No centenário de Anísio Teixeira
Jorge Calmon
Chega a ser uma temeridade, ou quase uma impostura, o fato de um leigo pretender o exame, ainda que superficial, da figura e do legado do grande Anísio Teixeira. Mas, se existe atrevimento neste orador, pelo menos parte da culpa cabe aos filhos do homenageado: a dinâmica Babi Teixeira, filha exemplar, e meu amigo Carlos Teixeira, para com quem tenho uma dívida impagável, pela competente, generosa e paciente assistência com que amenizou os padecimentos de pessoa para mim muito querida.
Não poderia escusar-me ao desejo destes amigos, para que falasse aqui sobre o pai ilustre. Alegaram que como conhecera Anísio, e com ele tivera certa aproximação, podena dizer alguma coisa além do que externei na sessão com que fol registrado o 99º aniversário do nascimento, o ano passado. E aqui estou eu, constrangido pela manifesta incompetência, porém justificado pelo dever da homenagem, para lembrar a fortuna que foi para o Brasil ter tido na sua elite pensante um homem como Anísio Spínola Teixeira, o filósofo, o arquiteto, o renovador de sua Educação.
No dia 27 do mês passado, o Senado Federal - por feliz coincidência presidido por um baiano, o eminente Senador Antônio Carlos Magalhães - dedicou uma sessão especial a este centenário, ocasião em que foram pronunciados vários discursos, todos eles bem elaborados, apreciando os diferentes aspectos do pensamento e da ação de Anísio. Impressionou-me, de modo particular, o discurso do Senador José Roberto Arruda, voltado para a contribuição do educador baiano para a montagern da estrutura pedagógica do Distrito Federal - uma oportunidade para criar e inovar a que ele se entregou com verdadeira paixão.
Efetivamente, uma das peculiaridades de Anísio era sua atração para o novo, para o original, para a materialização de propostas de mudança. Por isso mesmo, detestava a burocracia, assim como tudo o mais que significasse entrave ao rápido desenvolvimento das ações.
O projeto global de Brasília, simbolizando uma projeção para o futuro, tinha de fasciná-lo, como a oportunidade ideal para transformar em realidade sua concepção de um outro Brasil, uma outra Educação. E estava certo. O Senador José Roberto Arruda, que representa na Câmara Alta o Distrito Federal, credita a Anísio Teixeira, em grande parte, o fato significativo de ter sido a Universidade de Brasília, que ele projetou, considerada pelo MEC, em recente avaliação, como a melhor Universidade brasiletra. É o reconhecimento, conquanto tardio, da clarividente contribuição de Anísio a Educação brasileira, em seus diferentes níveis.
Ele não teve ocasião, ou tempo, ou recursos, para ocupar-se com maior atenção da Universidade baiana. Uma de suas grandes iniciativas, quando Secretario da Educação na Bahia, foi, como todos sabem, a Escola-Parque, ou Conjunto Educacional Carneiro Ribeiro, exemplo feliz do ensino integrado, capaz de fazer da criança o cidadão completo, preparado para sua inserção na sociedade consciente e produtiva.
A glória de Anísio frutifica nos CIEPS, CIAPS e similares hoje espalhados pelas favelas do Rio de Janeiro, periferia de grandes cidades, municípios do interior.
Muitos lugares não parecem estar ainda preparados para a correta manutenção desses centros de ensino. Onde não faltam recursos para o funcionamento, falta a compreensão do seu caráter polivalente. São como brinquedos mecânicos entregues a crianças desajeitadas.
Na Bahia, a Escola-Parque pioneira, em que se concretizou a idéia de Anísio, com a ajuda de Hildérico Pinheiro, Carmen Spínola Teixeira e sem dúvida a colaboração de Anfrísia Santiago, além de outros idealistas, vai, felizmente, sendo salva dos anos de abandono e desfiguração graças ao espírito público de Eraldo Tinoco.
Ele fol sensível aos apelos que se fizeram ouvir no ano passado, nesta mesma época, no sentido de que a restauração desse conjunto de prédios, e a volta de sua utilização pudessem ser, como estão sendo, a melhor das homenagens, ao ensejo deste centenário, e, ao mesmo tempo, a reapresentação da grande proposta de Anísio.
Aliás, não diferem muito do propótipo pensado por Anísio as escolas-modelo que o Estado está construindo em cidades do interior baiano, com a colaboração técnica da Fundação Luís Eduardo Magalhães. Basicamente, a concepção é a mesma. São 16, ou mais, prontas e em serviço.
E já que falo em Luís Eduardo, não posso escusar-me de mais uma vez lamentar o desaparecimento desse homem público, que, ainda moço, já ascendia as alturas da liderança. Sua morte foi um duro revês para a Educação em nossa terra. Dei conta, disso ao ouvir do Senador Antônio Carlos, quando o visitei para apresentar pêsames, que Luís Eduardo Ihe antecipara que a Educação seria a grande prioridade do seu governo.
Cesar Borges, Eraldo Tinoco e Geraldo Machado estão procurando concretizar essa promessa, de Luís Eduardo que o destino não Ihe permitiu cumprir.
Estive examinando o relatório das atividades desenvolvidas pelo Governo do Estado durante o ano findo, que acompanhou a mensagem lida pelo Sr. Governador na Assembléia Legislativa. O relatório expõe os trabalhos feitos na área da Educação, bem como os expressivos resultados obtidos. Assim, por exemplo, a taxa, de escolarização, na Bahia, no ensino fundamental, cresceu de 77%, em 1991, para 93,9, em 1999, enquanto a taxa de analfabetismo apresentou queda de 14,8 pontos percentuais, entre 1990 e 1997.
Notável é, pois, o esforço que realiza o Governo baiano no setor educacional. Merece louvor o operoso contingente comandado por Eraldo Tinoco. Mas, a despeito do trabalho exaustivo e sério dele e dos vários Secretários que o antecederam, e de suas equipes de pedagogos e outros técnicos, o cenário educacional na Bahia ainda não é aquele sonhado por Anísio Teixeira, Luís Eduardo, Isaías Alves, Rômulo GaIvão e tantos outros. Ainda não é, porém algum dia será. E essa meta poderá, finalmente, ser alcançada, pelo menos no que se refere à alfabetização, ou ao ensino fundamental, caso seja possível deter o sempre crescente descompasso entre a oferta estatal do serviço de educação e a maré alta da demanda desse serviço pela população carente, que não cessa de aumentar.
As leis naturais são implacáveis.
Já no século XVIII, o economista inglês Thomas Malthus preconizava que o crescimento das populações tenderia, a superar os meios de subsistência, disso devendo decorrer grave crise, a menos que se tomassem medidas preventivas, dentre as quais, como a principal, a restrição voluntária de nascimentos.
Isso há mais de dois séculos, pois o livro de Malthus é de 1798.
Devo o conhecimento de Malthus e de sua sábia teoria ao saudoso mestre Augusto Alexandre Machado, o professor Machadinho tão estimado pelos estudantes de Direito de minha época, por sinal que estudantes que jamais seriam capazes de invadir e depredar uma reitoria de Universidade, como há dias aconteceu nesta cidade - sinal de que a qualidade dos jovens e a educação, mesmo a doméstica, engrenaram marcha-a ré.
O professor Machado falou-me de Malthus nas suas aulas de Economia Política, dadas aos primeiranistas de Direito. Hoje ele observaria que o velho economista estava absolutamente certo. E poderia exemplificar a validade da lição de Malthus justamente com esse desencontro entre o resultado do esforço do governo baiano para escolarizar a infância e a inchação demográfica, que torna esse esforço um desesperado trabalho de Sisifo, dificilmente vitorioso.
Assisti num jornal de televisão, há alguns dias, a entrevista com uma mulher acusada de ter vendido o filho recém-nascido por um quilo de carne. Tivera 22 filhos, de pais diferentes. Vendera o último para poder dar de comer aos demais. Inaugurava, assim, uma modalidade virtual de infanticídio ou de antropofagia. Fizera a troca de alguns quilos de criança por um quilo de came de boi...
Não há muitos meses, vi também num noticiano de televisão sobre o trabalho infantil no Nordeste, um sertanejo, pai de uma infinidade de crianças, explicar, cinicamente, o emprego de uma criança de cinco anos de idade, ou ainda menos, na raspagern de raízes de mandioca, com a justificativa de que com isso estava aumentando com mais alguns trocados o ganho mensal da família. Disse isso com a maior naturalidade, como se fosse obrigação de cada filho, não importando a idade, trabalhar para o sustento da família. Deu a impressão, até, de que cumpria um dever patriótico ao iniciar no perigoso trabalho aquela criancinha que apenas balbuciava as primeiras palavras.
Quantos não serão os rudes sujeitos que por esse interior afora, ou mesmo na periferia das grandes cidades, também não estarão gerando famílias numerosas, que não terão condições de manter, muito menos de encaminhar na vida, pela educação?
Nos centros urbanos, do mesmo modo, vai em aumento a população infantil, como por igual a juvenil, em razão da paternidade ou matemidade irresponsável, disso decorrendo o agravamento da criminalidade por menores, ou situações como a da Febern de São Paulo, que tantas dores de cabeça tem dado ao atarantado governador de lá.
Fala-se muito em dívida social, como se a comunidade, como um todo, nela compreendida a grande maioria de pessoas corretas e laboriosas, fosse devedora pelas proezas dos marginais que andam engravidando moças sem juízo.
A expressão dívida social, assim como a suposta obrigação de resgatá-la, são palavras ao agrado dos postuladores de votos. Peso social é o que é, em verdade, esse enonne contingente de crianças e jovens cuja salvação é hoje um desafio para a nação.
O quadro que ai está, de generalizada delinqüência, de crescente desenvoltura do crime, organizado ou não, de medo e angústia da população, de temor das famílias enclausuradas em casa ou transitando medrosamente pelas ruas, no receio de assaltos, seqüestros ou balas perdidas, pode ser o prenúncio de algo ainda mais grave, conforme hipóteses fáceis de fazer.
A intensificação da violência será efeito, entre outras causas, da obsolência de nossa legislação penal, que o Congresso já deveria ter atualizado. É óbvio que a brandura da punição estimula o crime. A comutação da pena, prevista em várias hipóteses, e o abrandamento do regime prisional, nem atendem à pretendida regeneração do criminoso, nem amedrontam o delinqüente em potencial. Mas, não poderia ser de outra maneira, pois o nosso código criminal já é sexagenário, ao passo que o Código de Processo Penal é apenas um ano mais novo, sendo de 1941. Longe estão de prever as novas formas de delinqüencia. Ainda mais longe estão de conhecer as figuras criminais trazidas pela evolução da eletrônica e pela globalização.
A revisão da legislação penal terá de alcançar a própria Constituição Federal, pois nela está, como artigo 228, o lírico ou ingênuo dispositivo que torna inimputáveis, isto é, imunes a processo, os menores de 18 anos, quer dizer, os "anjos" da Febem e congêneres, ou sejam os criminosos precoces que talvez constituam a maior parcela da população delinqüente, e ou matam ou roubam por conta própria, ou servem de escudo à bandidagem adulta.
Os meios de comunicação nos mostram constantemente o julgamento de jovens, e até de adolescentes, nos países mais civilizados. Que copiamos em quase tudo, menos no que possuem de realmente digno, de adoção.
É verdade que a Constituição coloca os menores de 18 anos, vale dizer a pivetagem, sob as normas de uma futura legislação especial. Puro romantismo.
Enfim , cresce a população, e a violência, como uma sombra sinistra, acompanha esse crescimento, aumentando também.
Em recente reunião da diretoria da Associação Comercial da Bahia, o médico e empresário Luiz Ramos de Queiroz, um dos seus integrantes, comentou um estudo encomendado, em 1967, pela Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) ao demógrafo canadense Donald Pierson sobre o que poderia acontecer aos países do Terceiro Mundo como conseqüência da explosão demográfica. A conclusão do estudo foi que, a continuar a expansão demográfica, os governos não teriam condições de conter a violência, nem de desenvolver os serviços de saúde pública e de Educação. A distribuição de renda seria ainda mais desigual e a favelização se agravaria nas grandes cidades.
Donald Pierson foi Primeiro-Ministro da Canadá. Suas previsões vêm se positivando em não poucos países em desenvolvimento; na realidade, em subdesenvolvimento.
Por isso é que se torna urgente dar um basta a esse estado de coisas. Não, todavia, com ingênuos e inócuos protestos dirigidos ao público constante daqueles que são justamente os inofensivos, os coactos, as vítimas passivas da expectativa de violência. Nem é suficiente vestir roupa branca para expressar o desejo de paz. Os bandidos devem divertir-se com esse tipo de combate sentimental à sua estratégia calculada e perversa.
Se desejarmos que o futuro seja diferente, teremos de ser realistas e objetivos.
Slogans tais como o que suplica "Queremos paz, basta de violência", não levam a nada.
A palavra de ordem será um basta á paternidade irresponsável, mediante a punição exemplar dos culpados pelo abandono dos filhos. Tarefa para os Juizados de Menores, e para o Ministério Público.
Deve ser um basta á parição de futuros marginais.
Deve ser, sem disfarces nem eufemismos, o recurso ao controle da natalidade.
Nas ditaduras, é possível impor a limitação da procriação. Na democracia isso se consegue pela persuasão, pelo convencimento. Já Thomas Malthus, inibuido das idéias liberais inglesas, aconselhava a restrição voluntária dos nascimentos. Esta terá de ser, também, a opção brasileira, mesmo porque se trata de uma diretriz da Constituição Federal. E não haverá de faltarem sugestões, a serem colhidas em países que enfrentam o mesmo problema, para alcançar o objetivo.
Atrevo-me a vislumbrar a criação no quadro, da administração baiana de um órgão que venha a ser incumbido de projetar e executar uma política eficiente de acompanhamento da natalidade. Será uma Superintendência de Planejamento Familiar. Uma de suas tarefas seria esclarecer as famílias - todas as famílias, onde quer que se encontrem, seja no povoado, seja na roça - sobre a responsabilidade legal dos pais quanto ao futuro dos filhos, e sobre a necessidade de limitarem o número de filhos conforme a capacidade de criá-los em condições decentes. O censo demográfico que se realiza este ano poderia facilitar esse cadastramento familiar.
O bom preparo publicitário que tem antecedido as campanhas de vacinação presta-se para levar a todos os quadrantes do Estado a palavra de aconselhamento ou de advertência sobre essa nova política setorial, de caráter social, adotada pelo Governo.
Não sei o que é mais importante, entre vacinar crianças contra sarampo, tétano e poliomielite, ou evitar que nasçam para morrer de subnutrição, ou, tornando-se indivíduos adultos, morrer pelas balas da Polícia.
Resumindo, no meu modesto entender, há de se estancar a demanda, com o emprego dos meios mais adequados, ao tempo em que se cuidará de recuperar a grande massa de crianças e jovens que ai estão, como saldo desse longo período de desatenção para com o problema.
Não se conserta a pia sem antes fechar a torneira.
Não se atenderá satisfatoriamente ao problema do menor carente ou criminoso sem antes estabelecer o severo acompanhamento do crescimento da população.
Não se poderá pôr em prática uma política educacional tal como Anísio e Luís Eduardo almejaram, enquanto estiver tumultuada a população menoril, com a opinião pública descrente da ação dos governos.
O primeiro passo, que muito já tarda, é, portanto, coibir a natalidade desenfreada. Feito isso, será possível formar a nova criança, o novo jovem, o novo aluno, conforme a fórmula recomendada, pelo mestre Anísio, ou seja um educando que receba uma formação em que sejam estimuladas suas aptidões intelectuais, artísticas e físicas, em suma um cidadão integral para participar de uma sociedade verdadeiramente democrática; uma sociedade governada segundo a vontade do povo, mas em que o povo seja composto de cidadãos conscientes, preparados para decidir os destinos de sua coletividade.
Bem sei que minhas propostas são polêmicas; bem sei que mais caberia, nesta festa de homenagem, o estudo e a exaltação da vida e obra do eminente educador. É uma tarefa para cujo desempenho me falece autoridade. Deixei-a para o especialista, o Secretário Eraldo Tinoco. Preferi homenagear a memória de Anísio com a abordagem de uma questão que sem dúvida o apaixonaria; que colocaria em ação aquela prodigiosa máquina cerebral tão sensível à provocação para o debate, sempre disposta a reconsiderar suas opiniões, para alcançar a verdade, como finalidade suprema.