz a virtude, ou seja, a força humanizante e humanizadora capaz de nos tornar verdadeiros seres humanos. Ser educado significa ser introduzido na busca da liberdade, da sabedoria e na arte de viver em sociedade.

É tendo em vista estes pressupostos que podemos entender o resumo que ele mesmo faz de sua atuação só no curto período de 1931-1936: "A revolução produzira o necessário clima de renovação... Procurei durante perto de cinco anos elevar a educação à categoria do maior problema político brasileiro, dar-lhe base técnica e científica, fazê-la encarnar os ideais da República e da democracia, distribuí-la por todos na sua base elementar e aos mais capazes nos níveis secundários e superiores e inspirar-lhe o propósito de ser adequada, prática e eficiente, em vez de acadêmica, verbal e abstrata. Esta luta encerrou-se em 1936 com a onda reacionária que então submergiu o País" ( 64). Emergindo e submergindo ciclicamente até o fim da vida, pode-se imaginar a obra incomparável que exerceu ao longo de seus 50 anos de atividade pública. No dizer de Fernando de Azevedo, seu companheiro e amigo por toda a vida, "não há setor da educação brasileira em que não se encontre obra de sua mão, inspirada por ele ou marcada de sua influência, nem problema que não tenha enfrentado para lhe dar solução" ( frontispício do livro).

Tendo estes pressupostos é que compreendemos que Anísio não deixou a Religião para abraçar a Educação; mas pela Educação descobriu o verdadeiro sentido da Religião. Por isto mesmo, com o mesmo zelo missionário que, na juventude abraçou a Religião, abraçou a Educação. Como observa Hermes Lima: "consagrou-se Anísio à edificação de sua obra educacional, abrasado pelo espírito de missão, missionário que foi a vida inteira" (66). E é a partir desta ponte da educação que hoje compreendermos não haver Anísio abandonado os pressupostos da juventude, mas de os haver apenas redirecionado. As perseguições encarniçadas das quais foi vítima, foram sua cruz e seu Calvário; mas não foram uma cruz e um Calvário sem sentido, pois possibilitaram a passagem para a Ressurreição.

III) DA CRUZ À RESSURREIÇÃO

Ao enunciar esta terceira e última parte, mais uma vez tenho consciência de estar fazendo uma leitura surpreendente. Afinal, sobretudo no âmbito da Igreja católica, a figura de Anísio espantou a muitos. Ele era apresentado como o grande inimigo da Igreja, porque inimigo das escolas particulares. Vimos, entretanto, que isto corresponde a uma leitura pobre e parcial. Passados tantos anos, já podemos fazer uma avaliação mais objetiva, e uma verdadeira leitura teológica de sua trajetória. Nesta última parte queremos explicitar exatamente isto: a trajetória de Anísio foi acidentada, irriquieta, mas coerente em todos os detalhes. Pelos atalhos ele chegou de onde partiu, ainda que nunca houvesse confessado explicitamente: ao Cristo que ele tanto amou, amando justamente os mais pequeninos. Mas sabia ele que o Ressuscitado é o que foi crucificado.

  1. Aprendendo com o sofrimento
  2. Para Jorge Amado, Anísio Teixeira "foi o mais modesto dos grandes homens, o mais simples, o que menos desejou para si próprio. O mais ambicioso, porém, em relação ao Brasil e ao homem brasileiro" (Frontispício). De fato, Anísio Teixeira se confunde com a história da educação no Brasil de 1920-1971. Por isto mesmo, deveria ter seu trabalho reconhecido por todos. E no entanto, amargou longos períodos de exílio, dentro e fora do país, sofreu perseguição ferrenha e constante por parte dos setores mais reacionários do país. No dizer de Hermes lima, ele foi objeto de discriminações diversas... Suas concepções e sua política educacional deformadas por tenaz campanha... tudo o talhava à indiciação...". E Luiz Viana Filho vai acrescentar: "as pedras corriam atrás do apedrejado" ( 175).

    De falto, ele viveu na carne aquilo que pregara numa carta escrita para sua irmã Tilinha, justamente na Sexta-feira Santa de 1923: "Que haja fracasso nas ilusões terrenas, nada mais natural... mas aqueles que já se desprenderam de todas as ilusões, de todas as fascinações da Terra, que vivem em plena realidade, em pleno sobrenatural encontrem uma oposição invencível e de boa fé, não é possível. Tal não se pode dar senão provisoriamente. Como uma provação cujo fim Deus saberá qual é" ( 20). E no mesmo período, em outra ocasião, dizia profeticamente: " Embora a gente pense que está preparado para todas as surpresas, a vida sempre nos prepara cousas que ultrapassam as nossas espectativas... Nenhum de nós pode adivinhar os caminhos que Deus quer seguir para chegar a uma alma" ( 22 + 49). E não se diga que esta percepção foi apenas episódica, na sua juventude. Ainda em 1967, quatro anos antes de morrer, ele tentava consolar Paulo Carneiro, que fora afastado do Conselho da UNESCO, com estas palavras: "Venho ... aprendendo... que as privações têm seus méritos. Dão-nos o gosto da falta, da ausência, da escassez, que talvez seja o próprio e mais legítimo gosto da vida. Somos algo inacabado, a buscar sempre, se tudo encontrássemos não seríamos homens..." (180). E completava em outra ocasião, inspirado nos mestres gregos: "nossa força é a resistência ao sofrimento"... ( 203).

    O caminho do Calvário de Anísio não se concretizou numa só, mas em várias etapas. Entretanto, nunca chegou mais próximo dele do que a partir dos anos de 1963 em diante, até sua morte, aos 11 de março de 1971. Ele, que parecia feito para o movimento e para o debate, tinha que se defrontar sempre mais com o que ele denomina de desconcertante mistério da própria vida, uma mistura de ameaça e promessa, de medo e esperança (182).

    Em várias cartas e falas deste período, se diz cansado, quer retirar-se, sente-se envelhecido e medita nestes termos: "A mocidade é presença..., uma espécie de eternidade de presença. E a velhice é o oposto, uma eternidade de ausência e de silêncio". Ele lutava com a velhice, que, no seu dizer, "desce com a implacabilidade do pôr- de -sol e sem a sua festa..." ( 181).

    Passava a defrontar-se sempre mais, não só com a velhice, mas com a própria morte. "É muito necessário, dizia, que consigamos aceitar a morte e partir para ela sem revolta e, se possível, até com doçura... Afinal, prossegue, a morte é tudo que nos fica como absoluto da grande inundação do relativismo do pensamento moderno" ( 191). E quando recebeu a notícia da morte do seu amigo Felix Poncet, fazia esta confissão: "quando reflito sobre a minha experiência, vejo ... que ignorava a tragédia que é toda a vida pessoal e me devotava à vida social, à vida coletiva humana, que pode ser controlada, que pode melhorar, progredir, ... mesmo que a vida de cada um continue o mesmo enigma, o mistério, e uma, no fim de contas, angustiosa tragédia" ( 182). E completa, num outro contexto: "os orientais... compreenderam melhor a vida e a morte: a provação e o descanso. Felizes os que partem!... embora seja terrível para os que ficam"( 203).

    Somando-se a experiência pessoal ao clima de ameaças de guerra nuclear, com a guerra fria e os mísseis nucleares sediados em Cuba, é até compreensível o clima no qual o grande pequeno homem mergulhou nos últimos anos de sua vida: todas as pessoas mais conscientes temiam pelo futuro da humanidade. Ele começava a vislumbrar o que lia no livro de Toynbee, "Experiências", de que era preciso olhar o outro lado da vida, que se coloca para além do ir e vir do pensamento positivo do homem na sua luta cotidiana pela sobrevivência e pelo poder ( 194).

  3. Encontrando o Deus da sabedoria e do amor

Todos os sofrimentos, ruminados em meditações dignas dos 30 dias de retiro inacianos, Anísio, foi se tornando o que aprendera ao longo da vida: alguém que encontra a sabedoria de vida, capaz de tirar as lições dos episódios mais amargos. É verdade que na fase final, encontramos frases bem amarguradas, como estas escritas a Fernando Azevedo, em resposta a um estudo deste sobre Anísio: "... você me deu a maior consolação, o maior conforto que podia esperar de uma existência que se aproxima do fim, sem desespero, mas com um inevitável desencanto... Sou evidentemetne ‘prometeico"... ( 157). Também é verdade que, sempre nesta fase final, muitas vezes Anísio evocava o Mito de Sísifo, célebre livro do não menos inquieto pensador francês Albert Camus: "Os deuses tinham condenado Sísifo a rolar um rochedo incessantemente até o cima de uma montanha, de onde a pedra caía de novo por seu próprio peso".

A vida atribulada de Anísio, e sobretudo a inquieta quietude dos seus últimos anos, nos lançam numa problemática existencial, carregada de interrogações: o porquê de tantos caminhos diferentes na busca de um mesmo fim. Como Anísio bem percebeu, a vida de cada ser humano é um mistério, insondável, no qual vislumbramos apenas algumas résteas de luz. De fato, para uns o caminho do encontro consigo mesmos e com seu destino, parece asfaltado, quando não coberto de pétalas; para outros é um caminho espinhoso, cheio de pedras de tropeço. Sobretudo, paira no ar uma questão de fundo, levantada pelo mesmo Camus em seu célebre livro dos anos 60, "a peste": por que tanto sofrimento? Que os adultos tenhamos que sofrer, é compreensível, mas por que as crianças inocentes? Se todos procedem do mesmo Pai, e por ele são chamados pelo nome, por que destinos aparentemente tão diferentes?

O próprio Anísio, que se reconhecia no principal personagem de Sísifo, e que também se identificava com um dos personagens do referido livro "a peste", ponderava nos seus últimos meses de vida em resposta a uma carta a Alceu de Amoroso Lima: "A velha India distribuía a vida humana em quatro períodos: vinte anos para crescer, vinte anos para lutar, vinte anos para realizar, e depois, a subida à montanha: a meditação, o conselho, o olhar ‘desinteressado’, ou melhor ‘livre’ sobre a vida... Sinto-o,- dizia de Alceu, mas poderia dizer de si mesmo – cada vez mais, na montanha. E precisamos, sobretudo, na hora que passa, de quem nos fale de lá..." (172-173).

De fato, Anísio chegara ao cume da montanha da vida, ruminando aquilo que ele fora, aquilo que ele se tornara, e aquilo que ele viria a ser: alguém que encontrou a sabedoria que sempre procurou. Entretanto, engana-se quem o percebe no cume da montanha somente no final da vida. O jovem Anísio, então na faixa dos 35 anos, foi capaz de escrever no silêncio de seu primeiro exílio, em Canindé, na Bahia: "Se os inimigos soubesse o bem que nos fazem... Sou hoje um homem que se pode entusiasmar sem se cegar, que pode dar sem se perder, que pode ver o extraordinário sem esquecer o quotidiano, e tudo isso devo aos meus amabilíssimos inimigos..." ( 85). A sabedoria manifesta na última etapa, já se fazia presente na primeira. Bem se vê que Anísio assimilara a lição aprendida na juventude: "amai vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem". Quem chega a esta compreensão encontra-se na montanha das bemaventuranças. Se Anísio pudesse enviar-nos uma carta ele o faria nestes termos:

Vocês talvez ainda não saibam, mas eu que já me encontro do outro lado, sei muito bem que Deus tem caminhos diferentes para levar-nos até ele. Vou oferecer-lhes algumas dicas para chegar onde estou: O ponto de encontro é o amor ao próximo, particularmente às crianças: não deixem apagar-se dos olhos das crianças a chama da confiança. Tudo o que fizerdes a um destes pequeninos é a mim que o fazeis. Ninguém tem maior amor do que aquele que dá a vida. E quem ama sempre encontra a Deus, pois Deus é amor.